segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

o Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~

Capítulo III

MARX E KARDEC (II)

Para Kardec, o fenómeno social tem as suas bases no fenómeno espiritual: não existe separação entre essas duas realidades; pelo contrário, o conflito da luta de classes se desdobra, penetrando desse modo nas realidades do mundo invisível. De maneira que o homem kardecista é um Ser que relaciona, mediante o perispírito, instrumento psíquico que não possui o homem de Marx, o mundo corporal com o mundo espiritual e moral. O perispírito é o elo perdido, que relacionará subsequentemente os modos de produção com os modos de evolução, isto é, a luta de classes com as classes de luta. Porque a evolução do espírito, para ser equilibrada e harmónica, tem necessidade de meios e formas económicas justas e equitativas, já que a sua própria palingenesia fará que o instrumento social seja empregado novamente pelo mesmo Ser, através de seu incessante avançar espiritual. Com razões de sobra dizia Kardec: “Risquem-se das leis e das instituições, das religiões e da educação, os últimos restos da barbárie e os privilégios; destruam-se por completo todas as causas que dão vida e desenvolvimento a estes eternos obstáculos do verdadeiro progresso e que, por assim dizer, aspiramos por todos os poros na atmosfera social, e então os homens compreenderão os deveres e benefícios da fraternidade, e a liberdade e a igualdade se estabelecerão por si mesmas de qualquer forma. (i)

As palingenesias individuais e sociais são, para o homem kardecista, o resultado dos factos sociológicos determinados pelo Espírito, através de sua incessante evolução. Para Kardec, ao contrário de Marx, o progresso é uma sucessão de factos morais e sociais, determinados pelas relações entre o elemento espiritual e o material. A nova sociedade, segundo o codificador da doutrina espírita, será determinada pelo modo de vida espiritual alcançado pelos homens. Corpo e Espírito, isto é, Sociedade e Alma, deverão desenvolver-se harmonicamente; deste modo, com o homem kardecista, a transformação social será integral: compreenderá o aspecto material e espiritual. Ao contrário, a evolução socialista de Marx só modificará uma parte da realidade: afectará unicamente o sistema económico da sociedade, deixando o Espírito do homem tal como estava no regime chamado capitalista.

Se a imagem do homem kardecista se reflecte nas profundezas do mundo espiritual, isso nos indica que ele não verá apenas uma vez os alcances e os resultados do processo social, mas que passará muitas vezes através desse processo, razão pela qual deverá trabalhar insistentemente em prol de melhores sistemas sociais. O sistema socialista, segundo a ideia do homem kardecista, será revivido e reencontrado pelos mártires do socialismo, porque o Ser que a filosofia espírita nos apresenta é uma entidade eterna, que vai e vem no curso e recurso palingenésico da história, sem jamais fenecer.

O homem, para Kardec, é um espírito encarnado, que reconhecerá o seu passado histórico, à medida que ilumine a sua visão e intuição espirituais. É por isso que, com a doutrina social espírita, podemos falar de um homem-que-reencontra-a-história, isto é, de um homem que construirá um mundo melhor para reencontrar-se a si mesmo, segundo tenham sido os seus actos para construí-lo e edificá-lo. A nova sociedade do futuro, segundo o homem kardecista, se emancipará do regime social baseado na propriedade individual, porque o estado de evolução espiritual alcançado pelo Ser o obrigará a aperfeiçoar-se, segundo o princípio espírita da lei de igualdade. E este estado de evolução fará que os homens percebam o mundo e os bens económicos unicamente como objectos de encarnação.

Em resumo, podemos afirmar que a comunidade socialista não é o resultado de um sistema imposto por um processo político, mas uma realidade social dependente da evolução avançada do homem; é, pois, o fruto do progresso, tanto externo como interno, da humanidade. Por isso, Kardec dizia que os sistemas sociais variam com a evolução dos espíritos; sustentar, portanto, um regime social que esteja em pugna com a evolução espiritual, é colocar-se em oposição à própria lei de progresso. A esse respeito, escreveu Kardec: “A aspiração do homem para uma ordem de coisas melhor que a actual é um indício certo da possibilidade de que chegará a ela. Cabe, pois, aos homens amantes do progresso, activar este movimento pelo estudo e a prática dos meios que se julguem mais eficazes.” (ii)

Se a filosofia espírita não abranger o estudo das questões sociais, o homem marxista terá sempre maior vantagem sobre o homem kardecista, porque o tema da luta de classes é a grande realidade individual e colectiva dos tempos modernos. Como temos visto, o espiritismo não é individualista; pelo contrário, abarca por igual a face pessoal e social do homem. Contudo, esta integralidade da filosofia espírita tem sido, pode-se dizer, postergada, por receio de cair no político. Muito se tem falado do espiritismo, quase sempre como de um comércio entre vivos e mortos; tem-se dado preferência aos seus fenómenos, em detrimento de sua doutrina espiritual e filosófica, que constitui um verdadeiro humanismo revolucionário e “abrange tanto o homem físico (o social), como o homem moral (o espiritual)”, segundo o sentir esclarecido de Allan Kardec.

Louis Fourcade, notável espírita francês, em uma carta dirigida de Paris à revista La Idea, referindo-se ao sentido social da filosofia espírita, dizia o seguinte: “Por não haver militado no domínio social, o espiritismo francês é insuficientemente conhecido das massas. Tem atraído para si uma desconfiança inexplicável, mesmo no mundo intelectual; da parte de alguns cérebros lúcidos e orgulhosos de seu conhecimento, atraiu um desprezo cínico e sistemático que, alentado pelo clero, tem conseguido reduzi-lo e circunscrevê-lo a simples reuniões de associações timoratas, onde frequentemente degenera em corrupção e charlatanismo, ou tráfico mercenário.” (iii)

Enquanto fizermos do espiritismo uma questão de médiuns, provas e experiências, não sairemos do estreito círculo em que o têm encerrado psiquistas de toda a espécie. Kardec apresentou a filosofia espírita com um carácter absolutamente diferente daquele que lhe deram os registadores de fenómenos. Ela encarna, como se sabe, uma nova visão espiritual do homem e do Universo apresentando-se como uma sociologia espiritualista, tanto do homem físico como do homem moral. O espiritismo, segundo Kardec, é a restauração dos valores essenciais do cristianismo e o instrumento filosófico e religioso destinado a dar forma a um novo tipo de sociedade humana. Consequentemente, a filosofia espírita deverá socializar-se, se quisermos que avance ao lado do progresso, sem ser ultrapassada na sua militância pelas novas ideias.

A alma dos tempos modernos está eivada de transformações gerais. Se queremos impulsionar o progresso dos homens, teremos de penetrar no social, onde pulsa o coração das realizações futuras. Não nos esqueçamos de que é nas massas que estão encarnados os tristes e deserdados. Foi nessa perspectiva que Kardec viu o sentido social do espiritismo, a ponto de chegar a sustentar que é a eles, “mais que aos felizes da Terra”, que se dirige o seu ideal religioso ou de redenção humana. A mensagem que o espiritismo proclama é a mesma que se ouviu há vinte séculos no Sermão da Montanhaencarnando-se outra vez na história, conforme fora anunciado; através da divina presença do Espírito da Verdade.

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(i) Ver Obras Póstumas, Kardec, capítulo Liberdade, Igualdade e Fraternidade e O Livro dos Espíritos, capítulo sobre o mesmo assunto.
(ii) Allan Kardec, Obras Póstumas, capítulo citado atrás.
(iii) Revista La Idea, Buenos Aires, n.° 275, abril de 1947.


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III MARX E KARDEC 2 de 2, 5º fragmento da obra.
(imagem: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O Mundo Invisível e a Guerra ~

III – As Lições da Guerra ~

|Março de 1915|

Os terríveis combates entre as nações e as raças, além das convulsões que sacodem o mundo, produzem os mais sérios problemas e, em presença desse grande drama, mil questões se apresentam à mente humana ansiosa, havendo momentos em que a dúvida, a inquietação e o pessimismo dominam os espíritos mais fortes e decididos.

O progresso será uma vã ilusão? A civilização ficará submersa no mar das paixões brutais? Os esforços dos séculos em prol da justiça, da fraternidade e da paz social serão inúteis? As concepções da arte e do génio do homem, os frutos do pesado e imenso trabalho de milhões de cérebros e de braços irão desaparecer arrasados pela tormenta?

Esse abismo de desgraças é analisado calmamente pelo pensador espiritualista e do caos dos acontecimentos ele extrai a principal lei que rege o Universo.

Acima de tudo, lembra-se de que o nosso mundo é um planeta inferior, um laboratório onde desabrocham as almas ainda inexperientes com os seus anseios confusos e as suas paixões desordenadas.

O profundo sentido da vida aparece, para o pensador espírita, com as duras necessidades que a ela são inerentes; é o início das qualidades e energias que existem em todos os seres.

A fim de que as energias que existem desconhecidas e silenciosas nas profundezas da alma apareçam na superfície, há necessidade de aflições, angústias e lágrimas, porque não existe grandeza sem sofrimento, nem progresso sem provação.

Se o homem na Terra se desenvencilhasse das vicissitudes da sorte e ficasse privado das grandes lições do sofrimento, poderia fortalecer o carácter, desenvolver a experiência ou valorizar as riquezas ocultas de sua alma?

No mundo, sendo o mal uma fatalidade, não existirá responsabilidade para os maus?

Seria um erro funesto aceitá-lo, porque o homem, na sua ignorância e cegueira, semeia o mal, cujas consequências caem pesadamente sobre ele, assim como sobre todos os que se associam às suas más acções. É isso que o momento actual comprova.

Dois poderosos imperadores, um protestante e outro católico, desencadearam a guerra com todos os seus horrores; fazia meio século que vinham preparando, calculando e combinando tudo para obter uma vitória esmagadora.

Os poderes espirituais, porém, interferiram no conflito, inspirando às nações em perigo uma heróica resistência e nelas fazendo surgir os tesouros do heroísmo que estavam acumulados nas almas célticas e latinas, desde anteriores existências.

Vejam como se inverteu a situação após seis meses de lutas. Os alemães faziam uma guerra de conquista, no início da campanha; hoje estão reduzidos a combater em defesa própria.

Nos momentos de amargura e de incerteza sempre surge um homem providencial. Neste caso, e para a França, esse homem é o general Joffre, que possui as qualidades exigidas pela grave situação do momento!

Ele soube conter no Marne a enorme avalanche alemã e agora, como comandante sábio e competente, poupando os seus soldados, prepara, prudentemente, os meios de expulsar o inimigo para além das fronteiras.

Acima do confuso tumulto das batalhas, além dos clarões terríveis da carnificina e do incêndio, vislumbra-se uma aurora e um grandioso ideal começa a se esboçar; pressente-se a obra de moralização que dimana do sofrimento.

Acima da labareda das paixões terrenas, sente-se a presença de um tribunal invisível que espera o final do conflito para reivindicar os direitos da eterna justiça.

Os nossos soldados sentem tais coisas de modo vago, têm a intuição de que a sua causa é augusta e sagrada, e tal impressão vai, pouco a pouco, propagando-se por todo o país. Aí se explica por que a inteligência se tornou mais digna e os sentimentos ficaram mais graves e profundos.

borrasca espantou as futilidades e as leviandades, com tudo quanto era pueril e mundano em que a nossa geração gostava de se ocupar, deixando permanecer o que havia em nós de mais sólido e melhor.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, III – As Lições da Guerra 1 de 3, 6º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

pensamento espírita argentino ~

CAPÍTULO I

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história ~

Que somos? (V)

No prazer como na dor, na tristeza ou alegria, no desejo ou na paixão, na recordação como em todo trabalho da mente ou determinação da vontade, o cérebro desenvolve uma função puramente fisiológica sob o impulso e a direcção do espírito, que é a única força psíquica, activa (consciente ou inconsciente), inteligente e volitiva que há no organismo humano: sem ela o homem se reduz a um corpo; abandonado por ela é um cadáver. Fácil é compreender como em um estado normal do ser humano (isto é, enquanto a alma está estreitamente ligada ao organismo) toda função psíquica se desenvolve dentro das vias normais, correspondendo a um aparelho sensorial determinado que, nascendo da periferia, encontra nas zonas centrais do cérebro um centro receptor e que todo o centro motor cortical, que actua como aparelho transmissor com as suas fibras nervosas eferentes, sirva a sua correspondente função motriz. Mas há casos (e estes já ninguém ignora) em que estas vias naturais (ou melhor, ordinárias) não são indispensáveis aos fenómenos de percepção, de transmissão e de motricidade e outros em que as localizações cerebrais não parecem ser tão cerebrais e muito menos psíquicas, como postula a psicofisiologia; mas estas localizações, como faz notar o doutor Gustave Geley(i) parecem ser mais anatómicas, ou melhor, aproximações aos verdadeiros centros psíquicos que correspondem às faculdades do espírito, localizadas, por assim dizer, no corpo etéreo ou perispiritual, que forma a estrutura íntima sobre a qual se plasma o corpo somático e do qual este é só o revestimento.

O positivismo psicofisiológico pretende já ter conhecido definitivamente a alma humana, fazendo dela uma espécie de mitologia psicológica, atribuindo a cada centro cerebral uma função própria; tem lavrado o cérebro como quem lavra um campo, atribuindo a cada fracção um poder psíquico determinado e ao cérebro a coordenação automática desses poderes psíquicos, sem outra inteligência nem direcção, senão a que resulta da inconsciência de cada um e que formam, por associação, o chamado campo da consciência.

A hipótese frenológica (ii) de Gall, sustentada por Broussais e Bouillaud, negadas pelas experiências e pela crítica de Flourens, reafirmada por Broca, Charcot, Türck, Fritch, Hitzig e mais tarde (1870 e 1875), respectivamente, por Ferrier e Bartholow, é considerada pela psicologia empírica como um facto científico perfeitamente demonstrado, do mesmo modo que a hipótese do paralelismo psicofisiológico; daí afirmar-se que não pode existir função psíquica sem o seu correspondente centro nervoso, que a determinada actividade psicológica corresponde determinada actividade dos centros nervosos e que esta é sempre proporcional àquela. Como se vê, os feitos acumulados pela moderna psicologia e muito especialmente os da Metapsíquica, deixam malparadas estas hipóteses.

As localizações cerebrais têm no seu apoio factos que, não sendo contraditos por outros tanto ou mais eloquentes, dariam ao positivismo materialista uma razão, pelo menos hipotética, para seguir sustentando a sua teoria psicofisiológica da alma. Nos traumatismos, uma leve lesão ou perda de massa encefálica costuma ser acompanhada de perturbações mentais consideráveis (como nas afecções produzidas por quistos), e nos casos de ablação, a extracção de um tumor ou de uma parte do cérebro suprime uma função ou faculdade psicológica. Sabe-se também que a privação de uma parte ou da quase totalidade (em alguns casos) do cérebro não altera e menos suprime as funções psíquicas correspondentes, nem reduz a personalidade. Os casos que se seguem falam em favor desta afirmação.

Em 1886, o doutor Carlos B. Tancredi (iii) publicou o seguinte caso estudado pelo doutor Harlow:

“Um homem de 35 anos de idade estava ocupado em apertar uma broca de mina, quando a pólvora fez uma explosão: neste momento estava inclinado para a frente, sobre o orifício, com o rosto ligeiramente virado; o furador foi projectado de baixo para cima em direcção de seu maior eixo, atravessando a cabeça e elevando-se no ar a bastante altura”. A ferida era oblíqua “e atravessava o crânio em linha recta desde o ângulo da mandíbula inferior ao centro do osso frontal, perto da sutura sagital por onde saiu o ferro, que foi encontrado a alguns metros do ferido, coberto de sangue e substância cerebral”. O furador em questão pesava 13,75 libras (cerca de 6,2 quilos), media 1,15 m de comprimento e 3 centímetros de diâmetro; a extremidade que penetrou primeiro era pontiaguda, tendo a ponta 18 centímetros de extensão, e em sua extremidade, 6 milímetros de diâmetro.

“Imediatamente depois da explosão, o ferido caiu de costas e os seus membros se agitaram com movimentos convulsivos; mas não demorou em falar e, transportado a um povoado vizinho, desceu por si mesmo do carro onde o haviam colocado e com pouca ajuda pôde subir uma alta escada até a sala onde foi atendido.”

O ferido – disse o dr. Harlow – suportava os seus sofrimentos com a mais heróica firmeza; parecia conservar toda a sua razão, mas se abatia pela hemorragia – que era muito abundante, exterior e interiormente: deglutia o sangue que vomitava a cada quinze ou vinte minutos, e tanto o seu corpo, como a cama onde descansava, estavam inundados de sangue; tinha 60 pulsações regulares. Acompanhado do dr. Williams, que foi o primeiro a atender o ferido, procedi ao tratamento e examinando a ferida da frente vi que haviam sido levantados fragmentos de osso e que o cérebro formava hérnia; raspou-se-lhe a cabeça, foram retirados os coágulos e duas ou três lasquinhas de osso de forma triangular, e para assegurar-me de que não existiam corpos estranhos, passei todo o dedo indicador na direcção da ferida do rosto, na qual o indicador da outra mão penetrava do mesmo modo. Uma porção do ângulo ântero-superior de cada um dos parietais e uma porção semicircular do frontal estavam fracturados, o que formava uma abertura de 8,5 centímetros de diâmetro, aproximadamente...” Depois de haver levantado as lasquinhas, e um resto de matéria cerebral, unido por uma espécie de pedúnculo, coloquei no seu lugar os fragmentos mais importantes; juntei o quanto possível as partes soltas com ajuda de tiras aglutinantes.

O ferido curou-se sem apresentar paradas nem alterações intelectuais e morreu dezanove anos depois do acidente.”

O doutor Destot cita três casos não menos assombrosos, estudados por ele e confirmados pelos doutores Mollière, de Lyon, e Buch, de Argel. Um dos casos refere-se a um menino de 12 anos de idade que ao cair de uma escada fracturou o crânio num bico de gás de iluminação, e pela ferida saiu-lhe a massa encefálica. Depois de um estado comatoso que durou dez dias, reagiu, recobrando os sentidos e curando-se por completo.

O segundo caso refere-se a um pedreiro, vítima de um terrível golpe que lhe provocou o salto da parte direita do frontal e do hemisfério cerebral correspondente. O estado comatoso durou 15 dias; um dia depois abriu os olhos, recobrou os sentidos e a sensibilidade. Fabricou-se-lhe uma tampa para proteger a parte do cérebro que restava e poucos dias depois recebeu a alta.

O terceiro caso é o de um árabe que apresentava uma ferida na sobrancelha esquerda, da qual saia pus; depois de haver-lhe feito vários curativos e quando parecia de todo curado, morreu repentinamente. Quando feita a autópsia, verificou-se que uma sexta parte do cérebro estava destruída por enorme abcesso, destruição que devia proceder de, pelo menos, três meses atrás, sem haver causado incómodos ao enfermo, que até ao momento de morrer atendera a suas ocupações habituais.

O doutor Gustave Geley, na obra mencionada, resume casos dos quais, para maior esclarecimento, mencionaremos alguns.

O primeiro refere-se a um facto apresentado pelo doutor Hallopeau, em Julho de 1914, à Sociedade de Cirurgia, relacionado com a operação de uma jovem no hospital Vecker, que caíra de um vagão. “Na trepanação provou-se que uma porção de matéria cerebral se havia reduzido literalmente a uma pasta. Limpou-se e drenou-se a ferida e a enferma curou-se perfeitamente.”

O segundo foi apresentado à Academia de Ciências de Paris pelo dr. A. Guepin, na sessão de 24 de Março de 1917, como uma contribuição ao estudo desse tema; nela, menciona o citado doutor que: “Seu primeiro operado, o soldado Luís R., na época jardineiro das imediações de Paris, não obstante a perda de uma enorme parte de seu hemisfério cerebral esquerdo (substância cortical, substância branca, núcleos centrais, etc.), continua portando-se como uma pessoa normal, a despeito das lesões e da perda de circunvoluções consideradas como base de funções essenciais.”

O dr. R. Robinson apresentou também à Academia de Ciências de Paris, em 22 de Dezembro de 1913, por intermédio de seu presidente, Edmond Perrier, o seguinte caso: um homem de 62 anos, ferido na região occipital, viveu um ano sem sofrimento. Durante um mês esteve perfeito; mais tarde, quando já havia esquecido o acidente, experimentou alguns distúrbios visuais e certo decaimento na inteligência. Após um ano, uma crise epiléptica atacou-o e levou-o à morte. Feita a autópsia, encontrou-se o cérebro reduzido a um estado de pasta, contendo apenas matéria purulenta.

Ao final do Século 16, o dr. Taruto Lisboa, chamado o Lusitano, publicou em seu livro Prática Médica, o seguinte caso:

“Um menino de 10 anos recebeu na parte posterior do crânio uma enorme cutelada, que cortou o osso e a membrana cervical, atingindo a massa encefálica. Contra todas as previsões e diagnósticos, o ferido curou-se. Três anos depois, morria hidrocéfalo. Abriu-se o crânio e não se encontrou cérebro. Entre as duas folhas da duramáter (uma das membranas que envolvem o cérebro) apareceu um líquido límpido e bem cheiroso; era coisa extraordinária. O menino havia vivido durante três anos sem cérebro, com a plenitude de suas faculdades psíquicas.”

O dr. Agustin Iturricha, presidente da Sociedade Antropológica de Sucre (Bolívia), em discurso pronunciado nessa instituição, em sete de Agosto de 1916, fez referência a alguns casos análogos, entre os quais se citam os dois seguintes:

“... Mas aqui há factos mais surpreendentes recolhidos na clínica do dr. Nicolas Ortiz, que o dr. Domingo Guzmán teve a amabilidade de comunicar-me. A fonte dessas observações não pode ser suspeita: emana de duas altas personalidades do nosso mundo científico, de dois verdadeiros sábios.

O primeiro caso se refere a um jovem de 12 a 14 anos, morto em pleno uso de suas faculdades intelectuais, embora a sua massa encefálica tenha sido completamente desprendida do bulbo, nas condições de um homem realmente decapitado. Enorme deve ter sido a estupefacção dos clínicos ao encontrar, no acto da autópsia, abrindo a cavidade craniana, as meninges ensanguentadas e um grande abcesso que ocupava quase uma parte do cérebro e a protuberância, sabendo, sem dúvida, que este jovem, alguns instantes antes de morrer, pensava com vigor. Forçosamente, deveriam perguntar-se: Como se concebe isto?

O terceiro caso da mesma clínica refere-se a um jovem agricultor de 18 anos. A autópsia pôs a descoberto três abcessos do tamanho de uma tangerina, ocupando cada um a parte posterior dos hemisférios cerebrais e uma parte do cerebelo com comunicações recíprocas. Apesar disso, o doente pensava como os demais homens.”

À parte destes factos, a revista La Idea, de Buenos Aires, de Abril de 1933, traz o resumo de um artigo publicado em uma revista alemã (Die Ubersennlique Welt), no qual se lê o seguinte:

“Hyrth, Hufeland e Hennemoser, professores de cirurgia médica, comprovaram que a perda de partes sensíveis do cérebro não havia reduzido a capacidade de pensar dos sujeitos examinados.

O professor Schmick recorda que Benecke referia aos estudantes o seguinte facto: o célebre arquitecto berlinense Schinkel, normal até o último minuto de sua vida, apresentou na autópsia enormes “vazios” no cérebro. O professor Rein, de Jena, em conferência realizada em 1911, citou o caso de um homem normal durante toda sua existência, apesar de grandes alterações cerebrais. Várias comprovações desta categoria registaram-se durante a guerra dos Balcãs. O professor K. L. Schleich consignou vinte casos de cérebros humanos gravemente lesionados, sem alteração da personalidade humana; cérebros mutilados e, não obstante, com vida normal.”

Para responder a estes e outros casos análogos recorre-se à hipótese da dualidade cerebral, sustentada por Flourens, segundo a qual um hemisfério cerebral pode suprir as funções de outro. Esta hipótese psicofisiológica é aceita como um entre tantos recursos da psicologia chamada positiva, para dar-se uma explicação que satisfaça ao seu conceito materialista do homem, mesmo quando se ignore como se operam essas substituições ou a duplicidade de funções de um só hemisfério cerebral e ponha-se em aberta contradição com a hipótese das localizações cerebrais, a não ser que se considere cada hemisfério cerebral como um órgão completo e o homem como possuindo duas personalidades independentes e supletivas em suas respectivas consciências e funções.

Mas tal hipótese, não obstante o seu cientificismo, não explica os casos em que a quase totalidade (ou a totalidade em alguns casos) do cérebro se acha reduzida a pasta, convertida em massa purulenta ou hidrocéfala ou, como no primeiro caso citado pelo doutor Iturricha, o cérebro se acha separado do bulbo. Teria que se encontrar então outro recurso científico que explicasse, mesmo que hipoteticamente, esses factos, e este, à falta de outro mais positivo e satisfatório, encontrou-se na medula espinhal, que em tais casos desempenharia as funções psíquicas do cérebro.

Assim, vemos o materialismo batendo-se em retirada, cedendo terreno aos avanços do espiritualismo científico no que se refere a este e a outros aspectos do problema psicológico. Primeiro, sustentou, como um facto científico, experimentalmente demonstrado, que o pensamento é uma secreção do cérebro; portanto, que o espírito é a resultante do funcionamento cerebral; mais tarde, considerou-o como um complexo de sensações ou como a sucessão de estados de consciência formados pela elaboração e a associação dos centros sensitivos, receptores e motores, assinalando no córtex cerebral a sede das faculdades da alma ou, melhor dito, localizando os poderes do polipsiquismo funcional que, segundo os seus admiradores, dá-nos a ilusão de nossa individualidade psíquica; em consequência, destruindo-se um destes centros, ficava de facto suprimida a sua função. Assim, quando os factos demonstraram que a trepanação de uma parte do cérebro, ou a falta de um hemisfério cerebral não impedia em certos casos o funcionamento normal do espírito, e nem reduzia suas faculdades, formulou-se a hipótese de dualidade cerebral (na qual, diga-se de passagem, encontrou-se também um cómodo refúgio para explicar os casos de dupla personalidade, tais como o de Félida, estudada pelo doutor Azam) e, quando, por diversas causas, como nos casos citados, os dois hemisférios se tenham inutilizado ou destruído, diz-se que a medula espinhal pode desempenhar as funções do cérebro e, se acontecesse o caso de que também a medula estivesse afectada, não faltariam outros recursos tão científicos e positivos como os anteriores para querer explicar a existência do espírito pela existência e funcionamento do organismo: quer dizer, para negá-lo como entidade individual.

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(i) Do Inconsciente ao Consciente.
(ii) Frenologia: teoria que estuda o carácter e as funções intelectuais humanas com base na conformação do crânio. (N.T.)
(iii) Enciclopédia Internacional de Cirurgia, págs. 583-584, tomo V, de Asthurs. Tradução espanhola por D. Creus Y Manso, 1886.


Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (V), 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)