sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria; 
I Posição do Problema ~

O século em que vivemos está desde já inscrito com caracteres indeléveis nas páginas da História. A partir dos mais remotos tempos, das velhas civilizações, nenhuma época viu, como a nossa, esse magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente afirmar os seus direitos e a sua força. O mundo já não é o vale de lágrimas medieval, onde a alma vinha expiar a falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o corpo e cobrindo-se de cinzas.

Os frutos da inteligência já não atestam as longas, abstrusas e infindáveis discussões de estéril metafísica, construídas de palitos e escoradas em subtilezas escolásticas, a que se entregaram cegamente poderosos génios, consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos de assim perderem não apenas o seu tempo, mas o de algumas gerações.

Lá, onde em murados claustros se concentravam monges e oratórios, ouve-se agora o ruído das máquinas, o ranger das engrenagens e o silvo do vapor das caldeiras combustíveis.

Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no período das invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema, como sucede a todas as coisas perecíveis: o trabalho fecundo do operário e do agricultor substitui a decadência senil pela juvenilidade laboriosa e fecunda.

No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente os seis dias da Criação, as línguas de fogo da Pentecoste, o milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma da graça actual, a consubstancialidade, as indulgências parciais ou plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis de aprofundar, vemos hoje instalar-se o laboratório químico, no ambiente do qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do anatomista, sobre cujo mármore se desvendam o mecanismo orgânico e as funções vitais; o microscópio do botânico, que surpreende os primeiros, oscilantes passos da esfinge da vida; o telescópio do astrónomo, que deixa entrever, para além dos céus transparentes, o movimento majestoso dos sóis gigantescos, regulados pelas mesmas leis que accionam a queda de um fruto; a cátedra de ensinamento experimental, à volta da qual as inteligências populares vêm agrupar as suas filas atentas.

O próprio globo terrestre transformou-se. Circunavegaram-no, mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que pretendam enfeixá-lo na mão. O compasso do geómetra destituiu o ceptro imperial.

Oceanos e mares, em todas as latitudes, fendem-se ao impulso das quilhas levadas por velas pandas ou pela rotação das hélices potentes e trepidantes.

Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre célere os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a outro hemisfério. O vapor deu vida nova e inesperada a inúmeros motores; a electricidade nos permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsações da Humanidade inteira.

Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta; jamais se encheu no seu seio, de tanta vida e tanta força; jamais o seu coração enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais longínquas artérias. Nem nunca o seu olhar se iluminou de um tal clarão. Por mais vastos que se deparem os progressos ainda conquistáveis, os nossos descendentes serão sempre forçados a reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu Pégaso e que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao zénite, brilhante não lhes fora o dia se o não precedera a nossa aurora.

Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém sabê-lo, é ter por base de estudo elementos determinados, que não abstracções e fantasmas. Assim é que, na Química, ela investe com o volume e peso dos corpos, examina-lhes as combinações, determina-lhes as relações; na Física, investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relações e as leis que as regem; na Botânica, aborda o estudo das primeiras condições da vida; na Zoologia, acompanha as formas existenciais e regista as funções orgânicas peculiares, os princípios da circulação da matéria nos seres vivos, a sua manutenção e metamorfoses; na Antropologia, constata as leis fisiológicas em actividade no organismo humano e determina o papel dos diversos aparelhos que o compõem; na Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e daí deduz a noção de leis directivas universais; e na Matemática, finalmente, formula essas leis e reconduz à unidade as relações numéricas das coisas.

Essa exacta determinação de objectivo dos seus estudos é que dá valor e autoridade à Ciência. Aí temos como e porque a Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam um imperioso dever. Se, esquecida dessa condição de poderio ela se desvia desses objectivos fundamentais para divagar no vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu carácter e a sua razão de ser.

E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses domínios exorbitantes do seu alcance e finalidade, deixam de ter valor científico, e mais ainda do que isso, porque ela se desqualifica e já não pode reivindicar o nome de ciência. Torna-se, por assim dizer, em soberana que acaba de abdicar e não é mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que nem sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor, já não serão mais intérpretes da Ciência, uma vez operando fora da sua esfera.

Ora, esta é, precisamente, a situação dos defensores do Materialismo contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a responderem a problemas que lhes escapam à alçada, como ainda as torturam, quais pobres servas, para que confessem a seu mau grado, e falsamente, proposições de que jamais cogitaram. São, assim, inquisidores do facto, e não da palavra. Mas, dessarte, não é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.

Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses cientistas se encontram absolutamente fora da Ciência, que se enganam e nos enganam, que os seus raciocínios, deduções e consequências são ilegítimos e que no seu louco amor por essa virginal ciência eles a comprometem simplesmente e chegariam a lhe alienar de todo a estima pública, se não houvesse o cuidado de mostrar que, ao invés da realidade, eles não possuem dela mais que uma ilusória sombra.

A circunstância mais penosa e a razão predominante que nos impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo radicam-se no facto de estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se pressente, universalmente, o papel e a finalidade da Ciência. Compreende-se que fora dela é que não há salvação e que a Humanidade, tanto tempo balouçada no oceano do ignorantismo, só tem um porto a proejar – o da terra firme do saber. Também por isso, o espírito público se volta, convicto e esperançoso, para a Ciência. Tantas provas do seu poder e riqueza tem ele recebido, de um século a esta parte, que se predispôs a acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o Espiritualismo. É que um certo número de cultores da Ciência, que a representam ou que se fazem dela intérpretes, ensinam falsas e funestas doutrinas.

Os espíritos sôfregos e despercebidos, que procuram nos seus livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um tóxico pernicioso e susceptível de lhes destruir no âmago uma parte dos benefícios do saber.

Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável arrastamento, aliás, tendente a universalizar-se.

Eis porque se torna absolutamente indispensável discutir essas doutrinas e demonstrar que longe estão elas de entrosar na Ciência, com tanto rigor e facilidade, quanto apregoam, mas, ao invés, que são o produto grosseiro de pensamentos sistemáticos, que, perpetuamente voltados sobre si mesmos, têm a ilusão de se crerem fecundados pela Ciência, embora do radioso sol que ela simboliza não hajam recebido mais que um ténue raio desviado da sua direcção natural.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria; I - Posição do Problema 1 de 6, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Diálogos de Kardec ~

Primeira Notícia de Uma Nova Encarnação

(Em casa do Sr. Baudin; médium: Srta. Baudin / 17 de janeiro de 1857)

O Espírito prometera escrever-me uma carta por ocasião da entrada do ano. Tinha, dizia, qualquer coisa de particular a dizer-me. Havendo-lhe eu pedido numa das reuniões ordinárias, respondeu que a daria na intimidade ao médium, para que este ma transmitisse. É esta a carta:

“Caro amigo, não te quis escrever terça-feira última diante de toda a gente, porque há certas coisas que só particularmente se podem dizer.

“Eu queria, primeiramente, falar-te da tua obra, a que mandaste imprimir. (O Livro dos Espíritos entrará para o prelo.) Não te afadigues tanto, de manhã à noite; passarás melhor e a obra nada perderá por esperar.

“Segundo o que vejo, és muito capaz de levar a bom termo a tua empresa e tens que fazer grandes coisas. Nada, porém, de exagero em coisa alguma. Observa e aprecia tudo judiciosa e friamente. Não te deixes arrastar pelos entusiastas, nem pelos muito apressados. Mede todos os teus passos, a fim de chegares ao fim com segurança. Não creias em mais do que aquilo que vejas; não desvies a atenção de tudo o que te pareça incompreensível; virás a saber a respeito mais do que qualquer outro, porque os assuntos de estudo serão postos sob as tuas vistas.

“Mas, ah! a verdade não será conhecida de todos, nem crida, senão daqui a muito tempo! Nessa existência não verás mais do que a aurora do êxito da tua obra. Terás que voltar, reencarnado noutro corpo, para completar o que houveres começado e, então, dada te será a satisfação de ver em plena frutificação a semente que houveres espalhado pela Terra.

“Surgirão invejosos e ciosos que procurarão infamar-te e fazer-te oposição: não desanimes; não te preocupes com o que digam ou façam contra ti; prossegue na tua obra; trabalha sempre pelo progresso da Humanidade, que serás amparado pelos bons Espíritos, enquanto perseverares no bom caminho.

‘Lembras-te de que, há um ano, prometi a minha amizade aos que, durante o ano, tivessem tido um proceder sempre correcto? Pois bem! declaro que és um dos que escolhi entre todos.”

Teu amigo que te quer e protege. — Z.

NOTA — Já tive ocasião de dizer que Z. não era um Espírito superior, porém muito bom e muito benfazejo. Talvez fosse mais adiantado do que o deixava supor o nome que tomara. Legitimavam esta suposição o carácter sério e a sabedoria das suas comunicações, conforme as circunstâncias. Sob a capa daquele nome, ele se permitia usar de uma linguagem familiar apropriada ao meio onde se manifestava e dizer, como frequentemente sucedia, duras verdades, sob a forma leve do epigrama. Como quer que seja, dele guardei sempre grata recordação e muito reconhecimento pelas boas advertências que sempre me deu e pelo devotamento que me testemunhou. Desapareceu com a dispersão da família Baudin, dizendo que em breve reencarnaria.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, A minha Primeira Iniciação no Espiritismo, Primeira Notícia de Uma Nova Encarnação, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~

Desenvolvimento da Ciência Espírita ~

Os espíritas continuam, num clima de maiores esperanças mundiais nesse terreno, com o avanço espantoso das pesquisas parapsicológicas nos Estados Unidos e na URSS, a socorrer no Brasil as vítimas de perturbações mentais e psíquicas, em seus centros de trabalho permanente e gratuito.

A eficácia dos seus métodos simples, desprovidos dos recursos tecnológicos da actualidade, são evidentes, mas não constam de comprovações estatísticas. Não há recursos nem tempo para o luxo das avaliações estatísticas. Mas a verdade salta aos olhos, brilha nos lares beneficiados por dedicações anónimas. Já é tempo de acordarmos para a constatação desse facto.

O Brasil avançou culturalmente entre os anos 30 e 60, com a descentralização do ensino superior e a criação de Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras por toda a sua extensão. Nem mesmo o interregno das agitações políticas e militares conseguiu perturbar esse desenvolvimento.

Demos a prova decisiva da nossa preferência pela paz, a ordem e o progresso.

Mas o meio espírita, adverso às agitações e inquietações políticas, deixou-se embalar pelas canções de adormecer das mensagens mediúnicas piedosas, dos relatos curiosos da vida após a morte, nas pregações mediúnicas incessantes sobre a caridade, a humildade, o amor ao próximo, a moral evangélica, a preparação de todos para a migração a mundos superiores e assim por diante.

Desenvolveu-se um curioso processo de alienação religiosa que nem mesmo nas sacristias se processava. Surgiram, além das fascinações do tipo roustainguista (intencionalmente retrógradas) correntes pseudo-espíritas de mentalismo e esoterismo pretensiosos, agrupamentos de fiéis acarneirados em torno de pseudomestres dotados de sabedoria infusa e arrogante, como a dos teólogos das igrejas, resquícios assustadores de pretensões divinistas e divinatórias, correntes alienantes de um formalismo beócio, pregando o aperfeiçoamento formal das atitudes e do comportamento humanos, com processos de impostação da voz e de gesticulações pré-fabricadas, e até mesmo (Deus nos acuda) tentativas de criação do celibato espírita e a imposição da abstinência sexual aos casados.

Toda essa floração de cogumelos venenosos, vinda evidentemente das raízes da Patrística, redundava na volta ao farisaísmo e às suas consequências no meio patrístico da era pós-apostólica, que tanto enfurecia o Apóstolo Paulo. Pouco faltava para que a proposta de Tertuliano, de recorrer-se à figura jurídica do usucapião, fosse aplicada ao Evangelho. Formava-se e ainda se tenta formar, no meio espírita, uma estrutura totalitária de poder e arbítrio, com uma disciplina legal asfixiando a liberdade espírita. Ao mesmo tempo, a terapia espírita, nascida humildemente da prece e da imposição das mãos aos doentes, segundo o ensino e o exemplo de Jesus, era transformada em ritos complicados e pretensiosos, aplicados por médiuns diplomados pelas Federações. Até mesmo as práticas do confessionário foram estabelecidas em várias instituições, a partir do manda-chuva, que agia com rigorosa disciplina paramilitar. O escândalo da adulteração das obras fundamentais da doutrina, declaradamente inspiradas pelo sucesso das adulterações da Bíblia pelas igrejas cristãs, produziu felizmente o estouro do tumor. Alguém tivera a coragem de usar o bisturi na hora precisa, mostrando a profundidade do processo infeccioso, definindo e localizando os focos da infecção na corroída e orgulhosa estrutura do movimento espírita.

Restabelecia-se a verdade e reanimava-se o corpo doente e minado pelas trevas. As áreas não contaminadas pela infecção reagiam de todos os lados e os vencidos pela fascinação começavam a sentir os primeiros abalos da consciência. Encerrava-se o ciclo perigoso das infiltrações malignas e os que não haviam cedido ao autoritarismo dos falsos mestres e mentores experimentavam a alegria da volta ao bom-senso kardeciano.

A terapia espírita começava lentamente a recuperar-se na sua simplicidade e pureza. O prestígio do passe espírita, desprovido de encenações espúrias e pretensiosas, restabelecia-se nos grupos não contaminados. Jesus aplacara o temporal como num gesto de piedade. O farisaísmo tem as suas raízes nas entranhas animais do homem, de onde brotam os instintos primitivos, perturbando a mente e envenenando o coração. Os cristãos primitivos foram levados à loucura de se julgarem puros e santos, como vemos nas epístolas ardentes de Paulo, reprimindo os núcleos desvairados. No meio espírita domesticado por incessantes mensagens padrescas, algumas instituições doutrinárias chegaram a proclamar-se donas exclusivas da verdade. Um enviado dos anjos fez-se oráculo dos novos tempos (por conta própria) e a autodenominada Casa-Máter do Espiritismo no Brasil ampliou a sua orgulhosa e falsa pretensão, cortando do seu título autoconcedido a expressão “do Brasil”, tornando-se, com essa simples operação, a Casa-Máter do Espiritismo no Mundo. Com essa manobra as trevas cortavam a possibilidade de uma estruturação mundial do movimento espírita. O movimento brasileiro fechava-se em si mesmo e poderia restabelecer entre nós o Templo de Jerusalém com o seu rabinato exclusivista. A reacção de André Dumas, na França, da Confederação Espírita Pan-americana da Argentina, da própria Federação Argentina, da Venezuela e de intelectuais espíritas como Humberto Mariotti, Robert Fourcade e outros mostrou o alcance dessa manobra. Que esse triste exemplo dos descaminhos a que o farisaísmo pode levar-nos sirva para acordar o bom-senso dos desprevenidos. A terapia espírita não terá eficácia se não pudermos aplicá-la a nós mesmos e ao nosso movimento doutrinário. Sem uma base de convicção firme e de fidelidade à obra de Kardec não poderemos curar-nos a nós mesmos, quanto mais aos outros.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Desenvolvimento da Ciência Espírita 2 de 2, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)