sábado, 27 de junho de 2015

o sentido da vida ~

Cérebro | e Espírito

Não está totalmente errada a ciência moderna, ao considerar o homem sob o aspecto monista definido por Espinosa, O Espiritismo, na sua função de síntese dos conhecimentos humanos, abre largas perspectivas novas ao pensamento do século, permitindo sobretudo o esclarecimento de velhas questões e velhas rixas, que pareciam para sempre insolúveis. Assim, enquanto os defensores da biologia moderna acham intransponível o abismo que separa o dualismo de Descartes do monismo de Espinosa, o Espiritismo entende que tudo não passa de simples jogo de palavras, facilmente desfeito à luz dos seus princípios. De facto, se o biólogo afirma que o corpo e espírito são um todo único, e o teólogo responde que, pelo contrário, o espírito é independente do corpo, Espiritismo não tem dificuldades em conciliar essas aparentes contradições, lembrando que, segundo um princípio de fisiologia, cada coisa pode mostrar-nos, de um ângulo diverso, uma diversa aparência. Nem por isso, entretanto, a realidade deixa de ser uma só.

O biólogo diz que o corpo e o espírito formam uma unidade indissolúvel e que não pode entender outra coisa. Do seu ponto de vista, ele está certo. Entramos aí no terreno da relatividade e precisamos compreender que a verdade do biólogo é relativa. Ele só estudou e conhece os processos vitais de natureza orgânica. Para ele, o espírito é o cérebro ou um simples complexo de funções vitais do córtex cerebral. As crianças prodígio romperam há muito a velha teoria do paralelismo psicofisiológico, mas o biólogo encontrou uma porta de escape nas curvas surpreendentes da hereditariedade. Ele é um homem que joga com dados materiais e que está firmemente disposto a negar qualquer possibilidade de fuga à realidade, para a explicação dos problemas que tem diante dos olhos. Para ele, a independência do espírito seria a negação de todo o seu aprendizado, tão laboriosamente efectuado até agora. A sua reacção é quase orgânica, instintiva, contra a ameaça dessa nova teoria.

Para o teólogo, o problema se apresenta da mesma maneira, mas de ângulo oposto. Enquanto o biólogo olha o indivíduo humano de baixo para cima, o teólogo o vê de cima para baixo. Ele não pode dizer a mesma coisa que diz aquele, nem pode concordar com a descrição que aquele lhe faz, de um fenómeno que ele “sabe” ser de outra maneira. A conciliação entre os dois é absolutamente impossível, enquanto não se conseguir arredar o biólogo e o teólogo dos seus respectivos lugares, para juntá-los num outro, que poderíamos considerar o interior do fenómeno. Só então eles poderiam verificar, directamente, que muitos dos seus dados estavam errados, sofrendo de um desvio de visão, embora muitos outros continuassem certos.

Espiritismo realiza precisamente esse milagre. Não endossando o ponto de vista do biólogo, nem aceitando a posição do teólogo, ele se coloca em outro ângulo e consegue chegar à equação que parecia impossível. Pois, de facto, o corpo e o espírito são uma e a mesma coisa, desde o momento em que se verificou o fenómeno da encarnação, desde o instante em que eles se fundiram, para a experiência da vida terrena. Quando, porém, um novo processo se verifica – o da morte –, eles deixam de constituir a unidade transitória do indivíduo biológico, voltando cada qual à sua independência natural.

O apego dos biologistas à tese monista faz-nos lembrar o perigo de certas ilusões científicas que chegaram a durar séculos. Poderíamos citar, a propósito, a velha teoria geocêntrica ou a da invisibilidade atómica. Temos, assim, uma ilusão antiga e outra moderna. Mas comentemos um pouco mais a primeira, que serve admiravelmente aos nossos desígnios. Durante séculos, os homens de apegaram à ideia de que a Terra era o centro do Universo. Ainda hoje, são inúmeros os que defendem a tese da habitabilidade exclusiva do nosso pequeno planeta, negando a possibilidade da existência humana em outros corpos celestes. Mas o progresso dos conhecimentos levou a ciência a não mais admitir o geocentrismo, que é hoje uma teoria de museu.

No tocante ao problema do corpo e espírito, acontece coisa semelhante. Os homens continuam esposando uma teoria que poderíamos chamar, por analogia, de organocêntrica. Para eles, só há vida em organismos materiais, a possibilidade vital está centralizada nas chamadas formas vivas. Fora dessas formas, a vida é absolutamente impossível. Entretanto há factos que atestam o contrário. E não está longe o dia em que esses factos se imporão ao raciocínio científico, descentralizando-o dos chamados organismos vivos, a manifestação do fenómeno vital. As mesas giram, dizia Kardec. E as mesas aí estão, juntamente com a causa que as faz girar...

No livro A nossa vida mental, da série A ciência da vida, de H. G. WellsJulian Huxley e G. P. Wells, encontramos um interessante capítulo sobre a questão espírita. Os autores colocam-se no ponto de vista materialista e, condenando aimaginosa explicação espírita dos fenómenos, que não negam, chegam por sua vez a imaginar explicações, negativas as mais curiosas, e a fazer afirmações nitidamente anticientíficas. Uma delas é a de que as materializações dos primeiros tempos do Espiritismo eram românticas, como a focalizada num célebre quadro de Tissot, e as de hoje são informes e rígidas. A fotografia informe que o livro estampa é uma das mais belas conquistas da fotografia psíquica, pertencente ao acervo dos trabalhos de Schrenck Notzing e Madame Bisson. Mostra uma cabeça materializada em processo de elaboração, o que é altamente significativo. Isso demonstra, sobretudo, que o fenómeno pode ser observado nas suas diferentes fases. Mas os materialistas não entenderam assim e inventaram que agora só obtemos figuras hediondas e abomináveis. Foi, sem dúvida, uma conclusão apressada. Mesmo porque, a fotografia pertence aos primórdios do Espiritismo científico, não é de hoje. E todos nós, que lidamos com os fenómenos espíritas, sabemos de materializações tão “românticas” quanto as de Tissot, assistidas no presente.

Outras conclusões interessantes desse livro referem-se às comunicações psicográficas. Segundo os autores, tais comunicações são desinteressantes e fúteis. Citam mesmo o caso de Raymond, de sir Oliver Lodge, frisando a diferença existente entre as cartas de jovem soldado e as suas comunicações. Não parece evidente que a avaliação de interesse pode variar de pessoa para pessoa, e que as diferenças notadas devem corresponder à diferença de vida neste plano e no outro? Mas os autores fazem questão de manter o seu ponto de vista materialista, e para isso chegam a dizer que as descrições do outro lado, feitas pelos espíritos, variam ao infinito, sendo incompatíveis umas com as outras, a tal ponto, que reciprocamente se destroem. Ora, todos os que já estudaram o assunto sabem que as coisas se passam de maneira exactamente contrária.

As descrições de Raymond, por exemplo, coincidem com as obtidas por Ochorowicz, as anotadas por Denis Bradley, as espontaneamente dadas por numerosos espíritos ao doutor Carl A.Wikland, em Los Angeles, ao doutor Oscar Parkes, em Londres, com as descrições feitas, aos milhares, nas sessões espíritas de vários países, os relatos publicados pela Revue Spirite, de Kardec, ao registado pela Society for Psychical Research, de Londres, e por último com as comunicações recebidas no Brasil pelo médium Chico Xavier. Poderíamos esgotar várias páginas de citações. Justamente o que mais impressiona, em tais casos, é a identidade, a confirmação de aspectos de um relato por outro, em lugares, épocas e através de médiuns diversos.

Só mesmo o desejo de negar a evidência, ou de pelo menos confundi-la, pode levar os nossos homens de ciência e de letras a tais atitudes. Mas quem quiser, por cima dos informantes suspeitos, verificar o que de real se passa no terreno das informações espíritas sobre o outro lado da vida, por certo há de ver que elas coincidem tão bem como as impressões de vários viajantes sobre um mesmo país estrangeiro.

É pena que os defensores extremados do “milagre” do córtex cerebral não tenham compreendido que as suas teorias sobre a imortalidade da espécie e sobre um outro aspecto perceptivo da matéria são muito mais complicadas e altamente improváveis do que a tantas vezes comprovada imortalidade pessoal.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Cérebro e Espírito, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Giovanna ~

IV
Maurice, nas suas caminhadas vagabundas, havia reencontrado várias vezes Luísa, a velha ama de leite. Tendo sabido conquistar a sua amizade, adquiriu a certeza de que seria bem acolhido na vila Esperança, e ali se apresentou um dia. Quem tivesse encontrado o advogado misantropo teria podido perceber, com surpresa, a emoção que ele sentia. O que planeava iria destruir ou realizar as suas esperanças? Ele foi muito bem recebido pela tia de Giovanna que, enfraquecida pela idade e pela doença, sentia chegado o momento de dar um suporte natural, um esposo, a sua sobrinha. Ela, autorizou Maurice a renovar as suas visitas, o que ele fez com frequência. Começaram então, para os jovens, as prolongadas conversas, as conversas familiares, sobre o terraço dominando o lago, durante as quais as suas almas se expandiam em mútuas confidências. Maurice contava a sua vida, a sua triste vida de criança privada de mãe, depois as decepções, os receios de sua juventude. Abria, como se o rasgasse, o seu coração a Giovanna. Ela consolava-o, confiava-lhe os seus sonhos, sonhos ainda cândidos, ainda puros como os de um anjo. E esses dois seres, aproximando-se mais e mais, aprendiam a se amar, mil laços secretos se formavam, os enlaçavam, os uniam em estreitas e poderosas malhas.

O dia em que, segundo os costumes da alta Itália, o noivado devia ser celebrado, foi logo fixado, e tudo foi preparado para esta festa íntima, na qual dois ou três velhos amigos deviam tomar parte. Na véspera desse dia, Maurice sobe ainda cedo à vila. Após a refeição da noite, os dois se dirigem para o terraço, de onde os seus olhares podiam estender-se sobre um mágico horizonte. Sentam-se em silêncio debaixo de um pomar de laranjeiras. Luísa se mantinha um pouco afastada.

A noite avança lentamente; estende sobre o lago o seu véu azulado, derramando um colorido uniforme sobre os campos de oliveiras, as vinhas, os bosques de castanheiros, as vilas e as aldeias. Enquanto que a sombra se adensava nos vales, os cumes das colinas, avermelhados pela púrpura do poente, pareciam-se bastante ao fogo de um incêndio. A noite subia aos poucos; as suas sombras arrastadas estendiam-se sobre as colinas; as luzes inumeráveis resplendiam nas janelas das vilas e das cabanas. As trevas envolviam inteiramente o lago e o seu conjunto de montanhas, mas, para Norte, as luzes do dia morrendo coloriam ainda de cores fantásticas o colosso dos Alpes. Como uma armada de gigantes dispostos em batalha, a Bernina, a Sella, o Monte-d'Oro, a Disgrazia, e vinte outros picos, apontavam para o céu os seus cimos orgulhosos, coroados de neve, sobre os quais o sol, antes de desaparecer no ocidente, lançava os seus raios fraccionados.

Em vão, a noite procurava apagá-los, eles lutavam com ela. Mas o seu véu passa enfim sobre essas frontes soberbas. As últimas luminosidades se extinguiram. A noite triunfava; só, iria reinar até à aurora.

Nesse momento, um concerto argentino se eleva nos ares. Em todas as aldeias, os sinos tilintavam. Era o Ângelus, a prece do entardecer, o sinal que evoca entre todos, os pescadores do lago, os lenhadores da floresta, os pastores da montanha, o pensamento de Deus. Giovanna e Maurice, sonhadores, recolhidos, observavam esse majestoso espectáculo; escutavam o som melancólico dos sinos, seguiam com o olhar as belas estrelas de ouro emergindo das profundezas do céu para subir lentamente, em legiões cerradas, para zénite. A poesia dessa noite preenchia as suas almas; as suas bocas estavam mudas, mas os seus corações se confundiam num enlevo profundo. Maurice rompeu o silêncio primeiro.

- Giovanna, disse ele, você pensa, às vezes, nessas esferas luminosas que se movem no espaço? Já se perguntou se são, como a nossa terra, mundos de sofrimento, habitados por seres materiais e atrasados, ou se almas mais perfeitas aí vivem no amor, na felicidade?

- Bem às vezes, respondeu ela, tenho visitado esses mundos. Protectores, amigos invisíveis, me levam quase todas as noites para essas regiões celestes. Com dificuldade tenho visto, que um grupo de espíritos, de longas vestes flutuantes, de fronte brilhante, me cercam, me chamam. Vejo a minha própria alma que, semelhante à deles, se liberta de meu corpo e os segue. Rápido como o pensamento, atravessamos os espaços imensos, povoados de uma multidão de espíritos; por toda a parte oceanos de vida desdobram as suas perspectivas sem limites. Por toda a parte retinem os cantos harmoniosos, de uma suavidade desconhecida na Terra. Percorremos esses arquipélagos estelares, essas esferas longínquas, bem diferentes de nosso globo. Em lugar de uma matéria compacta e pesada, muitos dentre eles são formados de fluidos leves, de brilhantes cores. Enquanto que os hóspedes da terra se arrastam penosamente na superfície do planeta, os habitantes desses mundos, de corpos subtis, aéreos, elevam-se facilmente, planam no espaço ambiente. Eles agem sobre esses fluidos leves e coloridos que compõem o centro de suas esferas; lhes dão mil formas, mil aspectos diversos.

Assim são os palácios admiráveis, colónias deslumbrantes, com inumeráveis pórticos, templos com abóbadas gigantescas, ornados de estátuas, de pilastras de gás, e cujas muralhas transparentes permitem entrever o seu interior. De todas as partes se erguem construções prodigiosas, abrigos da ciência e das artes, bibliotecas, museus, escolas, exposições, sempre invadidas pelas multidões. O ensinamento aí é dado sob a forma de quadros luminosos e cambiantes. A linguagem é uma espécie de música.

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Léon Denis, Giovanna_1880, IV (I de II) 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

o grande enigma ~

Deus | e o Universo (III)

Um mal-entendido secular divide as escolas filosóficas quanto a estas questões. O materialismo via no Universo somente a substância e a força. Parecia ignorar os estados quintessenciados, as transformações infinitas da matéria. O espiritualismo vê em Deus só o princípio espiritual e não considera imaterial tudo o que não cai sob os nossos sentidos. Ambos se enganam. O mal-entendido que os separa cessará quando os materialistas virem no seu princípio e os espiritualistas no seu Deus a fonte dos três elementos: substância, força, inteligência, cuja união constitui a vida universal.

Por isso, basta compreender duas coisas: se se admite que a substância esteja fora de Deus, Deus não é infinito, e, pois que a consciência existe no mundo actual, é preciso evidentemente que ela se encontre naquilo que tem sido o Princípio do mundo.

Mas a Ciência, depois de se haver retardado durante meio século nos desertos do materialismo e do positivismo, depois de ter reconhecido a esterilidade deles, a ciência actual modificou a sua orientação. Em todos os domínios: física, química, biologia, psicologia, ela se encaminha hoje, a passo decidido, para essa grande unidade que se entrevê no fundo de tudo. Por toda a parte ela reconhece a unidade de forças, a unidade de leis. Atrás de toda a substância em movimento encontra-se a força, e a força não é senão a projecção do pensamento, da vontade na substância. A eterna criação, a eterna renovação dos seres e das coisas é tão-somente a projecção constante do pensamento divino no Universo.

Pouco a pouco, o véu se levanta; o homem começa a entrever a evolução grandiosa da vida na superfície dos mundos. Ele vê a correlação das forças e a adaptação das formas e dos órgãos em todos os meios; sabe que a vida se desenvolve, se transforma e se apura à medida que percorre a sua espiral imensa; compreende que tudo está regulado visando a um fim, que é o aperfeiçoamento contínuo do ser e o crescimento nele da soma do bem e do belo. Mesmo neste mundo, ele pode seguir essa lei majestosa do progresso, através de todo o lento trabalho da Natureza, desde as formas ínfimas do ser, desde a célula verde flutuando no seio das águas, até ao homem consciente no qual a unidade da vida se afirma, e acima dele, de grau em grau, até ao infinito. E essa ascensão só se compreende, só se explica pela existência de um princípio universal, de uma energia incessante, eterna, que penetra toda a Natureza; é ela quem regula e estimula essa evolução colossal dos seres e dos mundos para o melhor, para o bem.

Deus, tal qual o concebemos, não é, pois, o Deus do panteísmo oriental, que se confunde com o Universo, nem o Deus antropomorfo, monarca do céu, exterior ao mundo, de que nos falam as religiões do Ocidente. Deus é manifestado pelo Universo – do qual é a representação sensível –, mas não se confunde com este. De igual maneira que em nós a unidade consciente, a Alma, o eu, persiste no meio das modificações incessantes da matéria corporal, assim, no meio das transformações do Universo e da incessante renovação de suas partes, subsiste o Ser que é a Alma, a consciência, o eu que o anima e lhe comunica o movimento e a vida.

E esse grande Ser, absoluto, eterno, que conhece as nossas necessidades, ouve o nosso apelo, nossas preces, que é sensível às nossas dores, é qual o imenso foco em que todos os seres, pela comunhão do pensamento e do sentimento, vêm haurir forças, o socorro, as inspirações necessárias para guiá-los na senda do destino, sustê-los nas suas lutas, consolá-los nas suas misérias, levantá-los nos seus desfalecimentos e nas suas quedas.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 3 de 5, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)