sábado, 21 de dezembro de 2019

O Mundo Invisível e a Guerra ~

IV
O Mês de 
Jeanne d’Arc

(Maio de 1915)

A Terra voltou a apresentar os seus encantos após o longo sono do inverno.

Debaixo das minhas janelas, no vasto jardim público, os tufos de flores brilhantes se misturam com as folhagens verdes.

Na calma superfície das águas, cisnes deslizam majestosamente e nos altos ramos as aves canoras, numa espécie de encantamento, fazem intermináveis concertos. Uma suave claridade envolve todas as coisas, mas, ao longe, na linha de combate, a fumaça da peleja cobre o solo e envolve o céu.

Estamos em maio, mês de Jeanne d’Arc, assim denominado porque ele reúne as datas dos mais notáveis acontecimentos de sua vida: dias 7 e 8, libertação de Orléans; dia 24, a sua prisão em Compiègne, e no dia 30, o seu martírio em Rouen.

Nessa época do ano o meu pensamento comovido sempre busca a Virgem Lorena como um modelo de força e beleza moral, porque nela se encontram, na aparência, as qualidades mais antagónicas: energia e sensibilidade, firmeza e delicadeza, idealismo e senso prático. Invoco-lhe o espírito e medito em seu sacrifício.

Nos dolorosos momentos por que passa a França, essa invocação tem carácter geral e grandioso, num apelo supremo de uma nação ameaçada, espezinhada por sanguinário inimigo. É o grito de angústia de um povo que não quer morrer e que suplica o auxílio das forças celestes invisíveis.

O culto de Jeanne d’Arc era exercido, antes da guerra, por numerosos fiéis, porém muitos consideravam os factos de sua vida como acontecimentos vagos, distantes, quase lendários, diminuídos pela distância do tempo.

As tentativas do clero católico para monopolizar a Virgem Lorena levantaram contra ela um partido político completo.

A ideia de se criar uma festa nacional para lhe comemorar a memória jazia há mais de dez anos no arquivo da Câmara e um enxame de críticos meticulosos e malévolos se preocupou com os pormenores de sua história, para contestá-los, denegri-los ou, pelo menos, diminuir-lhe o brilho!

Um Anatole France a apresentava aos nossos contemporâneos como uma mística quase idiota; Thalamas chegava mesmo a injuriá-la.

Gabriel Hanotaux referia-se a ela mais dignamente, porém queria fazê-la passar por instrumento das ordens religiosas mendicantes, o que era pura fantasia.

Assim pois, do messias de nosso país, admirado e glorificado pelo mundo inteiro, os franceses haviam chegado a fazer um tema de polémicas e discórdias.

Hoje a transformação é completa: debaixo da tempestade de ferro e fogo que esmaga a França, na angústia que a sufoca, toda a nação dirige os seus pensamentos para Jeanne e lhe pede socorro. Suplicam-lhe que salve, pela segunda vez, a pátria invadida.

Atendendo a esses apelos, do seio do Espaço onde se encontrava, ela paira sobre as nossas misérias e dores, para atenuá-las e consolá-las. Mais ainda: à frente de um exército invisível, actua na frente de batalha transmitindo aos nossos soldados a chama sagrada que a envolve, impelindo-os ao combate e à vitória!

Há poderosos e bem-aventurados espíritos que a rodeiam, porém a todos ela domina com a sua sublime energia. A filha de Deus tomou para si a nossa causa. Certa de tal auxílio na luta terrível que sustenta, a França não sucumbirá!

Será que se sabe quanto sofrerão esses nobres espíritos em contacto com a Terra? A sua natureza delicada e purificada lhes torna penosa a permanência no nosso mundo inferior.

Necessitam de um esforço permanente de vontade para se manterem na nossa atmosfera saturada de maus pensamentos e fluidos grosseiros, ainda agravada pelas vibrações das violentas paixões que a actual guerra desencadeia.

Juntai a isso o espectáculo das mortandades, dos cadáveres, dos estertores dos moribundos, dos gritos dolorosos dos feridos e da visão das terríveis feridas produzidas pelos explosivos, por todas as máquinas mortais que os exércitos modernos carregam consigo.

Quantas emoções pungentes para conter, para dominar! Na Idade Média, Jeanne presenciou, certamente, cenas dessa espécie, porém em proporções menores! Não obstante, ela reagirá energicamente contra qualquer desfalecimento, porque tudo se torna secundário e desaparece diante do objectivo essencial que é mister alcançar: a libertação da pátria.

A irradiação da força fluídica de Jeanne expande-se sobre todos, até sobre os ingleses, agora nossos companheiros de armas.

Alguns dos nossos soldados, dotados de faculdades psíquicas, a vêem passar no meio da fumaça dos combates, mas todos, intuitivamente, sentem a sua presença e nela depositam a sua suprema esperança. Daí resultam as qualidades heróicas demonstradas, que causam decepção aos alemães e assombro a todos quantos, sem razão aparente, acreditavam na inevitável decadência de nossa raça.

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IV – O Mês de Jeanne d’Arc 1 de 3, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

domingo, 24 de novembro de 2019

pensamento espírita argentino ~

CAPÍTULO I

~~ fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história ~

Que somos? 

(VIII)

As localizações cerebrais não são senão centros que têm ramificações e pontos de contacto em todo o sistema nervoso, sobre os quais, no estado normal, age o espírito, podendo deles prescindir em casos como os que relatamos e em outros mais extraordinários e difíceis de explicar dentro do estreito limite da psicofisiologia, como os fenómenos metapsíquicos, anímicos e espíritas.

As mesmas percepções podem chegar à alma por diferentes vias nervosas, ainda que produzidas por sensações diversas. As sensações tácteis dão ao cego e também ao que não o seja, idênticas percepções de forma e tamanho e até de significado como as percepções visuais e, a vista pode suprir o tacto. As sensações olfactivas estão tão intimamente ligadas às do gosto que em muitíssimos casos podem supri-las; o ouvido é um grande auxiliar da vista e pode informar à alma percepções análogas. A alma é una e indivisível e talvez não esteja longe o dia em que se possa, por exemplo, manusear as cores e ver os sons, como auxiliares dos órgãos de percepção. E esses mesmos órgãos podem ser, em casos anormais, alterados e o sujeito perceber por vias diferentes, como nos casos de transposição dos sentidos, estudados por Lombroso, Petetin e outros.

O primeiro destes sábios narra o facto de uma jovem de 14 anos de idade, filha de um dos homens mais inteligentes da Itália e de mãe sã e robusta, que ao chegar à puberdade sofreu tantos transtornos orgânicos, seguidos de convulsões histéricas, de hiperestesia e de transposição dos sentidos, que ele (Lombroso) foi chamado a assisti-la: enquanto perdia a visão dos olhos, via com o mesmo grau de agudeza com a ponta do nariz e com o lóbulo da orelha esquerda. Igual transposição se havia operado com o olfacto: “o amoníaco, a assa-fétida (i) não lhe produziam no nariz a mais leve reacção, enquanto que outra substância ligeiramente odorífica posta sob o queixo provocava-lhe uma impressão viva e uma mímica característica”... Mais tarde, o olfacto se transportou para o calcanhar e então, quando o odor lhe desagradava, movia a perna da direita para a esquerda e quando lhe era agradável ficava quieta, sorria e respirava com frequência. Em tais condições teve mais tarde fenómenos de lucidez profética: prognosticava com assombrosa exactidão, às vezes com 15 dias ou mais de antecedência, o dia e a hora em que lhe sobreviria o acesso histérico e indicava o metal que o faria cessar e que era insubstituível. Viu de seu leito e a um quilómetro de distância o seu irmão no teatro e predisse a este e a seu pai factos que aconteceriam (e que se verificaram) dois anos depois.

Relacionados com estes factos estão os fenómenos psicométricos e alguns de clarividência (em estado normal ou sonambúlico) em que certos sujeitos sensitivos percebem, vêem, a grandes distâncias e fora das condições visuais ordinárias, mediante o contacto de um objecto com os dedos da mão ou colocando aquele em certas zonas do corpo chamadas hipnógenas, factos ou acontecimentos presentes, passados ou futuros; como igualmente os casos de transmissão de pensamento tomando como meio a mão do transmissor e a do sujeito receptor, fenómeno que temos efectuado centenas de vezes e cujos resultados descartam a hipótese da influência física do operador. Nestes, como nos fenómenos análogos de transposição dos sentidos, não são os olhos que vêem ou, mais exactamente, não se vê por mediação dos olhos e; tais fenómenos contribuem, por si mesmos, para confirmar a tese espiritualista da unidade psíquica, sinestésica, unissensível e uniperceptível que, mesmo nas condições psicofisiológicas normais, possui diferentes formas de percepção, de acordo com a organização sensorial. Em estados supranormais ou mediante faculdades psico-sensitivas excepcionais podem transformar-se umas percepções em outras ou ter o espírito uma percepção psíquica directa, capaz de reduzir os diversos modos de percepção psico-orgânica à unidade perceptiva e perceber factos e acontecimentos que escapam à percepção ordinária.

Referindo-se a esta classe de fenómenos, disse o eminente psicólogo Frederic Myers:

“Poder-se-ia perguntar até que ponto os órgãos terminais especializados participam dessa actividade perceptiva exagerada e a resposta a esta pergunta nos permitiria elucidar o fenómeno, conhecido sob o nome de transposição dos sentidos e que ocupa o termo médio entre a hiperestesia e a telestesia ou clarividência. Já se sabe em que consiste esse fenómeno: é, por assim dizer, a substituição de um órgão dos sentidos por outro, como, por exemplo, a visão que sentem por meio da extremidade dos dedos.

“Por acaso se trata de uma verdadeira sugestão e um órgão é realmente capaz de assumir uma função que não lhe pertence e que é atribuição de outro órgão definido e especializado para esta função? Eu não creio. Segundo o meu sentir, a extremidade dos dedos não constitui, de maneira alguma, nos casos de que se trata, um órgão da visão, como as zonas chamadas hipnógenas não constituem órgãos destinados a transmitir a sugestão hipnótica. Mas aqui trata-se de um estado de telestesia que não implica necessariamente a percepção pelo organismo corporal; unicamente, o espírito que percebe deste modo supranormal se encontra sob a impressão de que percebe através de tal ou qual órgão corporal.”

E acrescenta:

Cada sentido especial é ao mesmo tempo um sentido interno e um sentido externo; implica no trajecto cerebral de uma capacidade desconhecida e em órgãos terminais cuja capacidade se presta mais à mensuração. A relação entre a visão interna, mental, como a percepção psicológica não-sensorial, por sua parte, com a visão ocular, por outro, constitui precisamente um dos pontos cujo exame profundo parece necessário.” (ii)

Por seu lado, diz o célebre antropólogo italiano Cesare Lombroso:

“A verdade é que não se pode dar uma explicação científica (isto é, dentro da psicologia empírica) destes factos, que entram no limiar daquele mundo que todavia deve chamar-se oculto, porque não foi explicado.”

Mas acrescenta em nota à parte:

“Agora, com as noções acerca do duplo, pode-se pretender uma explicação!” (iii)

Esse duplo – chamado corpo astral pelos vedas, teósofos e ocultistas e, perispírito pelos espíritas – que em princípio se considerou mera afirmação religiosa, mais tarde como uma hipótese racional, para explicar certos fenómenos psíquicos, é hoje uma verdade positiva, demonstrada experimentalmente pela verdadeira ciência da alma e que o Espiritismo oferece como um meio de explicação dos fenómenos metapsíquicos, da possibilidade da percepção sem órgãos materiais e das relações do mundo da matéria e o mundo do espírito.

/...
(i) Planta de cheiro nauseante. (N.T.)
(ii) A Personalidade Humana, págs. 146 e 163.
(iii) Hipnotismo e Espiritismo, pág. 16.


Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (VIII), 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Segundo

KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (V)

Em reforço do corpo carnal do Cristo, vem o Codificador com os aspectos morais "do mais alto poder". Vejamos:

"Se durante a sua vida Jesus tivesse estado nas condições dos seres fluídicos, não teria experimentado nem a dor nem nenhuma das necessidades do corpo; supor que ele assim era, será retirar-lhe todo o mérito da vida de provações e de sofrimentos que havia escolhido como exemplo de resignação. Se tudo nele eram só aparências, todos os actos de sua vida, o anúncio reiterado de sua morte, a cena dolorosa do Jardim das Oliveiras, a sua oração a Deus para que afastasse o cálice dos seus lábios, a sua paixão, a sua agonia, tudo, até ao seu último grito no momento de entregar o Espírito, não teria sido senão um vão simulacro, para enganar com relação à sua natureza e fazer crer no sacrifício ilusório de sua vida, uma comédia indigna de um homem honesto e simples, quanto mais e por mais forte razão, de um ser também superior; numa palavra, teria abusado da boa fé dos seus contemporâneos e da posteridade. Tais são as consequências lógicas desse sistema, consequências que não são admissíveis, pois resultariam em diminui-lo moralmente, em lugar de o elevar.

"Jesus teve, – conclui Kardec – pois, como todos, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é confirmado pelos fenómenos materiais e pelos fenómenos psíquicos que assinalaram a sua vida."

Ao passar da análise puramente física para a análise das consequências morais que resultariam do corpo fluídico de Jesus, Kardec também muda de tom. Até então frio, ele é ai veemente. Nasce-lhe da pena um como que brado de alerta: a vida de Jesus teria sido apenas "um vão simulacro", se tivesse tido um corpo fluídico! Não se pode admitir isso, sob pena de "diminui-lo moralmente". A grande força de Jesus – crê Kardec –, está na fusão da sabedoria e da prática, do conhecimento e do exemplo, do crer e fazer. Assim, pois, acreditar no seu corpo fluídico "será retirar-lhe todo o mérito da vida de privações e de sofrimentos que havia escolhido como exemplo de resignação". "Meu Pai, disse Jesus, se possível, afaste de mim esse cálice". Ora, essa frase não teria sentido para o Codificador caso fosse Cristo um agénere, assim como essa outra: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste", dita no momento de sua morte; e como inúmeras mais. A possibilidade de que Jesus seja diminuído moralmente assusta Kardec ao ponto de fazê-lo escrever com veemência: "uma comédia indigna de um homem honesto e simples!" (...) "Tais são as consequências lógicas desse ensino", fala forte, compreendendo que o Jesus agénere "teria abusado da boa fé dos seus contemporâneos e da posteridade", fingindo situações e sofrimentos, pois "não teria experimentado nem a dor nem nenhuma das necessidades do corpo".

No pensamento de Kardec, as coisas passam-se de maneira simples: houve um Cristo agénere, aquele que "ressuscitou" depois da morte e apareceu a Maria Madalena no sepulcro e aos dois discípulos na estrada de Emaús e não foi logo reconhecido por eles, precisando recorrer a detalhes para ser descoberto. Esse o agénere perfeito, de curta duração, que não podia ser morto, apresentando-se na sua realidade de depois da morte.

Kardec, porém, não pára aí. Ei-lo seguro na sua posição contrária ao corpo fluídico:

"As aparições de Jesus depois da sua morte são narradas por todos os evangelistas com detalhes circunstanciados que não permitem duvidar da realidade do facto. Aliás, elas se explicam perfeitamente pelas leis fluídicas e pelas propriedades do perispírito, e nada apresentam de anómalo com os fenómenos do mesmo género, dos quais a História antiga e contemporânea oferece numerosos exemplos, sem exceptuar a tangibilidade. Se se observam as circunstâncias que acompanharam as suas diversas aparições, reconhecem-se nelas todos os caracteres de um ser fluídico. Aparece inopinadamente e desaparece da mesma forma; é visto por uns e por outros sob a aparência que não o tornam reconhecido, nem mesmo pelos seus discípulos; mostra-se em lugares fechados, onde um corpo carnal não penetraria; a sua linguagem não tem a vivacidade de um ser corporal; tem o tom breve e sentencioso, particular aos Espíritos que se manifestam dessa maneira; todas as suas atitudes, numa palavra, têm qualquer coisa que não é do mundo terrestre. A sua apresentação causa ao mesmo tempo surpresa e pavor; os seus discípulos, ao vê-lo, não lhe falam com a mesma liberdade; sentem que já não é o homem.

"Jesus mostrou-se, pois, – afirma Kardec – com o seu corpo perispirital, o que explica não ter sido visto por aqueles a quem não desejava mostrar-se; se estivesse no seu corpo carnal, teria sido visto por todos, como quando era vivo. Desde que os seus discípulos ignoravam a causa primária do fenómeno das aparições, não se apercebiam dessas particularidades, as quais provavelmente não notavam; viam Jesus e o tocavam, o que para eles deveria ser o seu corpo ressuscitado."

Os detalhes nesse particular do Cristo desencarnado, apresentando-se aos discípulos na condição de agénere, são relacionados por Kardec com muita clareza. É a voz que soa diferente, é a linguagem que não tem vivacidade, é o tom breve e sentencioso, é a surpresa e o pavor de sua aparição até em lugares fechados. Tudo, enfim, que um agénere mostra nas suas manifestações.

O outro Cristo, aquele que viveu durante trinta e três anos até desencarnar na cruz, era de carne, esteve convicto disso o Codificador.

Compreendem-se, assim, os motivos que levaram Kardec a não avalizar a obra "Os Quatro Evangelhos" nem permitir a presença de Roustaing e da médium Emilie Collignon na "Revista Espírita" depois de 1866. Os motivos são exactamente estes: a base dos "Quatro Evangelhos" é o corpo fluídico de Jesus, no dizer do próprio Codificador; ora, Kardec concluiu que o corpo fluídico era falso, logo "Os Quatro Evangelhos" ficaram sem razão de ser ou, como diria ele, o edifício ruiu. Junte-se a isso o factor moral consequente do corpo fluídico, talvez o ponto que mais chamou à atenção de Kardec. É, pois, certo que Kardec não aceitou a obra roustainguista e não viu em Roustaing, como também na médium Collignon, pelo que fizeram em "Os Quatro Evangelhos", os seus muito importantes colaboradores, ficando reduzida a mera opinião individual dos Espíritos que a assinaram, ''a Revelação da Revelação". Só isso.

/...


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO FLUÍDICO 5 de 5, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)

domingo, 14 de julho de 2019

do país da luz ~

Silva Pinto 
(II)
Quando li ao Ex.mo Senhor Silva Pinto a segunda carta a ele dirigida, este grande espírito, disse, profundamente comovido, que se era bem Camilo que se lhe dirigia, como parecia ser, visto não poder admitir que houvesse quem escrevesse aquela carta senão Camilo, lhe dissesse o que havia de fazer; que o acompanhasse; porque ele era ainda obra sua; o seu modo de pensar, a sua descrença, eram ainda produto das suas lições; porque nunca lhe ouvira coisa que se parecesse com o que lhe dizia agora.

Outras coisas disse mais sob penosa e estranha impressão, a que Camilo respondeu simplesmente:

– Responderei.

Dias depois escreveu a comunicação inserta na página 81. (Comunicação transcrita imediatamente a seguir)

Camilo Castelo Branco
(18 de Novembro de 1906)

Meu querido médium:

Ainda não pude falar depois da tua comunicação ao Silva Pinto. Eu estava presente quando a fizeste. Em frente dos dois examinava, comovido, as impressões que se iam produzindo na alma iluminada daquele amargurado sonhador.

Com a sua face parada; o seu olhar vagueando pelo infinito, dando a impressão de duas lentes quais procurassem perscrutar o mistério, parecia a estátua da Atonia.

Entretanto, no fundo impenetrável da sua grande Alma tumultuava um mundo novo de paixões, de crenças e de desenganos.

Acima de tudo, a querer subjugar a lucidez daquele generoso espírito o orgulho maldito e torturante arremessava-lhe ao cérebro irritantes prejuízos infantis, apertando-o na férrea coroa inquisitorial da vaidade e do preconceito.

O seu talento enorme batia-se a largas rajadas de bom senso. Via bem que o que lhe lias, era meu e bem meu. Que era eu que lhe falava daqui, a gritar-lhe, na aflitiva ânsia de um irmão quase perdido a que se não perdesse também.

Ele via-o, ele sentia-o. O seu coração dizia-lhe alto, apressado, apelante, que era bem a alma de Camilo quem lhe falava assim; que ele, Silva Pinto, ermo de afectos, órfão da amizade, desenganado do mundo, não podia ter outro que assim o advertisse e acompanhasse senão eu.

A sua razão e a sua lógica procuravam convencê-lo, demonstrando-lhe, com a tenacidade matemática de um pêndulo e com a força perfurante de um parafuso mecanicamente comprimido, que tu mal o conheces para que pusesses toda a tua alma nas palavras magoadas como gritos de dor de mãe, que constituíam a carta que ele ouvia ler, assombrado, perplexo; mas o orgulho gritava-lhe: – Olha que tens que aniquilar a tua obra de riso e de ódio; olha que tens de destruir o teu bloco de egoísmo e de aborrecimento; olha que tendo que perdoar, humilhas-te; tendo de esquecer, aniquilas-te; olha que se crês, subordinas-te e, um homem nem a um Deus deve ser subordinado… Eu também ouvi durante muitos anos esses gritos horrorosos como berros de precito; eu também os ouvi por meu mal; e por mal maior até deliciosos cantos de sereia pareciam à minha consciência pela vaidade obcecada.

Eu também os ouvi; e por bem os conhecer os quis pôr de atalaia contra eles.

Louvores a Deus, muito consegui!

Naquela alma confrangida pela dor sem refrigério, as minhas palavras puseram a dúvida. É a primeira alavanca para derruir o edifício. A primeira e a mais poderosa.

A sua razão sente-se abalada. Ele vê oscilar todo o edifício de dor e ódio levantado pelo sofrimento com sanguinolentos materiais que a desilusão e a ingratidão carregaram dedicadamente.

Vê que tudo oscila e treme e, a fraqueza da sua força apavora-o com a lembrança egoísta de que tem de refundir toda a sua vida, num esforço titânico e supremo. Esquece de que um outro grande espírito ao chegar-se ao umbral misterioso e terrível do desconhecido, renegou num grito toda a sua vida de erro, dizendo ao mundo e ao futuro que «sabia morrer quem viver não tinha sabido».

Não viste nunca, amigo, como um cabouqueiro arranca um bloco que destruiria um regimento na passagem e arrasaria uma povoação?

Vai o pobre miserável cabouqueiro armado da sua marreta e de uma cunha férrea.

Olha a rocha que parece desafiar os elementos e os séculos. Mísero verme de quem a sombra mal se projecta no sopé! Rodeia-a, bate-a, sonda-a, examina-a. Descobre-lhe a fenda. É o calcanhar daquele colossal Aquiles de granito. Mete a cunha. Insignificante ponto na monstruosa pedra! Bate-a, aprofunda-a, arranca-a. Mete-a noutro sítio. A ajudá-lo tem dois grandes obreiros, os maiores de todos os tempos: – a paciência e a persistência. Insiste. Fere novos golpes pequeníssimos. A sequência desses golpes abre fendas maiores.

Insiste mais. A rocha parece que se ri dos esforços máximos daquele minúsculo lutador. Prossegue, golpeia, bate, luta, insiste, durante horas sucessivas até que consegue aluir um pouco o colosso.

Insiste mais, insiste ainda, insiste sempre, sem afrouxar, sem desfalecer com a inteira certeza de que vencerá. As brechas aumentam; os golpes do camartelo são mais certeiros; o ruído menos firme e, a rocha parece tremer. Mais um esforço, mais outro; a rocha alui-se nos fundamentos seculares; e um impulso mais desliga-a da terra mãe. Ei-la a vencida, subjugada, partida! O mísero cabouqueiro fez o que não fez o tempo, supremo destruidor; lento corrosivo; o raio, a mais fulminante força.

Sejamos nós o cabouqueiro.

Metamos a pequena cunha da dúvida na rocha do orgulho de Silva Pinto.

Persistamos pacientemente, tenazmente. Desfaçamos naquela alma amargada o que o mundo tem feito. O mundo e ele. Façamos luz naquela alma entenebrecida pelo sofrimento que ela mesma acalenta e em que voluptuosamente se compraz.

Façamos-lhe sentir que não há maior fraqueza do que a fraqueza de opinião. Que não há mais condenável obsessão do que a do vidente que fecha os olhos para não ver a claridade. Digamos-lhe que há alguma coisa superior à coragem de sustentar o erro a todo o transe: – é a de confessá-lo e destruí-lo.

Tem alguma coisa de maior, de mais belo e de mais altruísta e exemplar que conservar uno, compacto, inquebrado e inquebrável o bloco da sua obra: é o quebrá-lo, deixando dele só o quartzo aurífero e arremessando fora a lama, o lodo, a vasa, o excremento, o fel, secos, solidificados, que por desgraça nesse bloco possam existir.

Ficou pequeno? Não, ficou grande, ficou maior, descomunalmente maior, porque ficou purificado, porque ficou brilhante como o sol, como que um pedaço do luminoso astro, a ele arrancado pelo talento e pela bondade.

A persistência no erro conhecido é dos fátuos e imbecis e, será o mais fátuo e o mais pícaro imbecil de todos os que a idiotia humana possa ter produzido o que por longínquas suspeitas se lembre da possibilidade de que o Silva Pinto seja um imbecil!

Na minha e na vida dele há um fundo, um sangrento, um luminoso exemplo da grandeza que existe na confissão do erro e na abjuração da mentira e no desprezo da vaidade…

E desse exemplo quanta alegria, quanta felicidade, quanta amizade e reconhecimento íntimo e mútuo brotou… Quanta seiva pujante e generosa brota dele ainda para me incitar à luta que venho mantendo para que a sua vista exausta e cansada veja agora o que não soube ver quando era nova e de lince; para que se deixe iluminar pelo raio divino, pela claridade celestial da fé, da resignação e da piedade; para que o seu coração, tão grande como o seu cérebro, faça quebrar o férreo arganel do preconceito e expelir o fel do azedume paciente e longamente segregado pelas atribulações da sua vida sempre incerta, sempre martirizada, deixando que aquele hercúlio músculo onde a convenção humana localizou a bondade, se mostre grande, radiante, feliz e doce, como Deus lho entregou; para que o seu cérebro tão grande e tão belo como o seu coração deixe irradiar, liberto e brilhante, as ondulações luminosíssimas do prodigioso talento que Deus lhe deu e, vá acariciar consoladamente, como a benéfica luz do sol, as chagas pustulentas e carbunculosas que a sua análise e a sua dor têm posto a nu no esquelético e sifilítico corpo da sociedade.

Assim, livre do orgulho, da vaidade, da prevenção, que constituem a fraqueza doble do seu alquebradíssimo cavername de lutador do pensamento, poderá morrer tranquilo, confiado, sem sofrimento e sem remorso e, entrar na grande vida onde há a suprema paz e a suprema angústia, o supremo amor e o martírio supremo, sereno e consciente, de ter cumprido o seu dever.

E quando não existisse essa vida?

Eu, menos do que ninguém, quero fazer a Silva Pinto o gravame injusto de supor que a sua consciência esteja tão cega e tão desequilibrada, que lhe não tenha feito ver nos seus longos momentos de cogitação, que mesmo que a morte o conduzisse ao aniquilamento, era bem mais digno da sua envergadura de lutador e mais belo, mais grande e generoso descer à terra-mater, ao refúgio último, com a serenidade no olhar, a paz no íntimo, o sorriso nos lábios, fazendo pairar por todo o seu ser em evolução derradeira a doce unção que se exala da bondade e da generosidade e nimba os humildes e os santos, do que desaparecer com o ódio a fulminar dos olhos e a torturar o coração; o ríctus contorcendo-se na raiva como a serpente no fogo, a fisionomia a convulsionar-se no esgare macabro da dúvida e do pavor, que não deixaria de permitir convulsionar o próprio Ateísmo, a própria Negação, se esses dois dilectos filhos do orgulho e do egoísmo da humanidade se pudessem personificar na hora última da vida carnal.

Amigo Silva Pinto: alija de ti essa horrorosa túnica de Nessus! Sou eu, o grande Camilo, como me chamavas, que entrou na imortalidade envolvido nessa tortura, que te grita como se gritasse ao ver um filho querido, com os olhos vendados, à orla extrema de um abismo insondável: – Recua! Recua! Salva-te! Salva-te! Que a teus pés está o abismo pavoroso, onde o teu corpo ao cair pode fragmentar-se em esquírolas insignificantes e em que cada esquírola pode condensar-se numa dor de todas aquelas que na tua vida inteira te trucidaram e trituraram pavorosamente!

Recua, amigo, recua, que Deus te estenderá a mão!

Recuar será avançar para a luz; avançar será cair nas trevas.

E que trevas, meu Deus! Que trevas!!!...

A ti, Fernando, instrumento boníssimo das minhas súplicas e do meu desejo, o meu perdurável reconhecimento.

Camilo Castelo Branco

 /…


Fernando de LacerdaDo País da Luz, Comunicações mediúnicas recebidas por este médium (i) – Camilo Castelo Branco (18 de Novembro de 1906) a Silva Pinto, Volume I, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)

domingo, 9 de junho de 2019

Inquietações Primaveris ~

Os Meios de Fuga (II)

Os primeiros homens da cosmogonia mítica da Grécia Antiga, segundo O Banquete de Platão, eram os hermafroditas, criaturas duplas, homens e mulheres ligados pelas costas, que andavam a girar na agilidade de suas quatro pernas.

Constituíam a unidade humana completa, o casal fundido numa unidade biológica de grande potência.

Esses seres estranhos foram separados por Zeus num golpe de espada, quando tentavam invadir o Monte Olimpo, subindo em giros rápidos pelas suas encostas, a fim de destronar os Deuses e assumir o domínio do Mundo. Daí resultou esta humanidade fragmentária a que pertencemos e que hoje pretende repetir a façanha mitológica, invertendo-a. Não querem roubar o fogo do Céu, como Prometeu, mas levar ao Céu o fogo da Terra e com ele incendiar o Cosmos.

No Jardim das Hespérides viviam as Górgoras, mulheres terrivelmente feias e dotadas de misteriosos poderes. Medusa era delas a principal, dotada de uma cabeleira de serpentes. Perseu matou-a e do seu sangue nasceu Pégaso, o cavalo alado que se lançou ao Infinito.

Esses arquétipos gregos continuam activos na dinâmica do inconsciente colectivo de todos nós, como a impulsionar-nos na conquista do Infinito. Mas esse delírio grego que figurava, como no mito de Pégaso, a dialéctica das transformações espirituais, arrancando do sangue de Medusa o cavalo alado, já não desempenha esse papel, na aridez do pensamento imediatista em que o mundo se perdeu.

A fealdade e a maldade das Górgoras estavam cercadas de flores e esperanças.

A cabeleira de Medusa era feita de serpentes, mas o sangue que pulsava no seu coração deu asas a Pégaso.

Nós, unidades separadas em metades biológicas que não se encontram nem se fundem, pois desejam apenas o gozo de prazeres efémeros e não a conjugação psicobiológica da alma e do corpo, só pensamos no Infinito em termos de finito pragmático.

Os meios de fuga se multiplicaram amesquinhando-se. Não queremos nem mesmo fugir para Passárgada, pois já não somos os amigos do Rei, como no sonho do poeta.

A realidade terrena perdeu o encanto das belezas naturais, destruídas pelo vandalismo inconsequente. O nosso anseio de transcendência é apenas horizontal, voltado sistematicamente para a conquista de prestígio social, dinheiro e poder temporal. Nessa linha rasteira de ambições perecíveis, sem nenhum sentido espiritual, fugimos para a negação de nós mesmos e rejeitamos a nossa essência divina, pois nos tornamos realmente indignos dela.

O homem frustrado de Sartre transformou a morte, o túmulo e os vermes, ou o pó impalpável das incinerações cadavéricas, na sua única herança possível. As palavras de alento de Paulo: “Se nós somos filhos, somos, também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” soam no vazio, no oco do mundo, que nem eco produz.

Restaram nas nossas mãos profanadoras apenas as heranças animais: a violência assassina que é o meio normal de que as feras se servem para afastar os obstáculos do seu caminho; a astúcia da serpente para engolir e digerir os adversários mais frágeis; a destruição dos bens alheios em proveito próprio, no vampirismo desenfreado da selva social; a dominação arrogante dos que não dispõem de forças para se defenderem; a mentira, a trapaça, a perfídia de que os próprios selvagens se enojam e, que nós, os civilizados, transformamos na alquimia da canalhice generalizada, em processos subtis de esperteza, que, para vergonha do século e da espécie, consideramos provas de inteligência. Os nossos meios de fuga reduzem-se à covardia da fuga a nós mesmos.

“Onde todos andam de rastos – advertiu Ingenieros – ninguém se atreve a andar de pé”. O panorama mundial da actualidade reduziu-se a um espectáculo de rastejamento universal. Porque é preciso viver, acima de tudo viver, pois só os materiais da vida terrena significam alguma coisa nas aspirações terrenas. existência, em que o homem se afirma pela dignidade da consciência, pelo esforço constante de superação de si mesmo, foi trocada por miúdos, em níqueis inflacionados, pelo viver larvar do dia a dia rotineiro e da subserviência ao desvalor dos que conquistaram os postos de comando na sociedade aviltada. Inteligências robustas e promissoras esvaziam-se na consumação de si mesmas, servindo de maneira humilhante a senhores ocasionais, que podem assegurar-lhes o falso prestígio de salários altos e posições invejadas pela corja rastejante. Todos tremem de medo e pavor ante a perspectiva de referência desairosa proferida por lábios indignos. Todos os sentimentos nobres foram aviltados e os jovens aprendem, a coronhadas e bufos de brutamontes e primatas, que mais vale a boca calada e a cabeça baixa do que o fim estúpido e definitivo nas torturas das prisões infectadas. Porque a única verdade geralmente aceite é a do nada. Se o domínio é da força e da violência, a covardia se transforma em regra de ouro que só os tolos não aceitam. Tudo isso porque se ensinou às gerações sucessivas, através de dois milénios, que o homem não é mais do que pó que em pó se reverterá. Os sonhos do antigo Humanismo foram simples delírios de pensadores esquizofrénicos. A ordem geral, que todos aceitam, é viver para si mesmo e mais ninguém.

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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 5 Os Meios de Fuga 2 de 2, 9º fragmento desta obra
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 16 de maio de 2019

as nossas forças não possuem limites ~


Alma humana…

Assim se desvenda o mistério da Psique, a alma humana, filha do céu, presa temporariamente na carne e que volta para a sua pátria de origem ao longo das milhares de mortes e renascimentos.

A tarefa é árdua e as subidas a escalar são difíceis; a espiral assustadora a ser percorrida se desenrola sem um término aparente; mas as nossas forças não possuem limites, pois podemos renová-las incessantemente pela vontade e pela comunhão universal.

E, depois, não estamos sozinhos para efectuar essa grande viagem. Não apenas nos reuniremos, cedo ou tarde, com os seres amados, os companheiros de nossas vidas passadas, aqueles que compartilharam as nossas alegrias e os nossos tormentos, mas também com os outros grandes seres, que também foram homens e que agora são espíritos celestes e permanecem a nosso lado nas passagens difíceis. Aqueles que nos ultrapassaram no caminho sagrado não se desinteressam da nossa sorte e, quando a tormenta maltrata a nossa estrada, as suas mãos caridosas sustentam a nossa caminhada.

Lenta e dolorosamente, amadurecemos para as tarefas cada vez mais elevadas; participamos mais da execução de um plano cuja majestade enche de uma admiração comovente aquele que nele entrevê as linhas imponentes. À medida que a nossa ascensão se acentua, maiores revelações nos são feitas, novas formas de actividade, novos sentidos psíquicos nascem em nós, coisas mais sublimes nos aparecem. O universo fluídico se mostra sempre mais vasto para o nosso desenvolvimento; ele se torna uma fonte inesgotável de alegrias espirituais.

Posteriormente, chega a hora em que, após as suas peregrinações pelos mundos, a alma, das regiões da vida superior, contempla o conjunto de suas existências, o longo cortejo dos sofrimentos por que passou. Esses sofrimentos são o preço da sua felicidade, essas provas redundaram todas em seu proveito, afinal ela o compreende. Então, mudam-se os papéis. De protegida passa a protectora; envolve com a sua influência os que lutam ainda nas terras do espaço, insufla-lhes os conselhos da própria experiência; sustenta-os na via árdua, nas sendas ásperas que ela própria percorreu.

Conseguirá a alma chegar um dia ao termo de sua viagem? Avançando pelo caminho traçado, ela vê sempre se abrirem novos campos de estudos e descobertas. Semelhantes à corrente de um rio, as águas da Ciência suprema descem para ela em torrente cada vez mais caudalosa. Chega a penetrar a santa harmonia das coisas, a compreender que não existe nenhuma discordância, nenhuma contradição no universo; que por toda a parte reinam a ordem, a sabedoria, a providência e, a sua confiança e o seu entusiasmo aumentam cada vez mais. Com amor maior ao Poder Supremo, ela saboreia de maneira mais intensa as felicidades da vida bem-aventurada.

Daí em diante está intimamente associada à obra divina; está preparada para desempenhar as missões que cabem às almas superiores, à hierarquia dos Espíritos que, por diversos títulos, governam e animam o Cosmos, porque essas almas são os agentes de Deus na obra eterna da Criação, são os livros maravilhosos em que Ele escreveu os seus mais belos mistérios, são como as correntes que vão levar às terras do espaço as forças e as radiações da Alma Infinita.

Deus conhece todas as almas, que formou com o seu pensamento e o seu amor. Sabe o grande partido que delas há de tirar mais tarde para a realização das suas vistas. A princípio, deixa-as percorrer vagarosamente as vias sinuosas, subir os sombrios desfiladeiros das vidas terrestres, acumular pouco a pouco em si os tesouros de paciência, de virtude, de saber, que se adquirem na escola do sofrimento. Mais tarde, enternecidas pelas chuvas e pelas rajadas da adversidade, amadurecida pelos raios do sol divino, saem da sombra dos tempos, da obscuridade das vidas inumeráveis e, eis que as suas faculdades desabrocham em feixes deslumbrantes; a sua inteligência revela-se em obras que são como que o reflexo do Génio Divino.

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LÉON DENIS, O Problema do Ser, do Destino e da Dor,  IX – Evolução e finalidade da alma, fragmento.
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)

domingo, 28 de abril de 2019

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria I Posição do Problema (V)

Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa idade, é se imaginarem no direito de afirmar sem provas, a se embalarem na doce ilusão de serem os outros obrigados a acreditar em palavras. Coisas que a verdadeira Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categóricos. Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criação, ou como se fossem os próprios autores dela.

Eis alguns espécimes de raciocínio, cuja infalibilidade é tão ciosamente proclamada.

Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se dêem ao trabalho de analisar as seguintes afirmações:

Moleschott diz que a força não é um Deus que impele, não é um ser separado da substância material das coisas (quer dizer separado ou distinto?). É a propriedade inseparável da matéria, a ela inerente de toda a eternidade. Uma força, não ligada à matéria, seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigénio, o enxofre e o fósforo têm propriedades que lhes são inerentes de toda a eternidade... Logo, a matéria governa o homem.”

Cada uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição de princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força vale como propriedade da matéria. Ora, essa é, precisamente, a questão. Os campeões da Ciência, que pretendem representá-la e falar com e por ela, não se dignam de seguir o método científico, que é o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do seu estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a saber: – toda a proposição não demonstrada experimentalmente só merece repúdio – e, no entanto, logo de início, esquecem a legenda. São pregadores de uma nova espécie: façam o que digo e não o que eu faço.

Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não impulsiona a matéria, exprimem um conceito imaginativo, nada científico.

Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria – diz Emil du Bois-Reymond – não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos, se atrelassem ou desatrelassem alternativamente as forças. As suas propriedades são inalienáveis, intransmissíveis de toda a eternidade.”

Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott: “Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da Humanidade, por uma judiciosa associação de ácido carbónico, de amoníaco e de outros sais, de ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.

E também no nosso país: “Uma ideia – diz a Revista Médica – é uma combinação análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fósforo; a virtude, o devotamento, a coragem, são correntes de electricidade orgânica”, etc.

Quem vos disse tal coisa, senhores redactores? Olhem que os leitores hão-de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista científico, esses raciocínios são totalmente nulos. De facto, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes da Ciência: se a singular audácia, se a ingenuidade de suas presunções.

Newton não se cansava de repetir: “parece-nos...”, e Kepler dizia: “submeto-vos estas hipóteses...”. Aqueles outros, porém dizem: afirmo, nego, isto é, aquilo não é, a Ciência julgou, decido, condeno, posto que no que dizem não haja sombra de argumento científico.

Um tal método pode ter o merecimento da clareza, mas ninguém o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.

É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a carga pesada das suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores (mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência vos ouve, não pode deixar de rir das vossas ilusões.

A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proíbe... Pobre Ciência, em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um descomunal orgulho.

Não, meus senhores e, vós bem o sabeis (cá entre nós) que, nestes domínios, a Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura.

Reflecti, pois, que a armadura das vossas parlandas ilude os ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a faculdade de perlustrar os vossos estudos e, considerai que, quando nos arrogamos o título de intérpretes da Ciência, ficamos na obrigação de não falsear o título, de permanecer-lhe fiel e, por consequência, modestos tradutores de uma causa que tem na modéstia o seu primacial merecimento.

Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma, observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado físico de certos agrupamentos atómicos e que a matéria governa o homem tão exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais. O fenómeno mais curioso é o de imaginarem que aclaram o problema com as suas explicações obscuras:

– “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler (*), outra coisa não é senão uma força da matéria, imediatamente resultante da actividade nervosa”...

Mas... de onde provém essa actividade nervosa?

– Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os actos do espírito são o produto imediato do movimento nervoso, determinado pelo éter, ou do movimento deste nos nervos – ao qual importa ajuntar uma variação mecânica, física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros elementos orgânicos...

– Eis aí, suponho, bem esclarecida a questão. Virchow diz que “a vida não é mais que modalidade particular da mecânica”; e Büchner afirma que “o homem não passa de produto material; que não pode ser o que os moralistas pintam; que não tem faculdade alguma privilegiada”.

– Que há em todos os nervos uma corrente eléctrica – predica du Bois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento da matéria. Para Vogt, as faculdades da alma valem como funções da substância cerebral e estão para o cérebro como a urina para os rins (**). E Moleschott assegura que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais, ligada a correntes neuro-eléctricas e percebidas pelo cérebro.

Teremos o ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo deste mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas. Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.

Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamental: “E aí temos nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da matéria. Qual é a consequência geral e filosófica desta noção tão simples quanto natural? É que aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma originado o mundo, ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da Natureza, baseados na Filosofia e no empirismo.”

E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um conhecimento mesmo superficial das ciências naturais, capaz de duvidar não seja o mundo governado como geralmente se afirma e, sim que os movimentos da matéria estão submetidos a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria? “

Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm ingenuamente declarar não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção científica para justificar as suas fantasias, teríamos nós, a seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em Deus.

Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do silogismo ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as premissas irrefutáveis e não tirar delas senão uma conclusão legítima e, poderíamos acompanhá-los no raciocínio e conferir-lhes um prémio de retórica. Mas, vede em que consiste o seu processo:

Maior – A força é uma propriedade da matéria.

Menor – Portanto, uma propriedade da matéria não pode ser considerada superior, criadora ou organizadora dessa matéria.

Conclusão – Logo, a ideia de Deus é uma concepção absurda.

É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a discutir.

Combatendo cerradamente os métodos do Cristianismo, essa gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de Jesus, assim começavam:

Jesus é Deus e, desse princípio não provado extraiam todas as deduções.

Convictos estamos de honrar grandemente esses escritores, aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles talvez nunca sonharam seguir.

Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra forma mais ingénua, assim:

Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre associadas.

Consequente – Logo, a força é uma qualidade da matéria.

Aí temos, penso, um entimema de novo género e de consequências bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores Alemães raciocinam, bem como os seus clarividentes imitadores, positivistas da nossa moderna França.

No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no segundo, nem mesmo faz jus a essa censura, porque é uma infantilidade.

Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor – perversão da faculdade de raciocinar – a que se reduz o movimento materialista dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a propósito a frase do misantropo que dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador.

Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste edifício heterogéneo, cujo desmoronamento pode esmagar muitos cérebros sob os escombros; toda a força deste sistema que pretende dominar o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e potência, repousam nessa assertiva fantasiosa, arbitrária e jamais demonstrada, de ser a força uma propriedade da matéria.

é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações científicas e só se apoiar em verdades reconhecidas; é confugindo-se ao estandarte da Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim, com ela mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as suas belas e edificantes doutrinas.

Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciência fala de viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho. Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente, como entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se e, sobretudo, não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar, investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.

/…
(*) Körper und Gelst, etc.
(**) Physiologische Briefe.


Camille Flammarion (i)Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 5 de 6, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 20 de abril de 2019

Diálogos de Kardec ~


IV 
A EMANCIPAÇÃO DA ALMA 

Durante o sono, apenas o corpo repousa; o Espírito, esse não dorme; aproveita-se do repouso do primeiro e dos momentos em que a sua presença não é necessária para actuar isoladamente e ir aonde quiser, no gozo então da sua liberdade e da plenitude das suas faculdades. Durante a encarnação, o Espírito nunca se encontra completamente separado do corpo; qualquer que seja a distância a que se transporte, conserva-se sempre preso àquele por um laço fluídico que serve para fazê-lo voltar à prisão corpórea, logo que a sua presença ali se torne necessária. Este laço só a morte o interrompe. 

“Durante o sono, a alma liberta-se parcialmente do corpo. Quando dormimos, ficamos, temporariamente, no estado em que nos encontraremos de modo permanente depois da morte. Os Espíritos que depois da morte dos seus corpos se desligaram da matéria, tiveram sonos inteligentes; quando dormem, juntam-se à sociedade de outros seres que lhes são superiores; viajam, conversam e se instruem com eles, trabalham mesmo em obras que, quando morrem, encontram inteiramente acabadas. Isto deve ensinar-nos a não temer a morte, pois que morremos todos os dias, como disse um santo. 

“Assim é com relação aos Espíritos elevados. Quanto à generalidade dos homens que, por ocasião da morte, têm de passar por aquela perturbação, por aquela incerteza de que eles próprios nos têm falado, esses vão ou a mundos inferiores à Terra, aonde os chamam antigas afeições, ou em busca de prazeres ainda mais degradantes, talvez, do que os da sua predilecção neste mundo. Vão à procura de vivências ainda mais vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que entre nós praticaram. O que gera na Terra a simpatia é apenas o facto de que o Espírito, ao despertar, se sente vinculado, pelo coração, àqueles em cuja companhia acaba de passar oito ou nove horas de ventura ou de prazer. Por outro lado, o que também explica essas invencíveis antipatias que uma criatura às vezes experimenta é que ela sente, dentro do seu coração, que os que lhe são antipáticos possuem uma consciência diversa da sua, pois que ela os conhece sem jamais os ter visto. É também o que explica a indiferença, que nasce da circunstância de não nos interessar o granjeio de novos amigos, quando sabemos que outros contamos que nos amam e nos querem. Numa palavra: o sono influi mais do que supomos na nossa vida. 

“Por meio do sono, os Espíritos encarnados estão sempre em relação com o mundo dos Espíritos e é isso o que faz que os Espíritos superiores consintam, sem grande repugnância, em encarnar entre nós. Deus quer que, enquanto se encontrem em contacto com o vício, eles possam ir retemperar-se na fonte do bem, para não suceder que também venham a falhar, quando o que lhes cabe é instruir os outros. O sono é a porta que Deus lhes abriu para irem ter com os seus amigos do céu; é o recreio após o trabalho, enquanto aguardam a grande libertação, a libertação final que os restituirá ao meio que lhes é próprio. 

“O sonho é a lembrança do que o Espírito viu durante o sono. Notemos, porém, que nem sempre sonhamos, pois que nem sempre nos lembramos do que vimos, ou de tudo o que vimos. É que a nossa alma não se encontra em todo o desenvolvimento das suas faculdades; não é, muitas vezes, mais do que a lembrança da perturbação que experimenta à partida ou à volta, à qual se junta a do que fizemos ou do que nos preocupa no estado de vigília. Se assim não fosse, como explicávamos os sonhos absurdos, que tanto os mais sábios, como os mais simples têm? Também os maus Espíritos se servem dos sonhos para atormentar as almas fracas ou pusilânimes. 

“A incoerência dos sonhos ainda se explica pelas lacunas resultantes da recordação incompleta do que durante eles foi visto. Dá-se então o que se daria com uma narrativa da qual se truncassem frases ao acaso: reunidos, os fragmentos que restassem nenhuma significação racional apresentariam. 

“Em suma, dentro em pouco vamos ver desenvolver-se outra espécie de sonhos, tão antigos como os que conhecemos, mas que ainda ignoramos. O sonho de Jeanne d’Arc, o sonho de Jacob, os sonhos dos profetas judeus e de alguns adivinhos indianos são lembranças que a alma, inteiramente desprendida do corpo, conserva dessa outra vida de que eu ainda não há muito falava.” (O Livro dos Espíritos, Parte 2ª, cap. VIII.) 

A independência e a emancipação da alma se manifestam, de maneira evidente, sobretudo no fenómeno do sonambulismo natural e magnético, na catalepsia e na letargia. A lucidez sonambúlica não é senão a faculdade, que a alma tem, de ver e sentir sem o concurso dos órgãos materiais. É um dos seus atributos esta faculdade e reside em todo o seu ser, não passando os órgãos do corpo de estreitos canais por onde lhe chegam certas percepções. A visão à distância, que alguns sonâmbulos possuem, provém de um deslocamento da alma, que então vê o que se passa nos lugares a que se transporta. Nas suas peregrinações, ela se encontra sempre revestida do seu perispírito, agente das suas sensações, mas que nunca se desliga completamente do corpo, como já ficou dito. O afastamento da alma produz a inércia do corpo, que às vezes parece sem vida. 

Esse afastamento ou desprendimento pode também operar-se, em graus diversos, no estado de vigília. Mas, então, jamais o corpo goza inteiramente da sua actividade normal; há sempre uma certa absorção, um alheamento mais ou menos completo das coisas terrestres; O corpo não dorme, caminha, age, mas os olhos olham sem ver, dando a compreender que a alma está algures. Como no sonambulismo, ela vê as coisas distantes; tem percepções e sensações que desconhecemos; às vezes, tem a presciência de alguns acontecimentos futuros pela ligação que percebe existir entre eles e os factos presentes. Penetrando no mundo invisível, vê os Espíritos com quem lhe é possível entabular conversa e cujos pensamentos lhe é dado transmitir. 

De volta ao estado normal, de ordinário sobrevém, o esquecimento do que se passou. Algumas vezes, porém, ela conserva uma lembrança mais ou menos vaga do ocorrido, como se tivesse tido um sonho. 

Não raro, a emancipação da alma amortece tanto as sensações físicas, que chega a produzir verdadeira insensibilidade que, nos momentos de exaltação, lhe possibilita suportar com indiferença as mais vivas dores. Provém essa insensibilidade do desprendimento do perispírito, agente transmissor das sensações corporais. Ausente, o Espírito não sente as feridas feitas no corpo. 

Na sua manifestação mais simples, a faculdade que a alma tem de emancipar-se produz o que se denomina o devaneio em vigília. A algumas pessoas, essa emancipação também dá a presciência, que se traduz pelos pressentimentos; em grau mais avançado de desprendimento, produz o fenómeno conhecido pelo nome de “segunda vista”, “vista dupla”, ou “sonambulismo vígil”. 

êxtase é a emancipação da alma no grau máximo. “No sonho e no sonambulismo, a alma vagueia pelos mundos terrestres; no êxtase, penetra num mundo desconhecido, no mundo dos Espíritos etéreos, com os quais entra em comunicação, sem, todavia, poder ultrapassar certos limites, que ela não poderia transpor sem quebrar totalmente os laços que a prendem ao corpo. Cercam-na um brilho resplandecente e desusado fulgor, elevam-na harmonias que na Terra se desconhecem, invade-a indefinível bem-estar; dado lhe é gozar antecipadamente da beatitude celeste e bem se pode dizer que põe um pé no limiar da eternidade. No êxtase, é quase completo o aniquilamento do corpo; já não resta, por assim dizer, senão a vida orgânica e percebe-se que a alma lhe está presa apenas por um fio, que mais um pequeno esforço faria partir-se.” (O Livro dos Espíritos, nº 455.) 

Como em nenhum dos outros graus de emancipação da alma, o êxtase não é isento de erros, pelo que as revelações dos extáticos estão longe de exprimir sempre a verdade absoluta. A razão disso reside na imperfeição do espírito humano; somente quando ele há, chegado ao cume da escala pode julgar das coisas lucidamente; antes não lhe é dado ver tudo, nem tudo compreender. Se, após o fenómeno da morte, quando o desprendimento é completo, ele nem sempre vê com justeza; se muitos há que se conservam imbuídos dos prejuízos da vida, que não compreendem as coisas do mundo visível, onde se encontram, com mais forte razão o mesmo há de suceder com o Espírito ainda retido na carne. 

Há por vezes, nos extáticos, mais exaltação que verdadeira lucidez, ou, melhor, a exaltação lhes prejudica a lucidez, razão por que as suas revelações são com frequência uma mistura de verdades e erros, de coisas sublimes e outras ridículas. Também os Espíritos inferiores se aproveitam dessa exaltação, que é sempre uma causa de fraqueza quando não há quem saiba governá-la, para dominar o extático, e, para conseguirem os seus fins, assumem aos olhos deste aparências que o aferram às suas ideias e preconceitos, de modo que as suas visões e revelações não vêm a ser mais do que reflexos das suas crenças. É um escolho a que só escapam os Espíritos de ordem elevada, escolho diante do qual o observador deve manter-se em guarda. 

Pessoas há cujo perispírito se identifica de tal maneira com o corpo, que só com extrema dificuldade se opera o desprendimento da alma, mesmo por ocasião da morte; são, em geral, as que viveram mais para a matéria; são também aquelas para as quais a morte é mais penosa, mais cheia de angústias, mais longa e dolorosa a agonia. Outras há, porém, cujas almas, ao contrário, se encontram presas ao corpo por liames tão frágeis, que a separação se efectua sem abalos, com a maior facilidade e frequentemente antes que se dê a morte do corpo. Ao aproximar-se-lhes o termo da vida, essas almas entrevêem o mundo onde vão penetrar e pelo qual aspiram no momento da libertação completa. 

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos IV — A EMANCIPAÇÃO DA ALMA. 8º fragmento solto desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra