domingo, 25 de fevereiro de 2018

O Mundo Invisível e a Guerra ~


III
As Lições da Guerra (III)

(Março de 1915)

Tudo, na ordem espiritual, se resume em duas palavras: reparação e elevação!

As calamidades são o cortejo inevitável das humanidades atrasadas e a guerra é a pior de todas. Sem elas o homem pouco desenvolvido perderia o seu tempo com as inutilidades da jornada ou se entregaria ao bem-estar e à preguiça.

É preciso o guante da necessidade e a noção do perigo para obrigá-lo a movimentar as suas forças adormecidas, desenvolver-lhe a inteligência e apurar-lhe a razão.

Tudo o que é destinado à vida e ao crescimento se prepara na dor. É necessário padecer para dar à luz, eis a colaboração da mulher. Cumpre padecer para criar, eis a participação do génio.

Nos momentos supremos de sua história é que as qualidades varonis de uma raça se apresentam com maior brilho. Se a guerra desaparecesse, com ela desapareceriam muitos males e muitos horrores; mas não é a guerra também geradora do heroísmo, do espírito de sacrifício, do desprezo pelo sofrimento e pela morte? São estas coisas que fazem a grandeza do homem, as que o colocam acima do irracional.

O homem, espírito imortal, é um centro de vida e de actividade que, de todas as vicissitudes, todas as provações, mesmo as mais cruéis, deve conseguir outros processos pelos quais se expandam cada vez mais as energias existentes no nosso íntimo.

As grandes emoções nos fazem esquecer as preocupações corriqueiras (muitas vezes frívolas) da vida, abrindo em nós uma passagem para as influências do Espaço.

No entrechoque dos acontecimentos, a bruma formada pelos nossos anseios, pensamentos e inquietações de cada dia se esvai e a grande lei, o supremo objectivo da existência se revela, por um momento, aos nossos olhos.

Nos mundos mais adiantados, nas humanidades superiores à nossa, os flagelos já não têm razão de ser, não existindo a guerra, porque a sabedoria do espírito elimina todos os conflitos.

Os habitantes dos mundos felizes, iluminados pelas verdades eternas, com a aquisição dos poderes da inteligência e do coração, não têm mais necessidade desses terríveis estímulos para despertar e cultivar os recursos ocultos da alma.

Na grande escalada do progresso, as causas do sofrimento atenuam-se à medida que o espírito progride, porque se tornam cada vez menos necessárias para uma ascensão que se realiza livremente, na paz e na luz.

A grande escola das criaturas e dos povos é o sofrimento. Quando eles se afastam do caminho recto e descambam para a sensualidade e para a decomposição moral, a dor, com o seu aguilhão, recoloca-os no verdadeiro caminho.

É necessário que o homem sofra para desenvolver a sensibilidade e a vida, sendo esta uma lei grave, séria e de proveitosas consequências.

É preciso sofrer para sentir e amar, crescer e elevar-se. Só o sofrimento domina os furores da paixão, desperta em nós as meditações profundas e revela às almas o que há de melhor, mais belo e mais nobre no Universo: a piedade, a caridade e a bondade!

Do seu banho de sangue e de lágrimas, a França sairá rejuvenescida e mais bela, irradiando eterna glória, para prosseguir a missão que a sua História lhe impõe.

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, III – As Lições da Guerra 3 de 3, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

pensamento espírita argentino ~


CAPÍTULO I

~~ Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história ~

Que somos? (VII)

Certo é que o eminente psiquiatra Lombroso não mais sustentasse nos seus últimos anos, depois das suas célebres experiências no fenomenismo espírita, a teoria anticientífica que confunde o génio com a loucura, nem houvesse escrito as páginas (das quais teve que se envergonhar mais tarde) nas quais colocava os médiuns e os espíritas na categoria de loucos e anormais; e é certo também que o nosso sábio Ingenieros, tendo vivido alguns anos mais (já engajado na corrente metapsíquica), se arrependeu de ter estabelecido uma triste semelhança entre a loucura genial de Nietzsche e a loucura genial de Jesus, nem tivesse sustentado a afirmação positivo-materialista de que já “não há alma”, considerada como uma entidade “real ou espiritual”, que a alma é uma função-adjunta no curso da evolução biológica.

Deixando de lado os prejuízos de escola, que os factos se encarregam de destruir, pouco a pouco, voltemos ao fenómeno de dupla personalidade.

Citamos o caso de Félida, estudado pelo doutor Azam.

Félida era oriunda de Bordéus, filha de pais saudáveis; na idade de treze anos começaram a produzir-se nela as mudanças de personalidade, primeiro com curtos intervalos que foram tomados por acessos de loucura e denunciados como tais ao doutor Azam, à época médico do Asilo Público de Alienados, que a atendeu e a estudou pessoalmente durante três anos (1857-1859), enquanto permaneceu solteira, e desde esta última data até 1876, valendo-se das observações do seu marido.

Mais tarde, as mudanças foram mais prolongadas, permanecendo durante meses em estados alternados.

As lembranças de Félida existiam somente para os factos ocorridos durante as condições semelhantes, desconhecendo numa o que se passava na outra, ao ponto de ficar grávida numa delas e ignorá-lo durante os primeiros estados da sua segunda personalidade.

O trânsito de um estado para o outro se produzia mediante o sono ou, atendo-nos às palavras do dr. Azam, mediante um “torpor profundo parecido ao sono”.

Em Félida existiam duas personalidade completas e distintas, perfeitamente caracterizadas: uma (a segunda) era alegre, jovial e psiquicamente saudável; tinha gostos, sentimentos, lembranças características e até mostrava maior inteligência do que a outra; esta última, que é normal, mostrava-se triste, taciturna, a sua conversação era séria, parca no falar, a sua vontade era firme, os seus sentimentos afectivos pouco desenvolvidos, até ao ponto de mostrar-se indiferente com a sua família e rebelar-se contra a autoridade do seu marido; sofria dores intensas em todo o corpo.

Vejamos o quadro que dela nos faz o doutor Azam:

“Félida X está sentada e tem sobre os seus joelhos um trabalho qualquer de costura; de repente, sem que nada possa prever e depois de uma dor na fronte, mais forte do que o comum, cai a cabeça sobre o peito, as suas mãos permanecem inactivas ao longo do corpo; dorme ou aparenta dormir, mas com um sono especial, pois nem o ruído nem outra excitação, beliscos ou picadas a despertam; ao demais, esta espécie de sono é absolutamente súbita; dura dois ou três minutos – antes era mais longo –; desperta, mas não se encontra no estado intelectual em que estava quando adormeceu. Tudo parece diferente: levanta a cabeça e, abrindo os olhos, saúda sorridente aos que chegam; a sua fisionomia se ilumina e respira alegria; a sua palavra é breve, enquanto continua contente o trabalho do enxoval que começou no seu estado precedente; se se levanta, o passo é ágil e apenas se queixa de muitas dores que alguns minutos antes sofria; atendendo aos cuidados da casa, sai, anda pelo povoado, visita, faz um trabalho qualquer e o seu aspecto é o de uma jovem da sua idade, saudável.

O seu carácter mudou completamente; de triste se torna alegre e a sua vivacidade aproxima-se da turbulência; a sua imaginação está mais exaltada; por motivos insignificantes se emociona, triste ou alegremente; de indiferente se torna sensível ao extremo.

Em ambas as vidas, as suas faculdades intelectuais e morais, ainda que diferentes, estão íntegras; nenhuma ideia delirante, nem a apreciação falsa ou alucinação; na sua segunda condição, todas as suas faculdades parecem mais desenvolvidas e completas. Esta segunda vida, na qual não sente dor física, é superior à outra, sobretudo pelo facto já indicado de que Félida se lembra não somente de tudo o que aconteceu durante os acessos anteriores, como de toda a sua vida normal, enquanto que nesta, nada recorda do que aconteceu nos ataques.”

Eis aqui duas personalidades psiquicamente distintas, manifestando-se alternadamente por um mesmo organismo, por meio de um mesmo coração e de um mesmo cérebro, não obstante diferençar-se nos sentimentos e em inteligência e expressar caracteres opostos, continuando uma só existência individual nos trabalhos e misteres próprios dessa individualidade, sem recordar, uma das personalidades, o que faz e pensa a outra e tendo consciência esta do que fazem as duas durante os acessos anteriores e consecutivos: uma, jovial e alegre, terna e afectuosa; a outra, sóbria, triste, retraída e indiferente aos afectos; saudável uma, doente a outra, vivendo num mesmo corpo.

Este facto é inconciliável com a psicofisiologia e, não como se tem pretendido, com a unidade e indivisibilidade do eu.

Não se trata, neste caso, como em outros análogos, de duas individualidades, mas de duas personalidades: aqui se apoia a confusão de muitos psicólogos e também de muitos metapsiquistas. Félida não tem duas vidas, duas almas, duas individualidades num só espírito, como todos os demais com uma consciência normal e uma subconsciência que guarda a lembrança e a personalidade característica do que foi em uma existência anterior; e essa personalidade característica do que foi, transcende periodicamente e anula a consciência normal e se manifesta não como é Félida no seu estado normal, mas como foi na sua personalidade anterior, sem ter a lucidez suficiente para recordar o seu passado; vive-o somente, até que por um acesso ou alteração alternativa, muda a sua personalidade e volta ao seu estado normal, dominando por último o segundo estado. Significa que esta segunda personalidade não se radica num hemisfério do cérebro e a outra na outra metade, hipótese absurda e à margem de toda a experiência científica.

Por outro lado, não se explica como um hemisfério cerebral pode inibir a outra parte nas suas funções, como surge e se resolve este conflito cerebral e como dois órgãos cerebrais produtores de duas individualidades distintas podem concordar com as funções de um só coração.

Mesmo assim, não pretendemos negar a correlação psicofisiológica. Sabemos, porque assim tem estabelecido a psicologia experimental, que no funcionamento normal do o organismo, cada órgão, célula nervosa, fibra, ou o centro cerebral, desempenha uma função sob a acção consciente ou inconsciente do espírito. Mas uma coisa é aceitar verdades demonstradas e, a outra, muito diferente, tomar como tal as hipóteses ou confundir as condições fisiológicas dos fenómenos psíquicos com a sua causa, ou anular no espírito uma faculdade determinada, pelo facto de que não se manifesta nas condições orgânicas defeituosas ou não existentes para o seu funcionamento normal.

Dos factos expostos acima, deduz-se que os centros receptores sensoriais, os centros motores e os centros de transformação e de associação para os fenómenos psíquicos, as células nervosas, gânglios, fibras, isto é, o eixo cérebro-espinhal e os músculos e órgãos sensoriais, não mais são do que a estrutura exterior, o revestimento material de uma organização etérea, animada pelo espírito, pelo eu pensante, consciente e volitivo, vinculada ao dínamo-psiquismo celular, ao qual este está subordinado e ambos o estão ao espírito. Este é a verdadeira causa psíquica individual organizadora e directriz na qual radica todo o poder e toda a faculdade anímica e que, em estados supranormais, pode perceber mesmo sem os órgãos do corpo somático. E como o faz notar G. Dwelshauvers, no seu livro O Inconsciente, “põe em jogo as células cerebrais dos centros localizados, supõe uma excitação preliminar e esta provém de um acto psicobiológico que, em si mesmo, não pode ser localizado. E se é impossível localizar a menor das sensações, o é muito mais assinalar um lugar determinado do córtex cerebral ao que antes se denominava faculdades de abstracção: vontade, sentimento, imaginação e memória”.

Com efeito, quando o espírito realiza um acto psicofisiológico, elabora um pensamento, toma uma resolução ou provoca uma lembrança, actua sobre os centros respectivos e ao não conceder espontaneidade a cada célula cerebral dos centros localizados, ou seja, o princípio funcional do acto psíquico que se desenvolve por seu próprio impulso, há que se admitir ou que esta espontaneidade ou impulsão provém de outra célula cerebral, localizada em determinado centro, necessariamente persistente para a manutenção do equilíbrio e da ordem psico-funcional (o que nem a Psicofisiologia nem a Neurobiologia demonstraram), ou que a excitação preliminar, que o princípio do acto psíquico superior provém do espírito, considerado este como unidade psíquica, como entidade essencial e distinta do organismo, que se vale dos centros para o funcionamento psíquico normal. Essa unidade psíquica não constitui os centros nem é o resultado de um suposto polipsiquismo celular, tão inadmissível do ponto de vista psicológico, como contrário aos fenómenos metapsíquicos e espíritas, que provam a sua existência e independência, tão menosprezada pelos sábios que não saíram do limite restrito da Psicofisiologia. (*)

Uma coisa é dizer que determinados centros correspondem normalmente a determinadas funções ou actos psíquicos e outra, muito diferente, que sejam os centros cerebrais ou, na sua falta, medulares, os que elaboram ou produzem por si mesmos ou por associações o fenómeno psíquico. Este último não foi demonstrado pela ciência experimental.

/…
(*) É possível conciliar a unidade do eu com a pluralidade funcional das células que constituem os centros cerebrais, subordinando, subentende-se, aquela ao poder unitário psicodinâmico, centralizador e director do espírito. Todo o homem, como diz Frederic Myers, é ao mesmo tempo unitário e infinitamente complexo; herda dos seus antepassados um organismo múltiplo, colonial, polizóico e por acaso polipsíquico no grau extremo; mas também com uma alma ou espírito absolutamente exequível à nossa análise, que rege e unifica esse organismo; alma que tem a sua origem em um meio espiritual ou metaetéreo e que mesmo quando encarnado em um corpo, permanece em comunicação com esse meio e retorna a ele depois da morte do corpo. (A Personalidade Humana, pág. 28).



Manuel S. Porteiro, Espiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (VII), 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)