sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Segundo

KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (V)

Em reforço do corpo carnal do Cristo, vem o Codificador com os aspectos morais "do mais alto poder". Vejamos:

"Se durante a sua vida Jesus tivesse estado nas condições dos seres fluídicos, não teria experimentado nem a dor nem nenhuma das necessidades do corpo; supor que ele assim era, será retirar-lhe todo o mérito da vida de provações e de sofrimentos que havia escolhido como exemplo de resignação. Se tudo nele eram só aparências, todos os actos de sua vida, o anúncio reiterado de sua morte, a cena dolorosa do Jardim das Oliveiras, a sua oração a Deus para que afastasse o cálice dos seus lábios, a sua paixão, a sua agonia, tudo, até ao seu último grito no momento de entregar o Espírito, não teria sido senão um vão simulacro, para enganar com relação à sua natureza e fazer crer no sacrifício ilusório de sua vida, uma comédia indigna de um homem honesto e simples, quanto mais e por mais forte razão, de um ser também superior; numa palavra, teria abusado da boa fé dos seus contemporâneos e da posteridade. Tais são as consequências lógicas desse sistema, consequências que não são admissíveis, pois resultariam em diminui-lo moralmente, em lugar de o elevar.

"Jesus teve, – conclui Kardec – pois, como todos, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é confirmado pelos fenómenos materiais e pelos fenómenos psíquicos que assinalaram a sua vida."

Ao passar da análise puramente física para a análise das consequências morais que resultariam do corpo fluídico de Jesus, Kardec também muda de tom. Até então frio, ele é ai veemente. Nasce-lhe da pena um como que brado de alerta: a vida de Jesus teria sido apenas "um vão simulacro", se tivesse tido um corpo fluídico! Não se pode admitir isso, sob pena de "diminui-lo moralmente". A grande força de Jesus – crê Kardec –, está na fusão da sabedoria e da prática, do conhecimento e do exemplo, do crer e fazer. Assim, pois, acreditar no seu corpo fluídico "será retirar-lhe todo o mérito da vida de privações e de sofrimentos que havia escolhido como exemplo de resignação". "Meu Pai, disse Jesus, se possível, afaste de mim esse cálice". Ora, essa frase não teria sentido para o Codificador caso fosse Cristo um agénere, assim como essa outra: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste", dita no momento de sua morte; e como inúmeras mais. A possibilidade de que Jesus seja diminuído moralmente assusta Kardec ao ponto de fazê-lo escrever com veemência: "uma comédia indigna de um homem honesto e simples!" (...) "Tais são as consequências lógicas desse ensino", fala forte, compreendendo que o Jesus agénere "teria abusado da boa fé dos seus contemporâneos e da posteridade", fingindo situações e sofrimentos, pois "não teria experimentado nem a dor nem nenhuma das necessidades do corpo".

No pensamento de Kardec, as coisas passam-se de maneira simples: houve um Cristo agénere, aquele que "ressuscitou" depois da morte e apareceu a Maria Madalena no sepulcro e aos dois discípulos na estrada de Emaús e não foi logo reconhecido por eles, precisando recorrer a detalhes para ser descoberto. Esse o agénere perfeito, de curta duração, que não podia ser morto, apresentando-se na sua realidade de depois da morte.

Kardec, porém, não pára aí. Ei-lo seguro na sua posição contrária ao corpo fluídico:

"As aparições de Jesus depois da sua morte são narradas por todos os evangelistas com detalhes circunstanciados que não permitem duvidar da realidade do facto. Aliás, elas se explicam perfeitamente pelas leis fluídicas e pelas propriedades do perispírito, e nada apresentam de anómalo com os fenómenos do mesmo género, dos quais a História antiga e contemporânea oferece numerosos exemplos, sem exceptuar a tangibilidade. Se se observam as circunstâncias que acompanharam as suas diversas aparições, reconhecem-se nelas todos os caracteres de um ser fluídico. Aparece inopinadamente e desaparece da mesma forma; é visto por uns e por outros sob a aparência que não o tornam reconhecido, nem mesmo pelos seus discípulos; mostra-se em lugares fechados, onde um corpo carnal não penetraria; a sua linguagem não tem a vivacidade de um ser corporal; tem o tom breve e sentencioso, particular aos Espíritos que se manifestam dessa maneira; todas as suas atitudes, numa palavra, têm qualquer coisa que não é do mundo terrestre. A sua apresentação causa ao mesmo tempo surpresa e pavor; os seus discípulos, ao vê-lo, não lhe falam com a mesma liberdade; sentem que já não é o homem.

"Jesus mostrou-se, pois, – afirma Kardec – com o seu corpo perispirital, o que explica não ter sido visto por aqueles a quem não desejava mostrar-se; se estivesse no seu corpo carnal, teria sido visto por todos, como quando era vivo. Desde que os seus discípulos ignoravam a causa primária do fenómeno das aparições, não se apercebiam dessas particularidades, as quais provavelmente não notavam; viam Jesus e o tocavam, o que para eles deveria ser o seu corpo ressuscitado."

Os detalhes nesse particular do Cristo desencarnado, apresentando-se aos discípulos na condição de agénere, são relacionados por Kardec com muita clareza. É a voz que soa diferente, é a linguagem que não tem vivacidade, é o tom breve e sentencioso, é a surpresa e o pavor de sua aparição até em lugares fechados. Tudo, enfim, que um agénere mostra nas suas manifestações.

O outro Cristo, aquele que viveu durante trinta e três anos até desencarnar na cruz, era de carne, esteve convicto disso o Codificador.

Compreendem-se, assim, os motivos que levaram Kardec a não avalizar a obra "Os Quatro Evangelhos" nem permitir a presença de Roustaing e da médium Emilie Collignon na "Revista Espírita" depois de 1866. Os motivos são exactamente estes: a base dos "Quatro Evangelhos" é o corpo fluídico de Jesus, no dizer do próprio Codificador; ora, Kardec concluiu que o corpo fluídico era falso, logo "Os Quatro Evangelhos" ficaram sem razão de ser ou, como diria ele, o edifício ruiu. Junte-se a isso o factor moral consequente do corpo fluídico, talvez o ponto que mais chamou à atenção de Kardec. É, pois, certo que Kardec não aceitou a obra roustainguista e não viu em Roustaing, como também na médium Collignon, pelo que fizeram em "Os Quatro Evangelhos", os seus muito importantes colaboradores, ficando reduzida a mera opinião individual dos Espíritos que a assinaram, ''a Revelação da Revelação". Só isso.

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Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO FLUÍDICO 5 de 5, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)