A visão filosófica e religiosa de Victor Hugo
O grande poeta francês, Victor
Hugo, sobre quem desejamos esboçar modestamente partes de seu pensamento
filosófico e religioso, sustentou notáveis pontos de vista, que expressou em
linguagem poética profunda. Poder-se-ia dizer que no seu livro Deus,
Literatura e Filosofia manifestou as bases de um que-fazer filosófico e
religioso. O poeta ouvia vozes que o instruíam sobre "coisas
prodigiosas e surpreendentes". Essas vozes lhe falaram sobre o
sentido da vida e as angústias do homem para encontrar o Ser Supremo como
embasamento de tudo o que existia. Essas vozes, porém, apenas o fizeram
compreender que o homem é um insecto que destrói as suas asas ao chocar-se contra
"vidros coloridos"; assim exclamou: "Como! Tudo acabará no nada
supremo! Todos os esforços do génio e do pensamento humano se perderão,
inúteis, no vazio!"
Por esse estado espiritual de Victor Hugo se chegou a
compreender que toda a sua obra não foi mais que uma reacção filosófica e
religiosa contra o niilismo do ser. Como Miguel de Unamuno,
escreveu buscando as bases da existência em Deus. Sentia, de facto, que sem uma
Causa Suprema presidindo o desenvolvimento do universo toda a obra humana
careceria de significação moral. Victor Hugo, guiado pelo seu daimon poético,
procurou cansativamente o sentido da vida e da história. A sua poesia
foi uma afirmação - repetimos do homem e da verdade, - aquela que brotava de
sua alma clara e sonora por causa das suas profundas convicções espirituais. Pois
bem, ao enfrentar-se com o problema religioso, fê-lo primeiro com o ateísmo que
viu simbolizado num morcego. Porém, o nada ressoou em seu ser como uma
realidade; lutou contra ela com decisão espiritual, pois pressentia na sua
intimidade existencial outro destino para o homem. Não aceitava que Jeová,
Cristo, Alá fossem "um sombrio monte de aparências loucas".
Considerou o cepticismo como o pássaro-da-morte, que lutou
contra o seu espírito com duras expressões. Por isto, perguntou o poeta:
"Estarei sozinho no infinito horroroso?" E ajuntou: "Existo eu
mesmo?". Indubitavelmente, o cepticismo não abateu o seu ânimo, porque
sentia constantemente em seu interior as vozes de fé e esperança. O seu
alterego não se resignava à ideia do não-ser; toda a sua energia moral se
voltou para a defesa do espírito. O poeta acreditava que a vida e o homem
seriam duas realidades alimentadas por uma única essência espiritual.
Victor Hugo prosseguiu estudando o paganismo, vendo-o representado
num abutre. Uma voz sempre empenhada em difundir a negação do Ser se dirigiu ao
poeta para dizer-lhe: "Enquanto homem, que és? Nada. Já o tenho dito a ti.
Obra do barro perdido por Júpiter, não existindo sob o céu escuro de onde cai a
sentença, lei ou liberdade, direito ou resistência, não és mais do que o
joguete dos monstros". A voz falou-lhe de uma certa claridade, mas quando
Victor Hugo lhe perguntou onde se encontrava o abutre do paganismo, desapareceu
sem responder.
A águia representou o mosaísmo e narrou dramas e enigmas
terrenos; agora, porém a voz mencionou a existência de um Deus único. Quer
dizer, surgiu daquele ser alado uma voz menos sombria que as anteriores.
Daquela águia emanava uma pequena claridade que lhe permitia ver os caminhos
escuros da montanha. Enquanto o abismo estremecia, o poeta escutou uma mensagem
diferente. Percebeu que o ser não está mais sozinho na sua aventura existencial.
Por isso, disse-lhe a voz: "Sim, Deus fez o todo! Os céus, os montes, os
animais, vossos ruídos e as sombras que projectais. E a partir desse momento o
homem é uma criação divina, um fragmento de vida que pode progredir com
uma tocha nas mãos".
Mais tarde, aparece o grifo dizendo-lhe que a águia dorme e apenas ele pode ser
elevado ao alto por Deus. O poeta percebeu que ele falava do Cristianismo,
afirmando: "O homem é a alma; o homem leva em si um raio de luz: a matéria
sozinha é a condenação". Foi assim que o caos se transformou em harmonia e
o azar em finalidade. Nesta visão de Victor Hugo, o Ser se apresenta com um
sentido transcendente. O Cristianismo se sobrepõe às negações anteriores,
àquelas vozes que falavam somente do nada e da morte. O grifo ampliou logo o
seu pensamento e disse: "Águia, Cristo sabe mais que Moisés. Moisés
possuía apenas os raios, e Cristo tinha os cravos. Não, Deus não é ciumento!
Não, Deus não dorme, arrastando toda a criação! O homem não morre de
todo!"
O surgimento do Cristianismo teve a virtude de materializar um anjo, que
representava o racionalismo. Ao ver o poeta, o anjo expressou os
conceitos que lhe deram as bases para uma nova filosofia do homem. Eis alguns
dos seus pensamentos:
"Todos os seres são, foram e serão."
"Que haja cinza no coração que leva lama à frente, todo o ser é imortal
como essência e conquista o que se lhe deve pela lei que o governa. O facto de
ser pequeno, imperceptível, não é motivo para não ter porvir; nada
padece em vão"
"Tudo vive. A criação esconde os renascimentos".
"Chama de Deus, a alma existe em todas as coisas. O mundo é um conjunto em
que nada está só! Todo o corpo esconde um espírito! Toda a carne é uma
mortalha e para ver a alma é preciso compreender o sudário."
"Todo o ser, qualquer que seja, do astro ao estrume, do estúpido ao
profeta é um espírito arrastando uma forma final."
(1) – Do livro Deus, Literatura e Filosofia.
Foi assim que surgiu a luz para o poeta, ou seja, "o que todavia não tem
nome". Um novo esquema do Ser e do universo dão-lhe as bases para uma
visão renovada, filosófica e religiosa, do Cristianismo. Era uma "luz com
duas asas brancas", cuja claridade lhe disse: "Quem quer que sejas,
escuta: Deus existe". Foi assim que Victor Hugo encontrou Deus enfim; não
obstante, perguntou: "Quem és? "e em seguida respondeu ele mesmo:
"Renuncio sabê-lo. A pergunta é a sombra, o mundo a resposta.
Deus existe". E ajuntou: "O ser é uma família na qual o homem é o
irmão maior. Alma mais elevada, deve nos seus combates derramar o seu azul
sobre as plantas em baixo. O homem, apesar de seu ódio e de sua clemência é
o princípio da luz imensa. A igualdade na sombra esboça a unidade. A
unidade é o término do caminho da luz ".
Apesar do caos que o seu génio viu em tudo, não vacilou em dizer: "Alma!
Ser, tu és amor. Deus existe". O caos que via transformou-se por mutações
progressivas em ordem e harmonia. Por isso, insistiu em lutar contra a morte e
o nada do Ser, vertendo "todo o seu azul" poético e filosófico sobre
a terra, confiando nos fundamentos morais do universo. Daí, afirmou
o poeta: "A matéria nada é. Apenas a alma existe."
Pois bem, nem Max
Scheler nem Rudolf
Otto nem outros filósofos parecidos, tampouco pensadores cristãos como
Soren Kierkegaard, Kar Barth, Jacques Maritain conseguiram
perceber esse Além como um sustentáculo do mundo visível. Victor
Hugo penetrou no chamado mistério do Ser poeticamente como o fizeram
misticamente Santa Tereza de Jesus, São João da Cruz e outros místicos do
Oriente e do Ocidente. A sua visão filosófica e religiosa coincidiu com a
Eterna Verdade expressa através do processo histórico da humanidade. Pois a
unidade espiritual eleva o conhecimento à região dos iguais, a esse nível onde
o particular se esfuma e os reflexos do duvidoso e incerto desaparecem.
/…
Humberto
Mariotti, Victor Hugo Espírita, A visão filosófica e religiosa
de Victor Hugo, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Young Girl with a Doll, pintura de Anne-Louis
GIRODET-TRIOSON)
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