sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Tratamento de vícios e perversões ~ 

A embriagues, a toxicodependência e o vício do jogo são os flagelos actuais do nosso mundo em fase aguda de transição. Cansados de recorrer sem proveito a internamentos hospitalares, as vítimas e as suas famílias acabam recorrendo ao Espiritismo e às diversas formas mágicas do sincretismo religioso afro-brasileiro. É comum fazer-se confusão entre essas formas de religião primitivas da África e o Espiritismo, em virtude de haver manifestações mediúnicas nos dois campos. Os sociólogos, que deviam ser minuciosos ao tratar desses problemas, carregam a maior parte da culpa desse equívoco. Estão naturalmente obrigados, pela própria metodologia científica, a distinguir com rigor um fenómeno social do outro, mas preferem a simplificação dos processos de pesquisa, que gera confusões lamentavelmente anticientíficas. 

A palavra Espiritismo, cunhada por Allan Kardec como um neologismo da língua francesa, na época, é uma denominação genésica da Doutrina Espírita. Nasceu das suas entranhas e só a ela se pode aplicar. Kardec rejeitou a denominação de Kardecismo, que os seus próprios colaboradores lhe sugeriram, explicando que a doutrina não era uma elaboração pessoal dele, mas o resultado das pesquisas e dos estudos das manifestações espíritas. Entrando em contacto com o mundo espiritual, em todas as suas camadas, Kardec recebeu dos Espíritos elevados os delineamentos da doutrina, mas não os aceitou de mão beijada. Submeteu essas comunicações do outro mundo a rigoroso processo de verificação experimental. Só aceitou como válido o que era provado pelas numerosas pesquisas incessantemente repetidas e confrontadas entre si. Para tanto, criou uma metodologia específica, pois entendia que os métodos devem ajustar-se à natureza específica do objecto submetido à pesquisa. Sem essa adequação seria impossível obterem-se resultados significativos. Escapava assim, aos fracassos iniciais da Psicologia Científica, que lutara em vão para enquadrar os fenómenos psicológicos na metodologia da Física e de outras disciplinas. 

As experiências de Wundt, Weber e Fechner, por exemplo, restritas a mensurações de intensidade, não iam além de explorações epidérmicas, pouco sugerindo sobre a natureza e o mecanismo dos fenómenos. Os fenómenos espíritas, que revelavam inteligência, não eram simples efeitos de processos biológicos e fisiológicos. Eram fenómenos muito mais complexos, que podiam provir da mente ou das entranhas humanas, mas também podiam ser produzidos por forças ainda não suficientemente conhecidas, como o magnetismo natural, a electricidade, energias e elementos procedentes de regiões ainda não devassadas da própria consciência humana. O inconsciente era ainda uma incógnita. Kardec o abordou quando Freud estava ainda na primeira infância. Kardec deu à Revista Espírita, órgão que fundou para divulgar os seus trabalhos e pesquisas de opinião, o subtítulo de Jornal de Estudos Psicológicos, provando já estar convencido de que enfrentava os problemas do psiquismo humano. Estava fundada a Ciência Espírita, que os cientistas da época rejeitaram, considerando que Kardec fugia da metodologia científica originada das proposições filosóficas de Bacon e DescartesA psicologia introspectiva, ainda apegada à matriz filosófica, atacou-a com a antecedência de meio-século com ataques dirigidos aos pioneiros da Psicologia Experimental. Essa é uma das glórias de Kardec, geralmente desconhecida. Mais tarde, Alfred Russel Wallace iria declarar que toda a psicologia não passa de um espiritismo rudimentar, glorificando Kardec. 

Charles Richetprémio Nobel de Fisiologia e fundador da Metapsíquica, discordante de Kardec, declarou no seu próprio Tratado de Metapsíquica que Kardec era quem mais havia contribuído para o aparecimento das novas ciências e lembrou que Kardec jamais fizera uma afirmação que não estivesse provada nas suas pesquisas. Depois desses sucessos no meio científico, numerosos e famosos cientistas se entregaram às pesquisas espíritas, alguns, como William Crookes, com o fim exclusivo de provar que os fenómenos espíritas não passavam de fraude. Após três anos de pesquisas, Crookes publicou os seus trabalhos, pondo-os ao lado do antigo adversário. Após a morte de Kardec, em 1869, Léon Denis o substituiu na direcção do movimento espírita mundial e, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que Kardec chamava de sociedade científica, ficou praticamente viúva. Mas as pesquisas prosseguiram no Instituto Metapsíquico, sob a direcção de Gustave Geley e Eugéne Osty, com grande proveito. Ao mesmo tempo, pesquisas continuavam a ser feitas em várias Universidades europeias, como a de Zöllner em Leipzig, as de Crookes em Londres, as de Ochorowicz na Polónia e assim por diante. A Ciência Espírita continuava a desenvolver-se. O Barão Von Schrenk-Notzing fundou em Berlim o primeiro laboratório de pesquisas espíritas do mundo, procedeu a valiosa série de pesquisas sobre o ectoplasma, com o auxílio de Madame Bisson. Após a primeira Guerra Mundial a Ciência Espírita continuava combatida, mas activa. Mas a guerra desencadeara no mundo as ambições e interesses materiais, deixando exígua margem para o interesse espiritual. Só agora ressurge na França, com André Dumas, uma instituição de estudos e pesquisas espíritas. A Revista Renaitre 2.000, dirigida por Dumas, substitui a Revue Spirite de Kardec. 

Este breve escorço do aparecimento e desenvolvimento da Ciência Espírita prova a sua vitalidade, apesar das campanhas incessantes e sistemáticas movidas contra ela. Em todos os grandes centros universitários do mundo as pesquisas espíritas prosseguem com resultados positivos. Nenhum princípio da doutrina foi sequer abalado pelas novas descobertas verificadas em quaisquer dos ramos da investigação. Pelo contrário, os postulados básicos do Espiritismo se comprovaram, confirmando a posição avançada da Ciência Espírita e da Filosofia Espírita perante a cultura actual. Isso representa, para a Terapia Espírita, uma base de segurança inegável para o desenvolvimento dos seus processos de cura. O que hoje se chama, na Europa, de cura paranormal, não é mais do que a cura espírita revestida ou fantasiada de novidades superficiais. 

No difícil e geralmente falho tratamento das viciações, o principal é a integridade moral dos terapeutas. Os viciados não são apenas portadores de vícios, mas também de cargas de influências psíquicas negativas provenientes de entidades espirituais inferiores que a eles se apegam para vampirizar-lhes as energias e as excitações do vício. As pesquisas parapsicológicas provam a existência desses processos de vampirismo espiritual, que na verdade são apenas a contrafacção no após morte dos processos de vampirismo entre os vivos. Nas relações humanas, quer sejam entre encarnados ou desencarnados, sempre existem os que se tornam parasitárias de outras pessoas. Não há nisso nenhum mistério, nem se trata de acções diabólicas. Em toda a Natureza a vampirização é uma constante que vai do reino mineral ao humano. A cura depende, em primeiro lugar, da vontade da vítima em se livrar do perseguidor. As intenções deste nem sempre são maldosas. Ele procura o amigo ou conhecido encarnado que era o seu companheiro de vício e o estimula na prática para obter assim os elementos de que necessita na sua condição de desencarnado. Obtém a satisfação por indução. Ligando-se mental e psiquicamente ao ex-companheiro, pode haurir as suas emanações alcoólicas ou as drogas psicotrópicas de que se servia antes da morte. De outras vezes o espírito vampiresco se serve de alguém que, não sendo viciado, revela tendências para o vício e o leva facilmente para a viciação. 

A terapia espírita consiste, nesses casos, num processo oral de persuasão, conhecido como doutrinação. Conseguindo-se levar o espírito vampiro e a sua vítima a se convencerem da necessidade e da conveniência de abandonarem o vício, ambos se curam. A doutrinação distingue-se profundamente do exorcismo por ser um processo racional e persuasivo e não pautado pela violência. A terapia espírita parte da compreensão de que ambos, o vampiro e a vítima, são criaturas humanas necessitadas de socorro e orientação. Essa posição favorece o tratamento, que ao invés de provocar reacções de indignação do espírito tratado como diabólico, lhe provoca a razão e o sentimento de sua dignidade humana e lhe mostra as possibilidades de uma situação feliz na vida espiritual. Submetido às reuniões de preces, passes e doutrinação, os dois espíritos, o desencarnado e o encarnado, são tratados com a assistência das entidades espirituais encarregadas desse trabalho amoroso. Kardec acentuou a necessidade de boas condições morais das pessoas que se dedicam a esse trabalho, pois só a moralidade do doutrinador exerce influência sobre os espíritos. Toda a pretensão de afastar o espírito vampiresco pela violência só servirá para irritá-lo e complicar o caso. A boa intenção do doutrinador para com o vampiro e a vítima, a sua atitude amorosa para com ambos, é factor importante para o êxito do trabalho. A formação de correntes de mãos dadas em torno do paciente. O uso de defumadores e outros artifícios semelhantes e, qualquer outra forma de encenação material são simplesmente inúteis e prejudiciais. O imprudente que gritar com o espírito, dando-lhe ordens negativas, arrisca-se a prejudicar o trabalho e chamar sobre si a indignação do espírito ofendido. O clima dos trabalhos deve ser de paz, compreensão, amor e confiança nas possibilidades de recuperação das criaturas humanas. Nenhum espírito tem a destinação do mal. Todos se destinam ao bem e acabarão modificando-se pelos seus próprios impulsos de transcendência. 

/… 


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Tratamento de Vícios e Perversões (1 de 2), 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

pensamento e vontade ~


Ideoplastia ~
 
(II

Por sua vez, a srta. Felicia Scatcherd assim se refere à atitude do ectoplasma, no decurso de uma das suas numerosas sessões: 

“Almoçamos com Marta (Eva C...) e, quando terminamos o almoço, ela manifestou o desejo de me proporcionar uma sessão. Resistia-lhe ao propósito, com receio de a fatigar, mas, foi por sua insistência, que a Sra. Bisson acabou intervindo e opinando que seria melhor não lhe contrariar os desejos. Iniciado o trabalho, a médium caiu logo em profundo transe, cabeça pendida para trás, de modo que nada lhe seria possível perceber na sua frente, ainda que acordada estivesse. Abertas ficaram as cortinas do gabinete mediúnico, cuja luz baixamos um pouco. Ainda estávamos a conversar, quando, de repente, vimos aparecer no chão abundante massa de substância, a cerca de 18 polegadas de distante e à esquerda da cadeira da médium. 

Essa substância era de alvura extraordinária e ligeiramente luminosa. 

Para comigo, pensei: “Como se pode produzir semelhante coisa? Quem sabe se essa substância está ligada à médium?” 

E o controle da médium logo respondeu à minha pergunta mental, dizendo: “Não há ligações quaisquer; pode passar a mão entre a substância e o corpo da médium.” 

Assim fiz, sem inconvenientes. 

Depois, coloquei um lenço branco, perfeitamente limpo, ao lado da substância, a fim de lhe avaliar a alvura e verifiquei que o lenço me parecia antes cinzento, comparado com a substância misteriosa. 

Coloquei-me, depois, de modo a poder tocar a substância sem ser vista, mas, quando estava a ponto de o fazer, todo o corpo da médium se contorceu em convulsivo espasmo e, o controle exclamou: 

– “Não me toque, não me toque, porque me mataria!” 

Arrependida da tentativa inconsiderada, humildemente procurei desculpar-me. 

Todavia, mais tarde, espontaneamente me autorizaram esse toque e, assim constatei que essa substância oferece certa resistência ao tacto, comparável à clara de ovo

E quanto à sua temperatura, pareceu-me um pouco inferior à do ambiente em que nos encontrávamos. 

Seria interessante pesar essa substância, disse eu à Sra. Bisson, mas compreendo, ao mesmo tempo, que se nos torna impossível fazê-lo, uma vez que o seu manuseio pode prejudicar a médium. 

Sorriu-se a Sra. Bisson e, dirigindo-se à filha, pediu-lhe que fosse à cozinha buscar uma balança. 

Entretanto, a mágica substância alongou-se, tomou a forma de um réptil, donde, concluo houvesse compreendido o que dela pretendíamos. 

Chegada a balança, foi-me dado experimentar uma das mais fortes emoções da minha vida

É que a substância, qual serpente que se levantasse sobre a cauda, viera colocar-se num dos pratos da balança, que estava sobre um pedestal, à altura de 28 centímetros do chão. 

E ali permaneceu todo o tempo necessário à verificação do seu peso, por mim julgado levíssimo, em relação ao volume. 

Serpeando depois para trás, deixou o prato e baixou ao soalho, para retomar o primitivo aspecto informe. 

Depois, enquanto a observava, sumiu-se. Não se retraiu, não se dissolveu; simplesmente – desapareceu.” (Light, 1921, págs. 809-810). 

Seria inútil perdermo-nos em conjecturas sobre a natureza dessa substância viva, sensível, inteligente, capaz de aparecer e desaparecer num relâmpago, pois isso equivaleria a pretendermos explicar o mistério da vida, que é segredo de Deus. 

Contentemo-nos em registar o que ressalta da nossa mentalidade finita, à qual não é lícito ultrapassar as leis reguladoras dos fenómenos. 

Limitar-me-ei, portanto, a anotar que, neste caso, tudo contribui para demonstrar que a substância viva, exteriorizada, obedece à vontade do subconsciente do médium

Daí, importa inferir que, da mesma forma pela qual, graças à vontade do médium, essa substância consegue moldar-se à forma de réptil para alçar-se a balanças e deixar-se pesar, assim também, noutras circunstâncias, ela consegue moldar semblantes humanos, conhecidos do médium, como a demonstrar que o pensamento e a vontade subconscientes são, precisamente, forças plásticas e organizadoras. 

Mas isto não é tudo, porquanto, ensinando-nos outras experiências que, muitas vezes, os semblantes materializados são desconhecidos do médium, embora o sejam dos assistentes, conclui-se que a substância viva é capaz de obedecer à vontade subconsciente de terceiras pessoas presentes, ou de lhes sofrer a influência, através do médium. 

Finalmente, como noutras circunstâncias ocorrem, nas quais as formas materializadas, vivas e falantes, são pessoas já falecidas e desconhecidas do médium e dos assistentes, devemos deduzir que a substância viva exteriorizada é susceptível de obedecer a entidades espirituais de desencarnados, ou – o que vem a dar no mesmo – de sofrer-lhes as influências através do médium. 

Posto isto, convém nunca perder de vista as conclusões expostas, mediante as quais constatamos que, se é verdade que a substância viva, exteriorizada, obedece a uma força organizadora inerente ao pensamento e vontade humana, também é verdade que tais – pensamento e vontade – não pertencem exclusivamente à personalidade integral subconsciente do médiummas provêm, algumas vezes, dos experimentadores e, muitas outras vezes, de entidades espirituais, de criaturas falecidas. 

Desta terceira categoria de manifestações não me ocuparei, visto que o tema aqui versado se prende aos casos em que a vontade organizadora é a do médium e dos assistentes, ou seja, dos vivos. 

Resta-me, apenas, passar em revista alguns casos mais importantes desse género. 

Começo por assinalar um fenómeno curioso, contra a realização do qual importa saibam prevenir-se os experimentadores. 

Esse fenómeno decorre da ductilidade com a qual a mentalidade subconsciente do médium de materializações absorve as ideias nitidamente definidas, formuladas verbal e mesmo mentalmente pelos experimentadores e pelos circunstantes. 

Assim se constata que, se o experimentador imagina uma teoria a priori, mais ou menos mecânica e mediante a qual se opera um dado fenómeno físico, vê-la-á confirmada a posteriori

Terá ele, então, a ilusão de haver sido instruído da verdade, quando realmente mais não fez que sugestionar o médium, predispondo-o a reproduzir, com a substância ectoplásmica, o modelo concreto da sua própria teoria. 

Assim, por exemplo, o Dr. Crawford, professor de mecânica psíquica, tendo imaginado a priori que as levitações da mesa se davam graças a uma “alavanca fluídica” que, saindo do organismo do médium, descia até ao chão para distender-se depois em braço vertical que tocasse o fundo da mesa e a levantasse, teve a surpresa de verificar que as provas fotográficas dessas levitações lhe davam absoluta razão, isto é: a tal “alavanca fluídica” existia, de facto, constituída pela forma imaginada. 

Mas, essa verificação de um facto não significava de modo nenhum que as levitações de mesa, em geral, se operassem dessa maneira, pois na verdade era a vontade subconsciente do médium que, tendo agasalhado a sugestão verbal de Crawford, lhe proporcionara docilmente a “alavanca” por ele pressuposta. 

Esta explicação do fenómeno em apreço já ninguém mais recusa, nem dela duvida. 

Dá-se, em suma, com as materializações, a mesma coisa que já se dera com o hipnotismo, a respeito do qual os primeiros investigadores científicos, inclusive o eminente Charcot, tinham nitidamente formulado, baseando-se em factos, as leis da sugestão e as fases específicas do sono letárgico e cataléptico dos pacientes; leis e fases que, na realidade, mais não eram que a consequência sugestiva das ideias teóricas preconcebidas pelos diferentes hipnotizadores. 

É o que observamos actualmente a propósito do polimorfismo da substância ectoplásmica exteriorizada, que pode por sugestão ou auto-sugestão revestir todas as formas imagináveis. 

Daí resulta que os experimentadores devem manter-se em condições mentais absolutamente neutras, no que toca às modalidades das representações materializadas, deixando aos processos científicos da análise comparada e da convergência das provas a tarefa difícil de esclarecer o grande mistério. 

/… 


Ernesto BozzanoPensamento e Vontade – Ideoplastia (2 de 3), 10º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Female Saint_1941, pintura de Edgard Maxence)

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~


IX – Os ensinamentos morais do espiritualismo ~ 

Agora temos que considerar se esta vasta série de fenómenos que nos fazem entrar em comunicação com seres que passaram para uma outra fase da existência, nos ensina algo que possa tornar-nos pessoas mais sábias e melhores. Eu pessoalmente acredito que sim e, me esforçarei, tão brevemente quanto possível, em apresentar o que são as doutrinas do espiritualismo moderno. 

A hipótese do espiritualismo não apenas considera todos os factos (e é a única que o faz), mas vai ainda mais longe pela sua associação com uma teoria do futuro estado da existência, que é o único que alguém já deu ao mundo em condições de ser confiado ao pensamento filosófico moderno. Há uma concordância geral e um tom de harmonia na quantidade de factos e comunicações chamadas ‘espirituais’, que têm levado ao crescimento de uma nova literatura e ao estabelecimento de uma nova religião. As principais indicações desta doutrina são, que, após a morte, o espírito humano sobrevive num corpo etéreo, dotado de novas capacidades, mas sendo mental e moralmente o mesmo indivíduo que era quando vestido de carne; que ele inicia, a partir de certo momento, um curso de progressão aparentemente sem fim, cuja velocidade está na medida que as suas faculdades mentais e morais são exercitadas e cultivadas enquanto se encontra na Terra; que as suas alegrias ou as suas misérias relativas irão depender inteiramente dele mesmo. Apenas na medida em que as suas faculdades humanas superiores fizeram parte dos seus prazeres aqui, ele irá encontrar-se contente e feliz num estado de existência no qual estes terão o mais completo exercício. Aquele que dependeu mais do corpo que da mente para os seus prazeres irá, quando aquele corpo não existir mais, sentir um desejo angustiante e, necessitará desenvolver vagarosa e dolorosamente a sua natureza intelectual e moral até que este exercício se torne fácil e prazeroso. Nem punições nem recompensas são distribuídas por um poder externo, mas a condição de cada um é a sequência natural e inevitável da sua condição aqui. Ele começa novamente do nível do desenvolvimento moral e intelectual que atingiu quando estava na Terra. 

Temos aqui um suplemento notável para as doutrinas da ciência moderna. O mundo orgânico foi levado a um alto estado de desenvolvimento e sempre mantido em harmonia com as forças da natureza externa pela grande lei da "sobrevivência do mais adaptado" actuando sobre organizações em estado de variação contínua. No mundo espiritual, a lei da "progressão do mais adaptado" ocupa o seu lugar e traz consigo uma ininterrupta continuidade do desenvolvimento da mente humana aqui começado. 

A comunhão do espírito com o espírito se dá pela leitura de pensamentos, pela afinidade e, é perfeita entre aqueles cujos seres estão em harmonia uns com os outros. Aqueles que diferem amplamente possuem pouco ou nenhum poder de intercomunhão e desta forma são constituídas ‘esferas’, que são divisões, não meramente de espaço, mas de organizações sociais e morais afins. Os espíritos das esferas superiores podem se comunicar e, o fazem algumas vezes, com aqueles duma esfera inferior, mas estes últimos não podem comunicar-se com os que se encontram acima. Há para todos um progresso eterno, um progresso que depende apenas do desenvolvimento da natureza espiritual pelo poder da vontade. Não há espíritos do mal, mas espíritos de homens maus e, até os piores estão certamente em progresso, ainda que lentamente. A vida nas esferas superiores possui belezas e prazeres que não somos capazes de imaginar. As ideias de beleza e poder são percebidas por meio da vontade e, o cosmos infinito se torna um campo onde os maiores desenvolvimentos do intelecto se podem estender pela aquisição do conhecimento sem limites. 

Pode pensar-se, talvez, que estou apenas a dizer o meu ideal de um estado futuro, mas não é isso. Toda a afirmação que fiz é derivada daquelas fontes desprezadas, a mesa girante (rapping table), a mão que escreve ou o médium que fala em transe. E para mostrar que não estou apreciando as ideias em si ou a maneira pela qual elas nos são transmitidas, adiciono alguns pequenos extractos de comunicações de uma das mais bem dotadas "médium de transe", a senhorita Emma Hardinge, agora senhora Hardinge-Brinca. 

Nas suas comunicações sobre o Hades, (*) ela recapitula a sua descrição do nosso progresso através das esferas: 

Da natureza destas esferas e dos seus habitantes, temos falado do conhecimento dos espíritos que ainda estão no Hades. Você teria alguma definição imediata da sua própria condição e aprenderia como vivê-la, quais deveriam ser as suas roupas, qual seria a sua mansão, cenário, propriedade e ocupações? Volte os seus olhos para si mesmo e pergunte o que aprendeu e o que fez nesta escola para as esferas do mundo dos espíritos. Então, há uma aristocracia e até uma escala real e graus de variação, mas a aristocracia é a do mérito e a realeza, a da alma. São apenas os homens verdadeiramente sábios que governam e, como a alma mais sábia é a melhor e, como a maior sabedoria é a do maior amor, logo a realeza da alma é a da verdade e do amor. No mundo do espírito, todo o conhecimento da Terra, todas as formas da ciência, todas as revelações da arte, todos os mistérios do espaço devem ser entendidos. A alma enaltecida está, então, amplamente pronta para a sua partida para um estado superior ao Hades, precisa conhecer tudo o que a Terra pode ensinar e ter praticado tudo o que o Céu requer. O espírito nunca deixa as esferas da Terra antes de possuir completamente toda a vida e o conhecimento deste planeta e das suas esferas. E embora o progresso se possa ter iniciado aqui e, nenhuma anotação daquilo que aprendeu, ou pensou, ou do que se esforçou por fazer é perdido aqui: todas as realizações serão finalizadas aqui, e nenhuma alma pode fazer o voo para o qual é chamada pela sua perfeição, ao Céu, até que tenha passado pela Terra e pelo Hades e, permaneça pronta essa sua completa peregrinação para entrar nas novas e indescritíveis glórias das esferas celestiais do além. 

Poderia o filósofo ou o homem de ciência pintar para si um ideal de estado futuro mais perfeito que este? Isto não se lhe impõe, como o que ele poderia desejar, se ele pudesse, por meio deste desejo, formar o seu próprio futuro? Pois este é o ensinamento do que ele rejeita por impostura ou trata por ilusão - como truques de trapaceiro ou delírios de louco: o espiritualismo moderno. Cito outra passagem da mesma fonte e, pediria aos meus leitores para que comparem a modéstia do primeiro parágrafo com a pretensão de infalibilidade usualmente utilizada pelos professores de novos credos ou de novas filosofias

/... 
(*) Nota da editora: O Hades, segundo os antigos gregos, seria a região do mundo espiritual para onde iriam os homens ainda em processo de evolução, de onde retornariam à terra para novas experiências na carne. Esse processo se renovaria por alternados períodos na Terra e no Hades, até que o espírito atingisse a perfeição, quando finalmente habitaria os Campos Elísios. É impressionante a semelhança da crença dos antigos gregos com os ensinamentos do espiritismo. 


Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico Sobrenatural, IX – Os ensinamentos morais do espiritualismo (1 de 3), 7º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sob painel, detalhe, de Edgard Maxence) 

domingo, 7 de novembro de 2021

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


O País de Gales. A Escócia. A obra dos bardos ~ 

Era uma terra importante, austera e imponente, a do País de Gales, antes que a indústria moderna a tivesse coberto de chaminés das usinas, perfurado por inúmeras bocas de minas e obscurecido o seu céu com espessa fumaça. Hoje ainda podem ser notados os resíduos da acção das forças subterrâneas que esculpiram as suas colinas, alteraram as suas montanhas, como aquela de Snowdon esse monte sagrado que domina toda a região, ultrapassa mil metros de altura e cuja origem vulcânica é evidente. 

Em todos os lugares, magmas de lavas e de pórfiro se alternam com as rochas e terrenos eruptivos, formando camadas em desordem que a Geologia designa pelo nome de cambrianas, que foi o nome primitivo da região. 

No relevo das suas montanhas, Gales do Norte reúne a graça dos vales e a abundância das torrentes. 

A Escócia também conheceu e conservou restos de manifestações dessa potência que ergueu cumes abruptos. Foi ela que levantou essas muralhas de granito, de basalto, de pórfiro, marginais ao canal caledónio e se prolongam até à costa da Irlanda sob a forma de colunata imensa, conhecida sob o nome de Calçadados Gigantes

A Escócia tem, além disso, a poesia, a beleza triste e severa dos seus lagos, dos seus pantanais e dos seus planaltos solitários, semeados de urzes róseas e de musgos de todas as cores. 

A parte norte é encrespada de picos, sempre envolvidos de neblina, mas tão imponentes quando se tingem de púrpura, no crepúsculo, ou de raios esbranquiçados da Lua. 

Acrescentemos as penínsulas escarpadas que se prolongam ao longe no mar, os promontórios incessantemente batidos pelas ondas e, se terá uma ideia dessa natureza formidável onde se ramifica a cadeia mestra que serve de coluna vertebral à Grã-Bretanha. 

Uma longa guirlanda de ilhas contém as chamadas Terras Altas da Escócia, e uma delas, Staffa, possui a célebre grutade Fingall, semelhante a um templo e, onde cada dia a maré crescente executa a sua cantiga queixosa. A raça dócil e forte que se adaptou a esses países parece ter bebido neles, na sua natureza grandiosa, as qualidades viris que a distinguem e, principalmente, toda essa vontade firme que, através dos tempos de provas, conserva, apesar de tudo, a esperança de uma renascença e de uma vida eterna

A causa desse fenómeno nos é revelada pelo espírito Allan Kardec numa das mensagens que publicamos adiante. Ele provém da corrente céltica que, desde os tempos primitivos, se estendeu no nordeste da Europa, impregnando profundamente o seu solo, e de onde o seu magnetismo atingiu os habitantes e, pouco a pouco, as gerações que ali se sucederam. 

É preciso notar, com efeito, que os ingleses e os saxões que vieram do leste possuem um carácter bem diferente, mais positivo e prático, menos inclinado para o ideal. Se, por excepção, se encontram entre eles naturezas mais idealistas, é raro que elas não se liguem por laços anteriores a alguma origem céltica. Tais são, por exemplo, Conan DoyleBernard Shaw e tantos outros, que, por mais ingleses que sejam, pela cultura e pela língua, não provêm menos de um tronco irlandês. 

Apesar das longas, das eternas perseguições, os anglo-saxões nunca conseguiram domar o sentimento nacional, o carácter étnico dos galeses e dos escoceses. Bem longe de os assimilar, eles foram, isso sim, assimilados pelos anglo-saxões, cada vez que entraram em contacto permanente. É assim que os operários ingleses, atraídos ao País de Gales pela indústria mineira, adoptaram rapidamente os hábitos e mesmo a língua desse país. 

Graças à sua energia persistente, o Principado de Gales soube guardar a sua autonomia administrativa, assim como as grandes franquias para as suas escolas, colégios e universidades e, até mesmo para a sua igreja nacional. Ele conservou a sua língua e a sua literatura, de tal modo que a cidade de Cardiff e o condado de Glamorgan se tornaram os focos mais intensos da propaganda céltica, onde se imprimem e se publicam todas as obras dos bardos antigos e modernos. 

Dali partiu o primeiro sinal do movimento pancéltico que reúne, todos os anos, delegados vindos de todos os pontos do horizonte para confraternizar num mesmo espírito e num mesmo coração. 

Se a força vital de um povo é a sua alma, fé na justiça imanente e num Além compensador, pode dizer-se que os galeses estão de tal sorte impregnados por ela que a sua convicção recai sobre todo o seu estado moral e social. Com efeito, nota-se ali uma coisa bastante rara na França: é que os tribunais frequentemente não entram em função por não haver acusados nem culpados para julgar. 

O alcoolismo, esse flagelo dos países célticos, ali também está em decréscimo. Encontram-se esses mesmos factos na Escócia, em grau menor. 

/… 


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO III – O País de Gales. A Escócia. A obra dos bardos (1 de 3), 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, OssianDesaixKléberMarceauHocheChampionnet, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)  

sábado, 23 de outubro de 2021

O Espiritismo na Arte ~


Parte III

~~ fusão do bem com o belo: o objectivo sublime da criação ~

(Março de 1922) 

Em resumo, na lei eterna do Universo, o objectivo sublime da criação, é a fusão do bem com o belo. Esses dois princípios são inseparáveis, eles inspiram toda a obra divina e constituem a base essencial das harmonias do Cosmos. 

O pensamento e a intenção divinos sendo o bem, a manifestação deles é o belo. Na sua ascensão, o ser deverá mais e mais compenetrar-se desse pensamento soberano, dessa vontade e, dedicar-se a realizá-los em si e à sua volta, sob formas sempre mais perfeitas. A sua felicidade consistirá em assimilar essa lei e em cumpri-la. As alegrias íntimas e profundas que resultarão disso são a demonstração evidente do objectivo do Universo, alegrias que toda a linguagem humana, dizem-nos os espíritos, é insuficiente para as definir. Essas leis, esse objectivo essencial, o Espiritismo não somente os ensina; ele ainda nos indica os meios de alcançá-los, de praticá-los. Sob esse ponto de vista, o seu papel é notável e a sua intervenção, no actual momento da história, é providencial. 

Há um século vimos assistindo ao colossal desenvolvimento da indústria e das suas invenções, à descoberta e à aplicação dos recursos físicos da Terra. Disso resultou, nas ideias, uma poderosa corrente materialista, que deu um novo impulso aos apetites, às necessidades imperiosas de bem-estar e de usufrutos. A necessidade de se opor uma contra-influência espiritualista a essa corrente cada vez mais se faz sentir. 

A evolução material necessita de uma evolução filosófica e religiosa paralela, sem o que as forças intelectuais se voltariam, cada vez mais, na direcção do mal e o mundo desabaria num grande cataclismo do qual a última guerra seria apenas o prelúdio e dele nos daria só uma ideia. 

Acima da vida presente, que é somente transitória, é preciso, entre outras coisas, fazer entrever a outra vida, que é o seu objectivo e a sua sanção. Unicamente pelo acordo final das ciências, das filosofias e das religiões mais evoluídas é que o pensamento atingirá os altos cumes e que a humanidade encontrará a confiança e a paz, com conhecimento das verdades essenciais, debaixo das suas diversas faces. 

/... 

Será que o reino do bem nunca terá lugar na Terra? 

«O bem reinará na Terra quando, entre os Espíritos que a vêm habitar, predominarem os bons. Então, farão com que aí reinem o amor e a justiça, fontes do bem e da felicidade. É através do progresso moral e praticando as leis de Deus que o homem atrairá para a Terra os bons Espíritos e dela afastará os maus. Estes, porém, não a deixarão, senão quando daí estiverem banidos o orgulho e o egoísmo. 

»A transformação da humanidade foi predita e avizinhais-vos do momento em que ela se dará, momento cuja chegada apressam todos os homens que auxiliam o progresso. Essa transformação verificar-se-á através da reencarnação de Espíritos melhores, que constituirão na Terra uma geração nova. Então, os Espíritos dos maus, que a morte vai ceifando dia-a-dia e, todos os que tentem deter a marcha das coisas, serão daí excluídos, porque estariam deslocados entre os homens de bem, cuja felicidade perturbariam. Irão para mundos novos e menos avançados, para desempenhar missões penosas, trabalhando pelo seu próprio avanço, ao mesmo tempo que trabalharão pelo dos seus irmãos mais atrasados. Não vêem neste exílio da Terra, transformada a sublime alegoria do Paraíso perdido e, na vinda do homem para a Terra em semelhantes condições, trazendo em si o gérmen das suas paixões e os vestígios da sua inferioridade primitiva, a não menos sublime alegoria do pecado original? Considerado deste ponto de vista, o pecado original prende-se com a natureza ainda imperfeita do homem que, assim, só é responsável por si próprio, pelos seus próprios erros e não pelos dos pais. 

»Todos vós, homens de fé e de boa-vontade, trabalhai, portanto, com ânimo e zelo na grande obra da regeneração, para colherdes pelo cêntuplo o grão que tiverdes semeado. Ai dos que fecharem os olhos à luz! Preparam para si próprios longos séculos de trevas e decepções. Ai dos que fazem dos bens deste mundo a fonte de todas as suas alegrias! Terão que sofrer privações muito mais numerosas do que os gozos de que desfrutaram! Ai, sobretudo, dos egoístas! Não encontrarão quem os ajude a carregar o fardo das suas misérias.» 

Resposta proferida pelo Espírito S. Luís, in "O Livro dos Espíritos"Allan Kardec, à pergunta número 1019 – colocada acima – do Paraíso, Inferno e Purgatório. 

Luís IX de França (i)


("Allan Kardec, que eu gosto de chamar com toda a legitimidade, o nosso querido professor Hipólito Leão, foi a pessoa designada para coligir o ensino comunicado pelos espíritos nos milhares de comunicações racional e metodicamente organizadas. ALLAN KARDEC faz a diferença, distancia-se com nobreza de sentido crítico, liberto da paixão de se impor como entidade liderante e sacralizada. O nosso querido e estimado professor Hipólito Leão continua na sombra, com a elevação da modéstia e a coragem da inteligência, a dizer as palavras certas e, a aconselhar a atitude racional, a cultura do rigor e da lucidez. "espiritualismo racional, in comentários a este sítio, 22/09/2013) 


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte III – Fusão do bem com o belo: objectivo sublime da criação, 11/13º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: A educação de São Luís, in painéis "A Vida de São Luís",  Panteão, Paris, óleo sobre tela de Alexandre Cabanel)

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

literatura do além-túmulo ~


Capítulo V 

No caso de que me vou ocupar, pode assinalar-se o primeiro passo decisivo no domínio supranormal, ainda que se fique muito perplexo quando se quer definir a verdadeira natureza da manifestação supranormal ocorrente. 

Quero falar do caso muito conhecido: “William Sharp-Fiona Macleod”, no qual se vê aparecer a misteriosa união de dois escritores, de carácter muito diferente, numa só pessoa. 

O crítico literário Sr. F. E. Leaning, que fez um estudo aprofundado do caso em questão, começa assim o seu artigo, aparecido no Light 1926, pág. 218: 

“Nos primeiros meses do ano de 1890, o mundo literário inglês foi agradavelmente surpreendido com a publicação de um romance e de uma colecção de versos que traziam o nome de Fiona Macleod. Embora esse nome fosse desconhecido de toda a gente, era evidente que se tratava de uma estrela de primeira grandeza que surgia no horizonte das letras. Foi o que, de facto, se deu e durante dez anos ela brilhou com um esplendor incomparável, fazendo as delícias dos amantes de uma literatura que se inspirava nas origens célticas. 

O sucesso incontestável dessa série de obras literárias, saturadas de estranho encanto, que prendia e entusiasmava os leitores, não devia surpreender, de tal modo estavam vivificadas por um “sal céltico”, espalhado às mãos cheias. A prosa continha mais poesia do que uma multidão de poetas poderia conceber. 

Foi assim que a obra de Fiona Macleod encantou os corações de uma geração inteira. O grande Meredith saudara a novel escritora como uma mulher de génio e, autores como Yeats e Russell acolheram-na como seu rival

Quando lhe pediram que lhes fornecesse algumas informações sobre a sua pessoa, disse ter nascido, há mil anos, de um pai chamado “Sonho” e, de uma mãe chamada “Romance”, numa residência situada lá onde o arco-íris conquista a sua forma

Naturalmente, o mistério de que se cercava a amável escritora fez com que diversas pessoas sonhassem com a fantasia e algumas mesmo chegaram até a adivinhar a verdade, mas estas foram logo neutralizadas pelo mais solene desmentido ou completamente reduzidas ao silêncio, desvendando-se-lhes o mistério, depois de se lhes ter feito jurar guardar segredo. Este foi, efectivamente, bem guardado até à morte do autor, que ocorreu em 1905. Foi então que o mundo literário ficou estupefacto e um zumbido de abelhas em enxames se formou em todas as revistas, quando se soube que a misteriosa mulher de letras, cheia de graça e de fantasia femininas, com a qual vários autores haviam cortejado de longe, era a mesma pessoa que o escritor e romancista William Sharp.” 

Tal é a descrição proveitosa na qual F. E. Leaning narra o sucesso literário triunfal da misteriosa Fiona Macleod, terminado com o desfecho que se acaba de ler. 

A viúva de William Sharp publicou um volume de memórias biográficas de seu marido, expondo os factos na sua crónica verdadeira e detalhada, com o fim de facilitar a tarefa dos psicólogos desejosos de analisar o caso. Soube-se, pelo volume em apreço, que ele percebia à sua volta companheiros de brincadeira invisíveis, via os “espíritos das árvores”, o “espírito da natureza” que lhe apareciam sob formas gigantescas ou anãs. 

Certo dia, teve a visão da “fada dos bosques”, sob o aspecto de uma mulher de grande beleza que ele chamou de “Olhos-de-estrela”. Tinha sete anos quando a viu pela primeira vez durante um dia quente de verão, erecta e esplêndida, no meio de flores campestres, de campânulas azuis. Tal encanto, tal amor, se desprendiam dos seus olhos que o menino se atirou nos braços dela. Encontraram-no, na relva, choroso e lamentoso, pedindo, apaixonadamente, para rever a bela dama de “cabelos-de-ouro-luminoso”. 

Disseram-lhe que ele tinha sido ofuscado pelo sol e que havia tido um belo sonho. Sharp acrescenta: “Não disse nada. Tranquilizei-me, mas não me esqueci da visão”. E quando o menino cresceu, quando se tornou escritor e romancista, “a fada dos bosques”, sob o nome de Fiona Macleod, interveio, ditando por “inspiração” romances e poemas saturados de graça feminina, de fantasias, de sonhos, de reminiscências célticas de há mil anos. Tal foi, pelo menos, a convicção profunda de William Sharp, que sofria, entretanto, momentos de incerteza, provenientes da circunstância de que era sujeito a emergências altamente sugestivas, de recordações pessoais de uma outra existência, vivida como mulher, o que o levava, por vezes, a identificar-se como Fiona Macleod

Na página 301 das Memórias em questão, a viúva fala, nos seguintes termos, das diferenças radicais existentes entre o modo de seu marido escrever quando personificava Fiona Macleod e o outro quando escrevia por sua própria conta: 

“Durante os anos em que Fiona Macleod desenvolveu, tão rapidamente, a sua própria personalidade, o seu colaborador experimentava a necessidade de sustentar, nos limites do possível, a reputação que havia adquirido na qualidade de William Sharp. Ele estava mesmo empenhado em não a perder, mas havia uma diferença radical entre as modalidades de produção dos dois géneros literários. Os escritos de Fiona Macleod eram a consequência de um impulso interior irresistível: ele escrevia porque era obrigado a exprimir o que lhe brotava do espírito, sem ser inquirido, pouco importando se isso lhe causava prazer ou tristeza. Quanto ao escritor William Sharp, ele produzia com modalidades diametralmente opostas às da sua personalidade gémea: escrevia porque havia decidido fazê-lo e polia cuidadosamente a forma do que escrevia. Finalmente, ele escrevia porque as necessidades da vida lhe impunham...” 

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Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo V (1 de 2), 5º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence

domingo, 26 de setembro de 2021

~ nas garras do pensamento crítico


O velho | e o novo 

É evidente que o conhecimento da sobrevivência alarga a concepção humana da vida e do mundo, muito para além dos limites terrenos ou orgânicos da concepção materialista. Oliver Lodge classificou o Espiritismo de “nova revolução copérnica”. 

Assim como Copérnico rompeu de vez o ergástulo mental do geocentrismo, a revolução espírita desloca dos organismos materiais o conceito de vida, rompe o organocentrismo da biologia moderna e reduz a uma simples confusão do efeito pela causa o chamado “materialismo-psicológico”. 

Em consequência, leis e perspectivas novas aparecem, exigindo verdadeira revisão dos conhecimentos do homem e do seu modo de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica entre o velho e o novo tão bem definida no Evangelho do Cristo e nas obras de Allan Kardec

Vagas aspirações ~~

Alegam os mais ferrenhos materialistas que o conhecimento da sobrevivência – se de facto ela existisse – não serviria senão para perturbar a visão presente do homem, desviando-o da execução pura e simples das tarefas imediatas. Kardec, que condenou a vida contemplativa e, pregou a necessidade da acção contínua, dando o exemplo concreto da sua própria vida de militante espírita, replica: “...a incerteza, no tocante às coisas da vida futura, faz que o homem se lance, com uma espécie de frenesim, sobre as da vida material.” 

A réplica de Kardec não exige demonstrações. A vida moderna, baseada no materialismo prático do mundo capitalista, vale por uma experiência natural, em escala de assombro. Nunca se viu tamanho frenesim na procura dos bens materiais. A advertência de Francis Bacon: “Busca primeiro as boas coisas do espírito, que o resto será suprido ou não sentirás a sua falta”, com base naquela do Cristo: “Busca primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça e, tudo o mais te será dado por acréscimo”, não soa ao coração, mas apenas aos tímpanos desatentos do homem moderno. Diante disso, poderíamos esperar do materialismo teórico ou filosófico uma nova aplicação do princípio de Hahnemann, – similia similibus curantur – para curar o mundo desse delírio febril? 

Kardec diz ainda: “Esse é o inevitável efeito das épocas de transição. O edifício do passado rui, sem que o do futuro esteja construído. O homem é como um adolescente, que já não tem a crença ingénua dos primeiros anos e não adquiriu ainda os conhecimentos da idade madura. Não possui mais do que vagas aspirações, que não sabe definir.” 

A sociedade socialista, baseada na filosofia materialista mais avançada, terminaria atormentada por essas “vagas aspirações” de que nos fala Kardec. E mais uma vez surgiria, no seu próprio seio, a luta entre o velho e o novo. A hipótese não é gratuita, pois para tal não acontecer, seria necessário que não existisse uma vida futura, que a sobrevivência não fosse uma das realidades do Universo. 

/… 


José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, "O velho e o novo / Vagas aspirações", 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades


Coincidências Ideológicas com Giuseppe Garibaldi e Giuseppe Mazzini ~ 

Todo o vocabulário filosófico de Victor Hugo se assemelha a esse tom dramático que possuem as comunicações mediúnicas. Se se fizesse um estudo das melhores páginas que constituem a literatura mediúnica, ver-se-ia que elas possuem o mesmo estilo do grande poeta francês. O vate de Jersey parecia estar continuamente em transe mediúnico. Por isso a sua doutrina é a do infinito, onde o Ser se mostra como uma partícula divina que electriza a essência cósmica e universal. Mensagens psicografadas como as que apresenta um livro intitulado "Símbolo ou o túmulo fala" (*), corroboram o que dissemos. Há nessa obra mediúnica páginas de um dramatismo espiritual que fazem pensar no estilo victorhugueano. É que no invisível está o mundo das almas onde o grande e majestoso tem as suas raízes. 

De facto, a literatura mediúnica não é convencional nem fictícia; pelo contrário, brota dos abismos profundos do invisível, das mesmas raízes do imaterial, onde o génio só pode falar a linguagem do eterno. O poeta concebia na sua cosmogonia um homem imortal e predestinado e, como ele dizia, sábio, visionário, pensador, taumaturgo, navegante, arquitecto, mago, legislador, filósofo, herói, poeta. Da sua ideologia espiritual e poética se desprendia a mesma teleologia existencial da codificação de Allan Kardec. A ideia do progresso infinito habitava no pensamento de Victor Hugo, pois a alma era para ele um ser que vem ao mundo pela enésima vez e não uma entidade biológica criada no instante da concepção. Sempre pressentiu que uma misteriosa pré-existência rege o destino do espírito; por isso perguntava: "Quem tem incubada essa águia? O abismo incubando o génio? Existe maior enigma? Terão visto outros mundos as grandes almas que transitoriamente se adaptam à terra? Chegarão alguns por isso com tantas intuições?" 

Assim; pois, pressentia que o mistério histórico está entretecido pelos seres espirituais que lhes dão características pessoais a seu tempo. O seu génio se atirava frente a esses seres mecânicos e vazios quando negavam a pré-existência dos espíritos. A defesa que fazia da pedra, do burro, da flor e do anjo era baseada na unidade espiritual da criação. O pensamento de Deus estava para Victor Hugo em tudo o que existe, por isso, nada e ninguém estaria excluído do grande desenvolvimento da história natural e divina. A sua cosmovisão filosófica e religiosa respondia ao que lhe transmitiram os espíritos desencarnados durante o seu desterro na ilha de Jersey, ou seja, desde que a Sra. E. de Girardin (Delphine Gay) o iniciara nas revelações dos tripés mediúnicos. 

O seu trabalho poético e literário deixou de ser um artifício intranscendente, como acontece quando se escreve sem uma visão espiritual da vida. A obra de Victor Hugo, por suas raízes aprofundadas no eterno, foi uma defesa do homem ao considerá-lo como um espírito reencarnado na terra. A sua criação poética se colocou ao lado da maior revelação dos tempos modernos; por isso, disse: ''O Espiritismo é o acontecimento mais notável do século XIX". Coincidiu assim com Giuseppe Garibaldi, que afirmou: "Esta religião da verdade e da ciência se chama Espiritismo''. O seu pensamento também se relacionou com Giuseppe Mazzini, que escreveu uma página admirável para definir a missão da Doutrina Espírita. Ela segue transcrita na íntegra para conhecimento do leitor. 

''O Espiritismo científico, isto é, a alma humana analisada experimentalmente nas suas propriedades e manifestações dará tão inesperados conhecimentos aos estudos, que perante eles quedarão atónitos, abismados e se derrubarão todos os humanos edifícios políticos e morais que até ao presente têm dominado. 

"Pela aplicação prática da resultante do estudo do Espiritismo, uma nova ética, pura, regenerada, potente surgirá da natureza. Será o potentíssimo credo que fará morrer as mais arraigadas instituições político-religiosas que reinam sobre a terra

"Por uma maior e mais disciplinada apreciação das leis que regem o universo, mudará completamente a orientação da ciência e o barulho inevitável que isso haverá de produzir afectará todas as manifestações da vida, que, então, se explicarão pela razão do maior, do mais santo dos conceitos: o do dever. 

"É isto que suporta o Espiritismo. A luta será áspera, fatigante; mas a consequência será inevitável. De que valerá o conluio contrário de todos os animais daninhos da terra: o mais forte, indomável Vetro avança a passos largos, saturado da sabedoria e da fé dos sábios e dos heróis de todas as épocas e, com os fulgores da ciência positiva caçará as feras até nas profundezas do seu mundo interior. 

''Então soprará sobre a terra as auras da paz, de gozo; do peito dos homens surgirá espontâneo um hino de louvor, de amor a Deus; a humanidade, perdendo o último vestígio animal que possui, voltará qual nascente mariposa, bela e pura, à conquista das mais excelsas regiões, das puras esferas. " (**) 

Nestes mesmos pensamentos de Giuseppe Mazzini assentava o sentir filosófico de Victor Hugo quanto ao valor histórico e social da filosofia espírita. Esse mesmo sentir fez falar também outros pensadores como Emilio Castelar, José Pi y Margall, Camille FlammarionAbrahan LincolnVictorien Sardou e outros mais, que eram solidários com a missão espiritual dos fenómenos mediúnicos. Sem dúvida, fez-se silêncio sobre o sentimento espírita de Victor Hugo, mas, nessa negação, nessa oposição sistemática é que está a origem do desastre espiritual da humanidade. Se, por um lado, querem negar que a alma é imortal, por outro, os que nela crêem negam que a alma imortal possa comunicar-se com os homens por razões já insustentáveis e que não vamos considerar aqui. Mas o certo é que somente pelo fenómeno mediúnico, como manifestação do espírito imortal é que a razão humana se inclinará reverente a Deus. Por isso, Victor Hugo aceitou o Espiritismo como mensagem salvadora para o Homem, a Verdade e a Beleza. 

/… 
(*) Obra editada em Paris, em 1933. 
(**) Revista Lumen, Tarrasa, Espanha, 1905. N. do Autor. 


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, COINCIDÊNCIAS IDEOLÓGICAS COM GIUSEPPE GARIBALDI E GIUSEPPE MAZZINI, 10º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON