segunda-feira, 18 de abril de 2016

Giovanna ~

IV (II)

Quais são as necessidades corporais dos habitantes desses mundos?

São quase nulas – continua Giovanna para Maurice – narrando a sua viagem pelos sonhos com os seus amigos invisíveis a outras regiões celestes. – Não conhecem nem o frio, nem a fome, quase nada da fadiga. A sua existência é bem simplificada. Empregam-na na instrução, no estudo do universo, das suas leis físicas e morais. Prestam a Deus um culto magnífico e, desenvolvem em sua honra os esplendores de uma arte desconhecida aqui. Mas a prática das virtudes é, sobretudo, o seu objectivo. A miséria, as doenças, as paixões, a guerra, são quase ignoradas nesses mundos. São moradas de paz, de felicidade, das quais não saberíamos fazer nenhuma ideia no nosso globo de lutas e de lágrimas.

É então para lá que se transportam os homens virtuosos que deixam a Terra?

Há muitos degraus a transpor antes de conseguir a entrada nesses mundos. Esses são os últimos degraus da vida material e, os Seres que os povoam, diáfanos e leves para nós, são ainda grosseiros e pesados comparados aos puros Espíritos. Quanto à nossa Terra, ela não é senão um mundo inferior. É, após aí ter vivido um número de existências suficientes para concluir a sua educação e o seu adiantamento moral, que o Espírito a deixa para abordar esferas mais e mais elevadas e, revestir um corpo menos material, menos sujeito aos males e às necessidades de toda a sorte. Após um número incalculável de vidas, sempre mais longas ao mesmo tempo em que mais doces, crescendo em ciência e em sabedoria, esclarecendo-se, progredindo sem cessar, a alma abandona enfim as moradas corporais e vai perseguir no infinito o curso de sua eterna ascensão. As suas faculdades ampliam-se, uma fonte inesgotável de caridade, de amor flui nela; compreende as leis superiores, conhece o universo, entrevê Deus. Mas pobre de mim! Como estão longe de nós as suas beatitudes, as suas alegrias inefáveis! É preciso elevar-nos para essas alturas sublimes; Deus tem-nos dado os meios. Ele tem querido que sejamos os artesãos de nossa felicidade. A lei do progresso não está escrita na nossa consciência? Não recuemos então diante das lutas, dos sacrifícios, de tudo que purifica, eleva, enobrece. Oh! Se os homens quisessem saber! Se eles se dignassem a procurar o verdadeiro propósito da vida! Que horizontes se abririam perante eles! Como os bens materiais, esses bens efémeros, lhes pareceriam miseráveis, como os rejeitariam para se ligarem ao bem moral, à virtude, que a morte não pode tomar e que, sozinhos, nos abrem o acesso às regiões bem aventuradas.

Assim se escoavam as horas. Maurice inebriava-se das palavras da jovem moça, porque elas lhe ensinavam coisas que tinham sido sempre ignoradas nos seus livros. Era para ele como uma linguagem seráfica, revelando os mistérios do além-túmulo e, com efeito, Giovanna, médium inspirada, era, sem o saber, o eco de uma voz sobre-humana que retinia nas profundezas do seu Ser.

Quase todo o dia, passeavam assim, conversando através dos pequenos bosques perfumados, reaquecidos pelos raios de sol da Itália, acariciados pelo vento, sob o azul profundo do céu. Algumas vezes, subiam num barco com Luísa e deixavam-se deslizar docemente ao sabor das correntes do lago. Pouco a pouco os barulhos enfraquecidos da margem vinham morrer à volta deles. Bem alto, no ar límpido, grandes aves de rapina voavam em giros; peixes prateados saltavam na água transparente. Tudo então os convidava ao devaneio, aos doces desabafos do coração. Mas, reconduzidos por uma força oculta para os assuntos sérios, Giovanna falava de preferência da vida futura, das leis divinas, dos progressos infinitos da alma, de sua depuração pelas provas e sofrimentos.

A dor, dizia, tão temida, tão mal conhecida aqui em baixo, é, na realidade, o ensinamento por excelência, a grande escola onde se aprende as verdades eternas. Ela somente habitua o Ser a se desapegar dos bens pueris, das coisas terrestres, a apreciar o nada. Sem as provas, o orgulho e o egoísmo, esses flagelos da alma, não teriam nenhum freio. É a sua função amolecer os Espíritos rebeldes, os constranger à paciência, à obediência, à submissão. O sofrimento é o grande cadinho da purificação. Como os grãos na joeira, sempre daí se sai melhor. É preciso ter sofrido para compadecer-se com os sofrimentos dos outros. A aflição torna-nos mais sensíveis, inspira-nos mais piedade pelos infelizes. Se os homens fossem esclarecidos, bendiriam a dor como o mais possante agente de progresso, de crescimento, de elevação. Por ela, a razão fortifica-se, o julgamento afirma-se, as enfermidades do coração desaparecem. Mais alto que os bens terrestres, mais alto que o prazer, mais alto que a glória, ela mostra à alma aflita, a grande figura do dever erguendo-se, imponente, augusto, iluminado pelas claridades do fogo que não se extingue.

Essas revelações, essa voz encantadora, esses acentos eloquentes, inspirados, preenchiam Maurice de espanto e de admiração.

Giovanna – dizia – fale ainda, fale sempre, querida; o vivo eco de minhas esperanças, de minha fé, de minha paixão pelo justo e o verdadeiro. Fale! Sou tão feliz de escutá-la, de contemplá-la. E, todavia, me surpreende por vezes o receio de que a nossa felicidade se esvaneça de repente. A nossa felicidade não tem nada de humano. Parece-me que o vento áspero da vida vai soprar sobre o nosso sonho de amor; uma voz secreta me diz que um perigo nos ameaça.

Em vão a jovem moça procurou seguir os seus receios. A aproximação de eventos dolorosos nos preenche de uma apreensão vaga. A alma pressente o porvir? Este é um problema em suspenso, acima da nossa inteligência e que nós não podemos resolver.

Assim como Giovanna tinha dito, quem pode prever o dia de amanhã aqui em baixo?

Alegrias, riquezas, honras, amores insensatos, afeições austeras, tudo passa, tudo escapa entre as mãos do homem como areia subtil. As horas amargas e desoladas da vida podem tocar de perto as horas de felicidade e de paz; mas é raro, quando as primeiras se aproximam, que não sejamos atingidos por um sombrio prognóstico. Assim estava Maurice. Essa conversa sobre a dor – pensava – não seria como um presságio, uma advertência do alto? Uma pressão penosa apertava-lhe o coração quando se separava de Giovanna.

A noite se escoava longa e sem sono. Mas as primeiras claridades da alvorada afastaram as suas impressões e quando retornou para perto de sua bem-amada, vendo-a plena de graça, de jovialidade, de vida, embelezada pelo noivado, os seus últimos receios se esvaneceram como um nevoeiro matinal sob os raios de sol de Agosto.

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Léon Denis, Giovanna_1880, IV (II de II) 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

quarta-feira, 6 de abril de 2016

o grande enigma ~

Deus e o Universo (IV)

Não procures Deus nos templos de pedra e de mármore, ó homem que o queres conhecer, e sim no templo eterno da Natureza, no espectáculo dos mundos a percorrer o Infinito, nos esplendores da vida que se expande na sua superfície, na vista dos horizontes variados: planícies, vales, montanhas e mares que a tua morada terrestre te oferece. Por toda a parte, à luz brilhante do dia ou sob o manto constelado das noites, à margem dos oceanos tumultuosos e, assim na solidão das florestas, se te souberes recolher, ouvirás as vozes da Natureza e os subtis ensinamentos que murmuram ao ouvido daqueles que frequentam as suas solidões e estudam os seus mistérios.

A Terra voga sem ruído na extensão. Essa massa de dez mil léguas de circuito desliza sobre as ondas do éter qual um pássaro no Espaço, qual um mosquito na luz. Nada denuncia a sua marcha imponente. Nenhum ranger de rodas, nenhum murmúrio de vagas sob os seus flancos. Silenciosa, ela passa, rola entre as suas irmãs do céu. Toda a potente máquina do Universo se agita; os milhões de sóis e de mundos que a compõem, mundos perto dos qual o nosso vale por uma criança, todos se deslocam, se entrecruzam, prosseguem as suas evoluções com velocidades aterradoras, sem que som algum ou qualquer choque venha trair a acção desse gigantesco aparelho. O Universo continua calmo. É o equilíbrio absoluto; é a majestade de um poder misterioso, de uma Inteligência que não se impõe, que se esconde no seio das coisas e, cuja presença se revela ao pensamento e ao coração e, que atrai o pesquisador qual a vertigem do abismo.

Se a Terra evolucionasse com estrondo, se o mecanismo do mundo se regulasse com fracasso, os homens, aterrorizados, curvar-se-iam e creriam. Mas, não! A obra formidável se executa sem esforço. Globos e sóis flutuam no Infinito, tão livres quanto plumas sob a brisa. Avante, sempre avante! O rondar das esferas se efectua guiado por uma potência invisível.

A vontade que dirige o Universo disfarça-se a todos os olhares. As coisas estão dispostas de maneira que ninguém é obrigado a lhes dar crédito. Se a ordem e a harmonia do Cosmos não bastam para convencer o homem, este é livre no conjecturar. Nada constrange o céptico para ir a Deus.

O mesmo acontece às coisas morais. As nossas existências se desenrolam e os acontecimentos se sucedem sem ligação aparente; mas, a imanente justiça domina ao alto e regula os nossos destinos segundo um princípio imutável, pelo qual tudo se encadeia numa série de causas e de efeitos. O seu conjunto constitui uma harmonia que o espírito emancipado de preconceitos, iluminado por um raio da Sabedoria, descobre e admira. Que nós sabemos do Universo? Nossa vista só percebe um conjunto restrito do império das coisas. Somente os corpos materiais, à nossa semelhança, a afectam. A matéria subtil e difusa nos escapa. (i) Vemos o que há de mais grosseiro, em tudo que nos cerca. Todos os mundos fluídicos, todos os círculos onde a vida superior se agita, a vida radiosa, se eclipsam aos olhos humanos. Distinguimos apenas os mundos opacos e pesados que se movem nos céus. O Espaço que os separa nos parece vazio. Por toda a parte, profundos abismos parecem abrir-se. Erro! O Universo está cheio. Entre essas moradas materiais, no intervalo desses mundos planetários, prisões ou presídios flutuam no Espaço, outros domínios da Vida se estendem, vida espiritual, vida gloriosa, que os nossos sentidos espessos não podem perceber porque, sob as suas radiações, quebraria qual se quebra o vidro ao choque de uma pedra.

A sábia Natureza limitou as nossas percepções e as nossas sensações. É degrau a degrau que ela nos conduz no caminho do saber. É lentamente, trecho por trecho, vidas depois de vidas, que ela nos leva ao conhecimento do Universo, seja visível, seja oculto. O ser sobe, um a um, os degraus da escadaria gigantesca que conduz a Deus. E cada um desses degraus representa para o ser uma longa série de séculos.

Se os mundos celestes nos aparecessem de repente, sem véus, em toda a sua glória, ficaríamos aturdidos, cegos. Mas, os nossos sentidos exteriores foram medidos e limitados. Eles avultam e se apuram à medida que o ser se eleva na escala da existência e dos aperfeiçoamentos. O mesmo se dá com o conhecimento, a possessão das leis morais. O Universo se desvenda aos nossos olhos à proporção que a nossa capacidade de compreender as suas leis se desenvolve e engrandece. Lenta é a incubação das Almas sob a luz divina.

/…
(i) Actualmente não conhecemos, nem podemos conhecer, na sua essência, nem o Espírito nem a Matéria.



Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 4 de 5, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)