domingo, 17 de março de 2024

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Motivos de Dificuldade nas Curas ~

   Há curas que se verificam com surpreendente facilidade e rapidez, dando às vítimas de graves perturbações e às suas famílias a impressão de um socorro divino especial. O nosso povo, de formação geralmente católica, está sempre disposto a se deslumbrar com milagres. Não há privilégios numa estrutura orgânica perfeita, como a do Universo, regida por leis infalíveis e teleológicas, ou seja, leis que dirigem tudo no sentido de fins previstos. A cura fácil e rápida decorre dos méritos pessoais do doente, de compensações merecidas por esforços despendidos por ele no seu desenvolvimento espiritual e em favor da evolução humana em geral. O objectivo da vida é o desenvolvimento das potencialidades que trazemos em nós como sementes de angelitude e divindade semeadas na imperfeição humana. Os que compreendem isso, se procuram conscientemente trabalhar para que essas sementes germinem mais depressa, adquirem créditos que lhes são pagos no momento exacto das necessidades. Quando Jesus dizia a um doente: “Perdoados foram os teus pecados”, não era porque ele fizesse um milagre naquele instante, mas porque o doente vencera a sua prova graças aos seus méritos.

   As doenças revelam desajustes da nossa posição existencial. Esses desajustes decorrem da liberdade de que dispomos face às exigências evolutivas. A dor, a angústia, as inibições são como campainhas de alarme prevenindo-nos de abusos ou descuidos. Sem a liberdade de errar não poderíamos desenvolver as nossas potencialidades espirituais. A ideia do castigo divino, do juízo de Deus condenando os que erram é uma maneira humana, antropomórfica, de interpretarmos os acidentes da nossa viagem na astronave planetária que nos faz rodar em torno do Sol. Podemos socorrer-nos dessa imagem para modificar a nossa antiquada maneira de ver e interpretar a nossa precária passagem pela Terra. Somos passageiros de uma nave cósmica, envoltos no escafandro de carne e osso, submetidos a experiências semelhantes às dos astronautas que, não podendo ainda atingir as estrelas, fazem exercícios em órbita planetária. Os acidentes de viagem, as falhas técnicas, as dificuldades, os fracassos perigosos, a dor e a morte dependem da nossa maneira de agir durante a viagem e da nossa perícia ou imperícia, do grau de responsabilidade, de perspicácia, de bom senso, de calma, de amor e respeito ao semelhante que conseguimos desenvolver. Deus, consciência Cósmica, não interfere no nosso aprendizado, mas também não está alheio ao que se passa connosco. Da mesma maneira que um telepata na Lua pode captar as mensagens mentais que lhe sejam enviadas da Terra ou de outras naves espaciais, a mente suprema de Deus capta, naturalmente, ligada a tudo o que se passa no Universo, nos seus mínimos detalhes. Se necessário, as entidades ao seu serviço serão enviadas a socorrer-nos. Por toda a parte os seres espirituais agem continuamente no universo. Como dizia o filósofo e vidente Tales de Mileto, na Grécia Antiga: “O mundo está cheio de deuses, que trabalham na terra, nas águas e no ar.” É fácil compreendermos isso se nos lembrarmos da infinidade de seres invisíveis e visíveis que enchem o Universo agindo em todos os sentidos, sob uma orientação secreta, como robôs vivos, para manterem as condições adequadas em cada organismo dos reinos naturais e em nós mesmos. Se isso se passa no plano material denso, com muito mais facilidade podemos imaginar essa vigilância infinita no plano espiritual. A Providência Divina é o modelo supremo, o arquétipo, de todas as formas de providência que os homens organizam na Terra. As grosseiras imagens de Deus e da sua acção no Universo, que as religiões nos deram no passado, são agora substituídas por visões mais lógicas, racionais e justas, graças aos progressos do homem, no conhecimento progressivo e incessante da realidade em que vivemos. São retrógrados todos aqueles que ainda se apegam, nos nossos dias, às ideias ingénuas de um passado de milhares de anos. Mal iniciamos os primeiros passos na Era Cósmica e já podemos compreender melhor a beleza e a ordem da Obra de Deus e a importância suprema dos seus objectivos que são, na verdade, o destino de cada um de nós.

   As dificuldades nas curas pela terapia espírita decorrem, portanto, das nossas atitudes e acções no passado e no presente. Se prejudicámos a evolução de criaturas e comunidades nos nossos avatares anteriores, é natural que agora tenhamos de suportar a sua companhia e sofrer a sua inferioridade no nosso ambiente individual. Nenhum mago ou sacerdote nos livrará disso, nenhum exorcismo nos libertará, mas a nossa compreensão espiritual do problema e o nosso desejo natural de reparar os erros do passado nos tornará livres através dos entendimentos possíveis que os fenómenos mediúnicos nos propiciam. Como ensinou Jesus, devemos aproveitar a oportunidade de estarmos no mesmo caminho com o adversário, para nos entendermos com ele. Se soubermos fazer isso com amor, chegaremos ao fim da caminhada comum como companheiros e amigos, prontos para novas conquistas na nossa evolução. A terapia espírita dá-nos o socorro possível na medida exacta da nossa capacidade de recebê-lo. Não é, porém, por meio de actos vulgares e interesseiros de caridade e nem de medidas artificiais de reforma interior que chegaremos a esse resultado. Lembremo-nos do jovem rico que procurou Jesus, perguntando-lhe o que faltava para ele merecer o Reino dos Céus. Jesus tocou-lhe no ponto decisivo da questão – o desapego dos bens terrenos –, mandando-o vender tudo o que possuía e distribuir o resultado aos pobres. O jovem entristeceu e retirou-se da presença do Mestre. Não era a fortuna em si que o prejudicava, mas o seu apego a ela, a sua incapacidade de compreender ainda o verdadeiro sentido da vida. Por isso também a definição de Paulo sobre a caridade, num arrebatamento espiritual do apóstolo, ainda não foi compreendida por nós. O apego às condições passageiras da vida terrena, aos seus bens transitórios, perecíveis, impede-nos de abrir o coração e a mente para a suprema e imperecível grandeza da realidade espiritual. Dar esmolas, socorrer as necessidades do próximo são apenas meios de aprendizagem que nos levam à libertação. Temos de ir além, de abrir a nossa mente e o nosso coração para ver, sentir, brotando em nós próprios, sem nenhum interesse inferior, a fonte oculta que não está no poço de Jacob, mas na realidade ôntica, espiritual, profunda da pobre mulher samaritana. Temos em nós toda a riqueza do Universo, com todas as suas constelações e todas as hipóstases da teoria de Plotino, mas continuamos apegados às vaidades e intrigas da Terra. A terapia espírita, que é a mesma de Cristo, oferece-nos a água-viva da sua nova concepção do ser e do mundo. Enquanto essa água não jorra em nós, não seremos curados.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Motivos de Dificuldade nas Curas (1 de 2), 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

pensamento e vontade ~


Conclusões |

(das forças ideoplásticas)

Está terminada a parte demonstrativa desta obra.

Resta-me falar das grandes transformações que devem dar-se, necessariamente, nos domínios das ciências biológicas, fisiológicas, psicológicas e filosóficas, graças ao novo conceito relativo à natureza do espírito humano, conceito esse absolutamente revolucionário, que os factos impõem.

Neste sentido, assim se exprime o Doutor Gustave Geley:

“Que quer dizer o vocábulo ideoplastia? Quer dizer moldagem da matéria viva, feita pela ideia.

A noção da ideoplastia, imposta pelos factos, é capital.

A ideia não é mais um atributo, um produto da matéria. Ao contrário, ela, a ideia, é que modela a matéria e lhe confere a forma e os seus atributos.

Noutros termos, a matéria, a substância única resolve-se, em última análise, num dinamismo superior que a condiciona, estando esse dinamismo também na dependência da ideia.

Ora, isso é o soçobro total da fisiologia materialista.

Disse-o Camille Flammarion, no seu livro admirável As forças naturais desconhecidas, que estas manifestações “confirmam o que, ao demais, sabemos, isto é, que a explicação puramente mecânica da Natureza é insuficiente e existe no Universo alguma outra coisa, além da pretensa matéria. Não é a matéria que rege o mundo, mas um elemento dinâmico e psíquico.”

Sim, as materializações ideoplásticas demonstram que o ser vivo não pode considerar-se um simples complexo celular.

Ele, o ser vivo, aparece-nos, antes de tudo, como um dínamo-psiquismo e o complexo celular que lhe forma o corpo não é mais que um retracto ideoplástico desse dínamo-psiquismo.

Assim, as formas materializadas, nas sessões, se beneficiam do mesmo processo de geração.

Não são mais nem menos miraculosas, nem supranormais, ou, se o preferem, são-no igualmente.

É o mesmo milagre ideoplástico que forma, a expensas do corpo materno, mãos, rosto, vísceras, todos os tecidos, o feto integral; como a expensas do corpo do médium se formam rostos, mãos, ou todo o organismo de uma materialização.

Esta singular analogia, entre a fisiologia normal e a dita supranormal, encontra-se até nos mínimos detalhes.

Um dos principais é este: – a ligação do ectoplasma ao médium por um laço nutritivo, verdadeiro cordão umbilical, comparável ao que liga o embrião ao organismo materno.” (Do Inconsciente ao Consciente, págs. 69-70).

Depois de haver evidenciado as grandiosas consequências biológicas, fisiológicas e psicológicas que a nova teoria sobre a potência criadora da ideia acarretará, julga-se o doutor Gustave Geley no dever de completá-la, notando que a faculdade ideoplástica, inerente à ideia, não representa mais que simples unidade entre as múltiplas faculdades supranormais, que constituem os atributos espirituais do Eu integral, sobrevivente. Diz ele:

“Certo é, pois, que o organismo, longe de ser o organizador da ideia, tal como ensina a teoria materialista, é, muito ao contrário, condicionado pela ideia e, só aparece como produto ideoplástico do que existe de essencial no ser, ou seja, o seu psiquismo subconsciente.

Mas, isto ainda não é tudo.

Esse subconsciente que em si tem as capacidades directoras e centralizadoras do Eu em todas as suas representações, tem também o poder de se elevar acima dessas mesmas representações.

As faculdades telepáticas de acção mento-mental ou de lucidez, são representações que escapam precisamente das condições dinâmicas ou materiais que as regem.

O subconsciente paira mesmo acima do quadro das representações, isto é, do tempo e do espaço, na intuição, na genialidade, na clarividência.

Assim, a tese sustentada por Carl du Prel nas suas obras de admirável intuição; que Frederic Myers baseou em sólida documentação e nós próprios fazemos sobre um raciocínio não contestado, oferece-se agora, em toda a sua amplitude, ao exame e discussão dos sábios e pensadores de boa fé.

Sem reserva, pode afirmar-se:

– Há no ser vivo um dinamismo psíquico que constitui a essência do “Eu” e, que se não pode ligar ao funcionamento dos centros nervosos.

Esse dínamo-psiquismo essencial não é condicionado pelo organismo, mas, muito pelo contrário, tudo se passa como se organismo e funcionamento cerebral fossem por ele condicionados.” (Idem, págs. 142-143).

Esta nova definição científica do Ser vivente decorre irrefutável e segura, deste grande acontecimento: o de haver sido demonstrada pelos factos.

É a definição pela qual o Pensamento e a Vontade são forças plásticas e organizadoras.

E tão grande é o valor teórico dessa demonstração, que abre uma nova época científica, por desmoronar totalmente, antes de tudo, as imponentes, mas fictícias construções laboriosamente estabelecidas por numerosos grupos de investigações pertencentes a todos os ramos científicos, decalcadas no postulado da omnipotência da matéria, quando, na verdade, deverá o templo alicerçar-se no postulado diametralmente contrário, da omnipotência do espírito.

Advertirei, todavia, que a demolição do velho edifício científico não significa, de qualquer modo, que os representantes do saber tenham trabalhado em vão por todo um século.

Longe disso, o novo templo do saber há de ser reconstruído com os materiais preciosos retirados da demolição do templo velho.

Esses materiais eram bons, mas o fundamento estava mal colocado, uma vez que assente sobre as areias enganadoras das aparências fenoménicas, de mistura a prejuízos de escola e, por isso mesmo, fatalmente destinados a esboroarem-se, logo que a realidade, oculta sob as aparências, emergisse de uma análise mais profunda dos fenómenos vitais.

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Ernesto BozzanoPensamento e Vontade – Conclusões (1 de 4), 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Female Saint_1941, pintura de Edgard Maxence)

sábado, 13 de janeiro de 2024

apóstolos de verdade ~


Música, uma necessidade pedagógica |

A música está em desuso no mundo actual, pois o que se ouve em geral é um arremedo de música, imposto pela mídia, mercadejado por gravadoras que desejam lucro fácil e rápido. O povo está deseducado para o ouvir. Sertanojo, funk, pagodão e outros excrementos poluem aos ouvidos. A maioria dos jovens desconhece que somos a terra de Caymmi e Tom JobimMozart e Beethoven, nem pensar. A não ser que alguma canção daqueles (como foi Pela luz dos olhos teus de Jobim) vire tema de novela da globo. Então, salva-se algo da ignorância e do esquecimento.

Entretanto, a música não é um apetrecho postiço na vida humana, é respiro vital da alma, é canal de expressão de sentimento e sensibilidade, sem o qual o espírito se embota e perde em altura cultural e espiritual. A música é patrimônio de um povo, da humanidade toda e precisa ser passada, reconhecida, cultivada para as novas gerações, sob pena de regressarmos à barbárie.

Mas é preciso saber apreciar o que é bom, o que tem complexidade harmônica, ritmo rico, poesia bem feita… e só se pode aprender isso através da educação. Por isso é inconcebível uma escola sem música.

Assim, é digno de celebração o fato de que a partir desse ano de 2011, as escolas públicas brasileiras estão obrigadas a inserir a música em seu currículo, pela lei nº 11.769, de 2008, sancionada pelo presidente Lula (eis uma coisa bem feita por ele).

A música deveria entrar pela porta da frente da escola e ocupar um lugar de destaque e não ser entendida como um detalhe postiço do currículo.

Como acreditamos numa educação interdisciplinar, que mexa simultaneamente com todas as áreas do conhecimento, toque ao mesmo tempo todos os sentidos e desperte o interesse de crianças com diferentes tipos de inteligência e vocação – a música ocupa aí um lugar central, pois ela pode ser o ponto de partida e o ponto de chegada de um bom projeto interdisciplinar.

A música pode ser o eixo de congregação e intercâmbio de toda a escola, em corais, recitais, concertos, bailados… mas não essa coisa morna de dançazinhas ensaiadas e comandadas por professoras de má vontade, para pais e mães tirarem fotinhos (como são as festas juninas, as festas das nações e que tais!). É preciso professores que tenham cultura musical, que saibam quem é Pixinguinha e Louis ArmstrongBach e Villa-Lobos. Que saibam como levar isso para as crianças, mostrando um trecho da Flauta Mágica de Mozart, um Singing in the Rain com Gene Kelly ou o velho Caymmi cantando Minha Jangada vai sair pro mar. Há métodos próprios para introduzir as crianças no que é bom e belo. Deve ser feito em doses homeopáticas, com as canções mais acessíveis. Não devemos começar a mostrar o que é ópera com um Richard Wagner ou introduzir música orquestral com uma peça atonal. Mas também não se deve vulgarizar e mostrar clássicos com ritmo de rock ou a  Rainha da Noite com Edson Cordeiro.

Sensibilidade, sutileza, sensatez e bom gosto – eis o que é desejável, para que a criança entre no mundo da boa música, com gosto e prazer, e queira mais. O objetivo dessa introdução da música na escola não é que todos saiam músicos (embora é bom que se descubram e se incentivem os talentos), mas que todos se tornem apreciadores da música, sensíveis, cultos e com isso dilatem a alma, sejam mais criativos e tenham um recanto de canto onde repousar.

Em outros países do mundo, na Europa e nos Estados Unidos, há uma cultura de se cantar em conjunto. Quase todo mundo na vida já participou de algum coral e quando se juntam amigos e famílias, canta-se e canta-se afinado. Isso faz bem ao espírito. Apesar de sermos um povo tão criativo e musical, perdemos essa dimensão, acachapados pela incultura da televisão, que não só tirou das famílias a conversa, mas também a música. Desliguemos a rede Globo e ouçamos música em casa. Cumpramos a lei e coloquemos música na escola e vai haver uma melhora geral na inteligência, na cultura, uma queda de violência e uma elevação dos espíritos.

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Abaixo um exemplo de algo delicado: uma Lied de Mozart, para crianças, de que fiz uma versão para o português. (Lied significa canção em alemão; é um gênero musical erudito geralmente para voz e piano, feito com poemas tirados da literatura, onde canto e instrumento interagem de maneira rica. O piano não é mero acompanhamento da voz, mas entretece a música junto com a linha melódica feita pela canto.)




SAUDADES DA PRIMAVERA

Vem logo, primavera

e traz um novo frescor!

E faz brotar na terra

perfumes, cores e flor!

Eu quero olhar de mansinho

miosótis e manacás

e ver pelo caminho

a relva bordada de paz!

Verdade é que na terra

em que por bem eu nasci

eterna primavera

vigora e brilha aqui!

Mas quando foge o inverno

Assopram ares tão bons!

Setembro amigo e terno

traz novas nuanças e tons!




Música: Wolfgang Amadeus Mozart • Versão para o português: Dora Incontri • Arranjo: Luciano Vazzoler & Moacyr Camargo• Voz: Dora Incontri • Piano: Luciano Vazzoler • Vozes das crianças: Beatriz Gross Barboza, Julia Fidelis Oriola, Letícia Barbosa Magalhães,  Luísa Carvalho Grossi de Almeida e Paola de Angelis • Regente do coro infantil: Bia de Luca

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Dora IncontriMúsica, uma necessidade pedagógica, publicado no seu blogue – Dora Incontri | Educação, cultura, arte e espiritualidade / 13 de junho de 2011, primeiro fragmento.
(imagem de contextualização: São Luís com a coroa de espinhos, lápis e giz de Alexandre Cabanel)
(música em: Saudades da PrimaveraLied de Mozart, versão e cointerpretação de Dora Incontri)

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


O País de Gales. A Escócia. A obra dos bardos 
(Cap. III)

Ilha de Man oferece-nos também um belo exemplo de ressurreição céltica. Ela possui um parlamento autónomo, uma sociedade preservadora da língua Manx, jornais, serviços religiosos de Manx, escolas, etc.

Quanto à Cornualha Inglesao seu dialecto, o córnico, também não está extinto como se pretende, pois um certo número de famílias ainda o falam.

Assim escreveu Le Goffic:

“O cornualhense, como o bretão de França, a quem se assemelha tão estranhamente, permaneceu em comunicação permanente com o Além. Ele vive, como um bretão, numa espécie de familiaridade dolorosa com os espíritos dos mortos, consultando-os, ouvindo-os e compreendendo-os.”

O País de Gales é considerado como o mais antigo e o mais importante foco ou escola de Bardismo. Eis o que Jean Reynaud escreveu sobre esse assunto na bela obra L’Esprit de la Gaule, página 310:

“Pode dizer-se que os druidas, convertendo-se ao Cristianismo, não se extinguiram totalmente no País de Gales, como na nossa Bretanha e noutros países de sangue gaulês. Eles tiveram, logo em seguida, uma sociedade, solidamente constituída, dedicada, principalmente na aparência, ao culto da poesia nacional, mas que, sob o manto poético, conservou com fidelidade a herança intelectual da antiga Gália: é a Sociedade Bárdica do País de Gales, que se manteve como sociedade ora secreta, ora legalizada, desde a conquista normanda e, após ter, primitivamente, transmitido por via oral a sua doutrina, como imitação da prática dos druidas, decidiu, durante a Idade Média, confiar secretamente à escrita as partes mais essenciais dessa herança.”

Na realidade, o bardo é um poeta, um orador inspirado. Podemos compará-lo aos profetas do oriente, a esses grandes predestinados sobre quem passa o sopro do invisível.

Na nossa época o título de bardo perdeu o seu prestígio, devido ao abuso realizado, mas se voltarmos ao sentido primitivo do termo, notaremos a presença de importantes personagens como TaliesinAneurinLlywarch-Hen, etc. Após tantos séculos, os seus sotaques viris, quando eles afirmam o seu patriotismo e a sua fé, fazem ainda vibrar as almas célticas.

Não devemos ver na obra dos antigos bardos um simples exercício do pensamento, um jogo do espírito ou uma música de palavras. Os seus versos e os seus cantos constituem um comentário e um desenvolvimento das Tríades, um ensino, uma arte que abre perspectivas imensas aos destinos da alma, elevando-a para Deus. Ela confere aos seus intérpretes uma espécie de auréola e de apostolado.

Esse ensino representa um adiantamento enorme sobre os tempos futuros. Tomemos, por exemplo, Le Chant du Monde (O Canto do Mundo), de Taliesin (segundo Barddas, cad. Goddeu, um livro celta). Diz este bardo:

“Grande viajante é o mundo; enquanto ele desliza sem parar, permanece sempre na sua estrada e, quanto à forma dessa estrada é admirável para que o mundo nunca saia dela!”

Ele descreve assim o caminho do globo através do espaço, muito antes das descobertas de Galileu que puseram fim ao antigo preconceito bíblico da imobilidade da Terra.

Sejam quais forem as constatações que se levantaram sobre a data exacta dessas obras, não se pode duvidar de que elas não sejam bem anteriores à ciência da Idade Média; o mesmo acontece com o conjunto das Tríades que afirmam a natureza espiritual do ser humano, a evolução da alma por vidas sucessivas através dos renascimentos, verdade que a ciência actual começa aos poucos a entrever.

Esses inspirados também eram videntes. As suas faculdades psíquicas lhe permitiam mergulhar no futuro e aí ler as vicissitudes, os reveses, as provas dolorosas que aguardavam os povos celtas. Mas eles sabiam que o ideal gravado neles não podia perecer. Eles sabiam que o sofrimento tempera as almas e que, mais tarde, esses povos restituiriam às civilizações, pervertidas pelos excessos do materialismo, o conceito elevado que constitui todo o valor da vida e mostra ao homem o caminho recto e seguro.

Os grandes antepassados voltaram mais de uma vez sobre a Terra, seja na Inglaterra, seja na França, em novos corpos. Eles tiveram nomes ilustres que nós poderíamos citar, mas abusaram tanto desses nomes célebres que preferimos deixar aos pesquisadores o cuidado de reconhecê-los entre aqueles que conduziram bem alto, através dos séculos, a tocha da arte poética e do pensamento radiante.

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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO III – O País de Gales. A Escócia. A obra dos bardos 3 de 3, 13º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, OssianDesaixKléberMarceauHocheChampionnet, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O Espiritismo na Arte ~


Parte IV

a França, a sua missão; a alma Céltica ~

(abril de 1922)

O talento da França é feito de equilíbrio e de harmonia. Apesar de certas faltas no passado, pode dizer-se que ele muitas vezes serviu de mediador entre as escolas mais diversas, entre os sistemas mais opostos. Ainda hoje, na ordem política, por exemplo, a França se mantém entre a reacção e a anarquia. Foi frequente assim, no decorrer da sua história, nos domínios da arte e do pensamento.

Vimos que a sua língua, que é uma das expressões do seu talento, apresenta as qualidades de precisão e de flexibilidade que fazem dela um maravilhoso agente de difusão e de propaganda. Ela sabe emprestar às ideias, ao mesmo tempo, a força e a graça e, é por aí que ela pode contribuir largamente para iniciar o mundo no conhecimento das leis superiores.

A literatura e a poesia francesas, melhor que todas as outras, souberam reproduzir todas as nuances do pensamento e do sentimento; a ternura, a energia, o encanto, a doçura infinita do ideal, numa palavra, todos os sonhos sobre-humanos da arte e da beleza.

O luminoso talento da França tem por papel, principalmente, reunir e fundir, numa média equilibrada, os dois talentos diferentes, o do Sul e o do Norte, da raça latina e das raças setentrionais. É, talvez, ao encontro desses elementos opostos, ao fluxo e refluxo dessas correntes diferentes, que se deve a mobilidade do seu espírito e a instabilidade por vezes enfadonha de seus desígnios; porém, sempre após os períodos de crise, em que o equilíbrio nela é alterado, o espírito nacional retorna a sua actividade e ao seu progresso.

A sua missão, portanto, parece ser a de fornecer aos outros povos, de espírito mais lento, as indicações, as directrizes das quais eles tiram uma aplicação prática e fecunda. É nesse sentido que a França é um agente maravilhoso de progresso e de evolução humana, pelo seu cuidado com a verdade e com a luz e, pela beleza das formas com as quais ela se compraz em revesti-las.

São essas qualidades que lhe darão um papel preponderante na difusão do Espiritismo filosófico e moral, enquanto que os países anglo-saxões estão interessados em representá-lo, principalmente sob o seu aspecto científico e experimental.

Após as suas horas de tentativas e de obscuridade, o génio da França, que não é outro senão a alma sempre viva e imortal da Gália, se ergue e, com um vigoroso esforço, se liberta dos atoleiros terrestres e se lança em direcção ao céu, para ali descobrir novos horizontes, novas perspectivas sobre o futuro e mostrá-las como objectivo à humanidade em marcha.

Para todos aqueles que sabem estudar e compreender o génio da nossa raça, sob o véu do cepticismo que por vezes a recobre, a alma céltica reaparece e, nas horas solenes, são os seus impulsos que determinam as resoluções viris, os actos decisivos.

É ela que inspira Jeanne d’Arc e pelas suas mãos livra a França do jugo dos ingleses; ainda é ela que provoca essa poderosa explosão espiritualista que, em época revolucionária, leva a todos a noção essencial de liberdade, assegurando assim o triunfo da alma moderna sobre as teorias deprimentes do determinismo e do fatalismo. É sempre ela que, nos dias sombrios de 1914, revela todas as forças vivas da nação e a conduz, heróica e sublime, diante do despotismo germânico e do militarismo teutónico (i); mais recentemente ainda, a alma céltica coloca a nação como um dique em oposição à onda vermelha do bolchevismo (ii).

A França tem maiores deveres que as outras nações, porque recebeu maiores dons, mais brilhantes qualidades. Assim, as suas responsabilidades são mais pesadas e mais extensas. Hoje, uma tarefa, mais importante do que todas as outras, se desenha para ela no mundo inteiro. Trata-se de iniciar os homens nas belezas de um futuro mais vasto, mais rico que aquele que as concepções filosóficas e religiosas puderam entrever. Trata-se de guiar a ascensão humana em direcção ao grau mais elevado do pensamento, onde se acendem os clarões de um novo dia, a aurora de uma civilização mais nobre e mais digna, livre dos flagelos que, até aqui, entravaram o caminho áspero e doloroso da humanidade.

As outras nações têm, cada uma, a sua tarefa importante, mas a França ultrapassa a todas pela variedade de suas aptidões e de suas actividades. É por isso que o mundo inteiro tem os olhos postos sobre ela, esperando o sinal que traçará a sua nova evolução.

Ó alma viva da França, desliga-te das pesadas influências materiais que ainda te oprimem, eleva-te até esse nobre ideal que é a tua missão adquirir e propagar no mundo! Somente quando a nova revelação for conhecida por todos os povos, quando ela tiver dado à sua expressão a forma magnífica do teu talento, é que os homens compreenderão o seu grande destino, bem como os deveres e os encargos que ele lhes impõe e, a justiça e a paz enfim reinarão sobre a Terra regenerada. E por esse meio o teu papel aparecerá aos olhos de todos. Tu serás respeitada pelas gerações e, a tua glória se iluminará com um brilho que nada poderá mais impedir!

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(i) Teutónico: relativo aos teutões, povo antigo da Germânia que habitava as margens do mar Báltico; relativo à Alemanha e aos alemães. (N.T., segundo o D.K.L.)
(ii) Bolchevismo: doutrina da ala esquerda maioritária do Partido Operário Social-Democrata Russo; o mesmo que Comunismo. (N.T., segundo o D.K.L.)


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – A França, a sua missão; A alma céltica, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Le Livre de la Paix, pintura de Edgard Maxence

terça-feira, 28 de novembro de 2023

literatura do além-túmulo ~


Capítulo VI

 Lembro-me que há alguns anos, tendo consagrado longo estudo à análise das admiráveis provas de identificação pessoal fornecidas pela entidade Oscar Wilde(i) o célebre poeta e dramaturgo inglês, nas suas comunicações por intermédio da médium Hester Dowden, terminei observando que, no caso em questão, foram dadas todas as provas cumulativas que se estava razoavelmente no direito de exigir nestas circunstâncias.

Enumerei, com efeito, a transmissão de numerosas provas pessoais, ignoradas de todos os assistentes e das quais se constatou a autenticidade; a prova memorável da identidade da escrita, seguida, de modo impecável, no decorrer de várias centenas de páginas; a prova mais importante ainda a da identidade do estilo, ou, para melhor dizer, dos dois estilos que caracterizavam a personalidade literária do defunto; enfim, a mais concludente ainda, da emergência da personalidade intelectual e moral de Oscar Wilde com todas as variedades do seu carácter: personalidade complexa, original, inimitável.

Depois do que acrescentei:

“Noto, finalmente, que Oscar Wilde prometeu, por fim, acrescentar às provas fornecidas até aqui uma nova demonstração: a de uma comédia póstuma com o auxílio de sua médium.”

Ele manteve a palavra dada. A comédia foi ditada à médium logo depois da publicação do seu livro: Psychic messages from Oscar WildeHester Dowden (Travers-Smith) dá, a esse respeito, as seguintes informações:

“Eu nunca fui admiradora das obras de Oscar Wilde, nem a sua personalidade nunca me suscitou interesse. Creio concluir racionalmente então que a minha mão tem escrito algo que não provêm de mim. Oscar Wilde vivera numa época que não a minha e, a partir das suas obras literárias exala algo diferente dos dias de hoje. Eu não posso remontar ao passado, ao período de 1880, como ele fizera e, ele não se pode emancipar dos gostos literários e dos costumes do seu tempo, que eu não vou lembrar-me em tudo. Ora, é nesta condição mental que consiste o traço característico mais saliente de todas as suas mensagens mediúnicas e da sua comédia. Quando me ditava, pediu-me que o informasse sobre os gostos literários e costumes da nossa época e eu lhe expliquei as mudanças radicais que tinham ocorrido, mas ele não as levou em conta e veio a emancipar-se do ambiente em que vivia.

Pessoalmente, considero que a prova mais convincente que se pode imaginar em favor da sobrevivência da alma é a que se refere à personalidade intelectual e moral dos defuntos que se comunicam. As indicações relativas à existência terrestre, sobretudo se desconhecidas de todos os assistentes, são importantes e convincentes, mas quase sempre susceptíveis de serem explicadas pela hipótese das reminiscências latentes nas subconsciências dos assistentes (criptomnesia). Nenhuma intenção tenho de contestar a importância desses informes, que constituem a base sobre a qual repousam as pesquisas experimentais concernentes à questão da sobrevivência; sem elas não se poderia considerar como a identificação do defunto tenha sido provada. Entretanto, cada vez que as informações desse género constituem as únicas provas de que dispomos, não podemos considerar-nos autorizados a afirmar que a personalidade do defunto comunicante estava realmente presente ou que o espírito sobrevive à morte do corpo. É a mentalidade do morto que é preciso salientar nas manifestações mediúnicas; é a sua personalidade intelectual e moral, com todos os matizes do seu temperamento e a maneira de compor as frases que o caracterizavam. Eis o que devemos examinar experimentalmente, se queremos chegar a dissipar qualquer dúvida relativamente ao problema do além. Penso que, no domínio das pesquisas psíquicas, não se compreendeu ainda toda a importância decisiva que reveste a personalidade psíquica da entidade que se comunica e que deveria ser o elemento essencial nas provas de identificação espírita.

Quando as mensagens de Oscar Wilde se sucediam diariamente, eu lhe perguntava se não podia ditar-me alguma obra literária, a título de prova ulterior de sua presença. Dirigindo-lhe este pedido, não pensava absolutamente numa produção de teatro mas, antes, nos seus ensaios literários, onde, a meu ver, se encontra o que de melhor o seu talento produziu. Foi o próprio Oscar Wilde que me declarou que ia escrever uma comédia e que se sentia em condições de o fazer. Quanto a mim, fiquei antes céptica a esse respeito: tinha notado, com efeito, que, na mediunidade psicográfica, as sessões curtas são as únicas que dão bons resultados e considerava então como irrealizável o seu projecto de me ditar uma comédia inteira.

As primeiras tentativas pareceram, de facto, justificar o meu cepticismo: Oscar Wilde era um comunicante indeciso, difícil, autoritário, por vezes de um humor muito desagradável. Durante as primeiras cinco ou seis sessões, ele discutiu comigo a respeito das condições mediúnicas; informou-me que já tinha concebido o cenário de uma comédia inteira, que eu nada tinha a preocupar-me; que se sentia em condições de dispor as cenas, de escolher os nomes dos seus personagens, de desenvolver os diferentes caracteres utilizando eficazmente a técnica do drama. Fiz-lhe notar que as antigas modalidades tradicionais dos cenários tinham sofrido, nos nossos dias, grandes mudanças, como, por exemplo, os “à parte” tinham sido abolidos. Ele respondia, da mesma maneira, a todas as minhas observações, isto é, advertindo-me que eu não era autora dramática e que como ele já tinha na sua cabeça todo o entrecho do drama, não poderia desistir...

Com efeito, desde o começo, era manifesto que Oscar Wilde tinha organizado, no seu espírito, todo o enredo da comédia, ainda que não chegasse a desenvolver o seu diálogo do modo que desejava. Devo reconhecer, sinceramente, que a falta era minha, pois estava nessa época sobrecarregada de trabalhos urgentes que me absorviam a actividade.

Durante os meses de junho e julho de 1923, o primeiro ditado do drama foi executado; ele tão-só constituía, entretanto, uma espécie de rascunho que veio a ser posto em causa mais tarde pelo próprio. Não quero com isso dizer que ele tenha depois refeito a ordem das cenas, pois esta ficou tal qual era, mas os caracteres dos personagens foram, ao contrário, sensivelmente reformados.

Depois, no mês de agosto, pude consagrar, regularmente, três ou quatro sessões por semana a Oscar Wilde: isso se dava habitualmente das 11 às 13 horas.

O sistema de trabalho que Wilde tinha adoptado consistia num retorno contínuo para trás. Quando ele tinha ditado um acto de sua comédia, a minha auxiliar, srta. Cummins, devia relê-lo em alta voz e, Oscar Wilde a interrompia a todo o instante, sugerindo correcções que sempre constituíam uma melhoria sensível sobre o que ditara anteriormente. A sua diligência era extraordinária, ela excedia muito a minha força de trabalho. Ele refazia, aperfeiçoava, intercalava um período com cuidados tão meticulosos que se tornava penoso continuar, tal o sentimento pesado de monotonia que, transformando-se em sonolência, me causava.

Tinha resolvido nunca reler o que tinha sido transmitido mediunicamente, a fim de evitar que a minha mente subconsciente pudesse exercer certa influência sobre o ditado em curso; pensava então que não havia nessa comédia nenhuma ideia coerente e me sentiria desencorajada se a srta. Cummins não estivesse aí para garantir-me, de tempos a tempos, que o tema se desenvolvia, diariamente, de maneira precisa e interessante.

A obra dramática foi intitulada pelo seu autor: Uma comédia extraordinária. Se ela devesse ser representada, duvido que os directores de teatro consentissem em conservar tal título, mas creio que Oscar Wilde não veria com bons olhos a modificação.

Oscar Wilde explicou que se propusera delinear na sua comédia a continuidade inalterada da existência humana – nos seus alvos e nas suas aspirações – assim também antes como depois da crise da morte e, que, por consequência, o último acto ia desenrolar-se no mundo espiritual. Quando ele exprimiu esta proposta, voltou-me o desânimo, sabendo eu bem que nada é tão árduo em literatura como inserir cenas do além numa comédia. Quando se quer aí introduzir este elemento, vai-se, inevitavelmente, ao encontro do insucesso. Tais eram as minhas preocupações quando Oscar Wilde anunciou que o último acto de sua comédia se devia desenrolar nas esferas espirituais...

Quando o drama foi terminado, li-o para uma das minhas amigas, que possui grande experiência de teatro. Logo que cheguei ao meio do segundo acto, ela me interrompeu, notando: “Tudo isso é tão mundano que o autor jamais chegará a passar a ponte que separa o visível do invisível. Eis uma tarefa impossível!”

Terminada, porém, a leitura, a minha amiga teve exclamações de surpresa e admiração pela genialidade com a qual o autor tinha sabido vencer o obstáculo. Nenhuma solução de continuidade no desenvolvimento do drama, embora os dois primeiros actos sejam de um género ligeiro, análogo à comédia do mesmo autor: A importância de ser sério.

O drama termina com uma nota consoladora: o amor pode, ou não, existir no além tal como o conhecemos aqui. Nas esferas espirituais, o amor-paixão não deixa de existir, o amor se manifesta na pesquisa da “alma gémea”, complemento de nós mesmos. Nós nos completamos: tal é a aspiração suprema de todo o espírito; quando o fim é atingido, os espíritos casados vêem nítida e luminosamente o caminho ascensional que lhes resta a percorrer, unidos um ao outro.” (Light, 1925, pág. 524).

Tal é a interessante e instrutiva descrição feita pela sra. Hester Dowden a respeito da maneira pela qual foi ditada a comédia de Oscar Wilde. Para completá-la, vou reproduzir uma alínea de um artigo que foi consagrado ao memorável acontecimento pelo Sr. David Gow, director da revista Light. Escreve ele:

“Notarei de passagem que assisti, pessoalmente, ao ditado mediúnico do drama de Oscar Wilde durante o qual o autor morto ocupou a médium e a sua secretária por várias semanas consecutivas, corrigindo, refazendo, suprimindo, dando tantas disposições e ordens que tornava muito penosa a existência das duas damas. Tudo se desenrolou como se o autor invisível, mas absolutamente real, se metesse febrilmente ao trabalho, desenvolvendo alternativamente um temperamento irritável, choramingador, brilhante cínico e, algumas vezes dócil e simpático. A comédia, que veio assim à luz, parece uma obra de arte extraordinária, mas é preciso notar a esse respeito que um director de teatro a quem ela foi oferecida para ser representada, depois de a ter lido, relido e pesado, declarou que ele renunciava a pô-la em cena, não porque não fosse obra de Oscar Wilde, mas porque era dele mesmo! Ele queria, com estas palavras, fazer alusão ao assunto e à técnica do desenvolvimento das comédias de Oscar Wilde, que julgava, para o futuro, fora de moda.” (Light, 1828, pág. 18).

Essa declaração de um director de teatro é verdadeiramente preciosa e muito significativa.

Resumindo o que se acaba de ler e concluindo, noto que, sob o ponto de vista teórico, todas as circunstâncias que acabo de transmitir tomam, cumulativamente, valor enorme em favor da interpretação espírita do caso de que nos ocupamos. Os que leram a comédia póstuma de Oscar Wilde são acordes em afirmar que ela constitui uma obra de arte magistralmente orientada e que é uma reprodução maravilhosa do estilo, da forma, da técnica teatral que caracterizavam, no seu conjunto, um só autor: Oscar Wilde, quando vivo. E se isso não bastar para identificar uma personalidade literária, é preciso ajuntar aí o incidente tão eloquente de um director de teatro ter declarado que a comédia em questão não poderia ser representada com sucesso pelo facto do seu assunto e seu desenvolvimento terem envelhecido meio século. Não se poderia imaginar confirmação mais eficaz em favor da identidade pessoal da entidade comunicante, pois que a reputação de Oscar Wilde atingira o seu apogeu há meio século e os dramas escritos por ele, quando vivo, apresentam todos os mesmos defeitos assinalados pelo director do teatro, ao mesmo tempo que todas as grandes qualidades literárias e as idiossincrasias psíquicas muito especiais de que acabamos de nos ocupar.

Agora, voltando ao que antes fiz notar, lembro que Oscar Wilde tinha, antecipadamente, dado todas as provas de identificação pessoal que se pode razoavelmente exigir de um morto que se comunique. Recordo haver feito notar que a única prova que ele poderia fornecer ainda seria a de demonstrar aos vivos que a sua intelectualidade, o seu temperamento de autor, a sua virtuosidade incomparável de cinzelador de frases e de artista apaixonado das palavras permaneceram intactas depois da morte do corpo. Ora, ele deu também esta prova última, que reveste valor probante superior a qualquer outro, embora não se possa passar pelos outros para atingir a demonstração experimental, sobre a base dos factos, da sobrevivência de uma individualidade pensante.

Noto, enfim, que o valor teórico desta última “prova literária” é a tal ponto eficaz que triunfa mesmo sobre uma objecção apoiada numa hipótese metafísica fundada em memórias de amplidão infinita. Faço alusão à velha hipótese, agora novamente em moda, formulada com um fim puramente especulativo, pelo professor William James, segundo a qual não se poderia teoricamente excluir a possibilidade da existência, no universo, de um “reservatório cósmico de memórias individuais”, do qual os médiuns extrairiam as indicações verídicas relativamente às personificações de defuntos desconhecidos de todos. Não é agora o momento de discutir essa hipótese, que tenho longamente analisado e refutado, mantendo-me no terreno dos factos, numa monografia especial; noto somente aqui que, mesmo concedendo-se à hipótese em questão a extensão incomensurável que lhe conferem os seus defensores, ela não chegaria mesmo a fornecer provas de identificação espírita análogas às que venho a relatar, pois que não se referem ao que se deveria encontrar num “reservatório cósmico de memórias individuais”. É claro, com efeito, que, no nosso caso, não se trata de lembranças de espécie alguma, mas de um trespassado que se manifesta ditando uma obra literária, isto é, executando uma acção que se desenrola no presente e, que não se poderia então encontrar em parte alguma, em estado de vibração latente.

Repito, então, que a circunstância de ter chegado a triunfar também da hipótese metafísica do “reservatório cósmico de memórias individuais” constitui uma circunstância teoricamente muito importante. De facto, ela equivale a afirmar que nenhuma hipótese não-espiritualista chegará jamais a explicar, no seu conjunto, o memorável caso de identificação espírita do qual o falecido escritor Oscar Wilde foi protagonista.

Inútil é acrescentar que isto serve para fazer ressaltar o valor teórico muito especial que podem revestir os casos em geral de comunicações psicográficas na base de “ensaios literários”, ditados por entidades espirituais que afirmam ser autores conhecidos, isto é, “ensaios literários” susceptíveis de serem submetidos aos processos de análise comparada.

/...

(i) Bozzano refere-se ao artigo Le retour d’Oscar Wilde, incluído na obra Cinco Excepcionais Casos de Identificação de Espíritos (Publicações Lachâtre), sob o título “Surpreendente Caso de Identificação Espírita”. (N.E.)


Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo VI, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

domingo, 12 de novembro de 2023

belo maio | bela como os lírios ~


XVI

Jeanne d'Arc e o ideal céltico ~

(I de IV)

Ó terra de granito esmaltada de carvalhos!

Uma noite, o Espírito de J. Michelet, precedendo e anunciando o de Jeanne d'Arc, dirigiu-nos estas palavras, no decorrer de uma das nossas reuniões de estudo:

“Jeanne adquiriu nas suas existências anteriores o sentimento dos grandes deveres que teria de cumprir. Encontrámo-nos muitas vezes nesses longínquos tempos. O laço que desde então se estabeleceu entre nós a atrai. Ela vos inspirará, do mesmo modo pelo qual me inspirou a mim. O meu livro não foi mais do que um eco da sua paixão pela França e pela verdade. Vai agora descer, para vos transmitir uma parcela da verdade divina.”

Jeanne, como todas as almas que connosco percorrem o ciclo imenso da evolução, contou numerosas existências na Terra. Algumas foram brilhantes, vividas sobre os degraus de um trono; outras obscuras; todas, porém, de resultados fecundos para o seu próprio adiantamento e benéficas para os seus semelhantes.

As primeiras transcorreram durante o período céltico, no país de Armor. Lá é que a sua personalidade se impregnou dessa natureza particular, feita de ideal, de intrepidez e de mística poesia, que a caracteriza no décimo quinto século.

Desde a infância em Domremy, aprazia-lhe frequentar os lugares onde se celebraram os ritos druídicos: os bosques de carvalho, testemunhas das antigas evocações das almas, as fontes sagradas, os monumentos de pedras brutas, esparsas aqui e ali, nos arredores da aldeia. Gostava de adentrar-se na espessa floresta, para lhe escutar as harmonias, quando, sacudindo-a, o vento a fazia vibrar qual harpa gigantesca. Com o olhar de vidente, distinguia, por sob as abóbadas verdejantes, as misteriosas sombras dos que presidiam àquelas evocações e aos sacrifícios. Entre os seus guias invisíveis, poder-se-ia deparar com os Espíritos protectores das Gálias, os mesmos que em todas as eras prestaram assistência aos filhos de Artur e de Merlin e dão aos que lutam por uma causa nobre a vontade e o amor que conduzem à vitória.

Feneceu nas ramagens o visco, nos lares apagou-se a chama sagrada; mas, no coração de Jeanne, vívida estará sempre a fé nas vidas inextinguíveis e nos mundos superiores. Os historiadores, que lhe souberam analisar e compreender o carácter, reconheceram nele os influxos de uma dupla corrente – céltica e cristã, cuja origem ela própria nos indicará em breve. Henri Martin, notadamente, a acentuou nas páginas de sua História. Em primeiro lugar, ele assinala, nos seguintes termos, as lembranças deixadas pelos Celtas, ainda vivas no tempo da heroína:

“Próximo da casa de Jeanne d'Arc passava uma vereda que, atravessando tufos de groselheiras, subia o outeiro a cujo cimo, coberto de mata, era dado o nome de Bois Chesnu. A meia encosta, debaixo de grande faia isolada, borbotava uma fonte, objecto de culto tradicional. Nas suas águas claras, desde tempos imemoráveis, buscavam a cura os enfermos que a febre atormentava... Seres misteriosos, anteriores entre nós ao cristianismo e que os camponeses nunca assentiram em confundir com os espíritos infernais da legenda cristã, os génios das águas, das pedras e dos bosques, as senhoras fadasfrequentavam a cristalina fonte e a faia secular, que se chamava o Belo Maio. Ao entrar a primavera, vinham as donzelas dançar em baixo da árvore de Maio, “bela como os lírios” e pendurar-lhe nos galhos, em honra das fadas Celtas, grinaldas que desapareciam durante a noite, segundo era voz geral”. (i)

Descreve em seguida as impressões da virgem Lorena:

“As duas grandes correntes que se haviam juntado para dar nascimento à poesia cavalheiresca, a do sentimento céltico e a do sentimento cristão, misturaram-se de novo para formar essa alma predestinada. A jovem pastora umas vezes sonha ao pé da árvore de Maio, ou sob os robles, doutas, passa horas esquecidas no fundo da pequenina igreja, em êxtase diante das santas imagens que resplandecem nas vidraças... Quanto às fadas, ela nunca as viu ao luar, descrevendo os círculos de suas danças, em volta do Belo Maio. A sua madrinha, porém, outrora as encontrara e Jeanne julga perceber de quando em quando formas imprecisas, nos vapores do crepúsculo: gemem vozes à tarde nos ramos dos carvalhos; as fadas já não dançam – choram: é o lamento da velha Gália que expira!”. (ii)

Finalmente, falando do processo de Ruão, diz ainda o mesmo autor: (iii)

“Jeanne soube opor o livre génio gaulês ao clero romano, que intentava pronunciar-se em definitivo sobre a existência da França. Por seu intermédio, o génio místico reivindica os direitos da personalidade humana, com a mesma força que o génio filosófico; a mesma alma, a grande alma da Gália, desabrochada no Santuário do Carvalho, brota igualmente no livre-arbítrio de Lérins e do Paracleto, na soberana independência da inspiração de Jeanne d'Arc e no Eu de Descartes.”

A própria Jeanne, confirmando esses modos de ver, assim se exprimia numa mensagem que ditou em Paris, no ano de 1898: (iv)

“Remontemos, por instantes, ao curso das idades, a fim de aprenderdes o caminho que percorri, preparando-me para transpor a etapa dolorosa que conheceis.

“Múltiplas foram as existências que contribuíram para o meu progresso espiritual. Decorreram na velha Armorica, debaixo do zimbório dos grandes robles seculares, cobertos do visco sagrado. Foi lá que, lentamente, me encaminhei para o estudo das leis do Espírito e para o culto da pátria.

“Oh! entre todas, benditas as horas em que o bardo, com os seus cantares alegres, nos fazia palpitar os corações e nos abria os olhos para a luz, permitindo-nos entrever as maravilhas do infinito! Ensinava-nos então que o passar da morte à ressurreição gloriosa do Espírito, no espaço, representa uma simples transformação, sombria, ou luminosa, conforme o homem se conduziu nesse mundo: ou seguindo a estrada da justiça e do amor, ou deixando-se dominar pelas forças avassaladoras da matéria. Fazia-nos compreender as leis da solidariedade e da abnegação; instruía-nos sobre o que era a prece, dizendo: “Orar é triunfar; a prece é o motor de que o pensamento se serve, para estimular as faculdades do Espírito, as quais, no espaço, constituem a sua ferramenta. A prece é o ímã poderoso do qual se desprende o fluido magnético espiritual, que, não só pode aliviar e curar, como também descerra ao Espírito horizontes sem fim e lhe dá azo de satisfazer ao desejo de conhecer e aproximar-se continuamente da fonte divina, donde emanam todas as coisas. A prece é o fio condutor que põe a criatura em relação com o Criador e com os seus missionários.”

“Um dia, compenetrada dessas verdades, adormeci e tive a seguinte visão: Assisti, primeiramente, a muitos combates, oh! impossível de serem evitados por efeito do livre-arbítrio de cada um; mas, sobretudo, por motivo do amor ao ouro e à dominação, os dois flagelos da Humanidade. Depois, descortinei claramente a grandeza futura da França e o seu papel de civilizadora no porvir. Deliberei consagrar-me muito particularmente a essa obra.

“Logo me vi rodeada de uma multidão simpática, que na maior parte chorava e deplorava a minha perda. Em seguida, o veneno, o cadafalso, a fogueira passam vagarosamente por diante de mim. Senti as labaredas devorando-me as carnes e desmaiei!... Vozes amigas chamaram-me à vida e me disseram: “Espera! A falange celeste que tem por missão velar sobre esse globo te escolheu para secundá-la nos seus trabalhos e assim acelerar o teu progresso espiritual. Mortifica a tua carne, a fim de que as suas leis não possam ser obstáculo ao teu Espírito. A provação será curta, porém rude. Ora e a força te será dada: colherás da tua obra todas as bênçãos nos tempos vindouros. Assegurarás a vitória da fé arrazoada contra o erro e a superstição. Prepara-te para fazer em tudo a vontade do Senhor, a fim de que, chegada a ocasião, tenhas adquirido bastante energia moral para resistir aos homens e obedecer a Deus! Seguindo estes conselhos, os mensageiros do céu virão a ti, ouvirás as suas vozes, eles te guiarão e aconselharão; podes ficar tranquila, não te hão de abandonar!”

“Como descrever o supremo anelo que se apoderou de mim! Senti o aguilhão do amor penetrar todo o meu ser. Já não tive outro objectivo que não fosse trabalhar pela libertação espiritual deste país abençoado, em que acabava de saborear o pão da vida e de beber pela taça dos fortes. Essa visão foi para a minha alma um celestial viático.”

/... 
(i) Henri Martin – Histoire de France, t. VI, páginas 138 e 193.
(ii) Ibidem, pág. 140.
(iii) Ibidem, t. VI, pág. 302.
(iv) Ver: Revue Seientifique et Morale du Spiritisme, Janeiro de 1898.


Léon Denis, Jeanne d’Arc Médium, Segunda Parte – As missões de Jeanne d'Arc, XVI Jeanne d’Arc e o ideal céltico (I de IV) 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L'Annonciation, óleo sobre painel (1901), de Edgard Maxence