IV (II)
Quais são as necessidades corporais dos habitantes desses
mundos?
São quase nulas – continua Giovanna para Maurice –
narrando a sua viagem pelos sonhos com os seus amigos invisíveis a outras
regiões celestes. – Não conhecem nem o frio, nem a fome, quase nada da fadiga. A
sua existência é bem simplificada. Empregam-na na instrução, no estudo do
universo, das suas leis físicas e morais. Prestam a Deus um culto magnífico e,
desenvolvem em sua honra os esplendores de uma arte desconhecida aqui. Mas a
prática das virtudes é, sobretudo, o seu objectivo. A miséria, as doenças, as
paixões, a guerra, são quase ignoradas nesses mundos. São moradas de paz, de
felicidade, das quais não saberíamos fazer nenhuma ideia no nosso globo de
lutas e de lágrimas.
É então para lá que se transportam os homens virtuosos que
deixam a Terra?
Há muitos degraus a transpor antes de conseguir a entrada nesses
mundos. Esses são os últimos degraus da vida material e, os Seres que os
povoam, diáfanos e
leves para nós, são ainda grosseiros e pesados comparados aos puros Espíritos.
Quanto à nossa Terra, ela não é senão um mundo inferior. É, após aí ter vivido
um número de existências suficientes para concluir a sua educação e o seu adiantamento
moral, que o Espírito a deixa para abordar esferas mais e mais elevadas e, revestir um corpo menos material, menos sujeito aos males e às necessidades de
toda a sorte. Após um número incalculável de vidas, sempre mais longas ao mesmo
tempo em que mais doces, crescendo em ciência e em sabedoria, esclarecendo-se,
progredindo sem cessar, a alma abandona enfim as moradas corporais e vai
perseguir no infinito o curso de sua eterna ascensão. As suas faculdades
ampliam-se, uma fonte inesgotável de caridade, de amor flui nela; compreende as
leis superiores, conhece o universo, entrevê Deus. Mas pobre de mim! Como estão
longe de nós as suas beatitudes, as suas alegrias inefáveis! É preciso elevar-nos
para essas alturas sublimes; Deus tem-nos dado os meios. Ele tem querido que
sejamos os artesãos de nossa felicidade. A lei do progresso não está escrita na
nossa consciência? Não recuemos então diante das lutas, dos sacrifícios, de
tudo que purifica, eleva, enobrece. Oh! Se os homens quisessem saber! Se eles
se dignassem a procurar o verdadeiro propósito da vida! Que horizontes se
abririam perante eles! Como os bens materiais, esses bens efémeros, lhes
pareceriam miseráveis, como os rejeitariam para se ligarem ao bem moral, à
virtude, que a morte não pode tomar e que, sozinhos, nos abrem o acesso às
regiões bem aventuradas.
Assim se escoavam as horas. Maurice inebriava-se das
palavras da jovem moça, porque elas lhe ensinavam coisas que tinham sido sempre
ignoradas nos seus livros. Era para ele como uma linguagem
seráfica, revelando os mistérios do além-túmulo e, com efeito, Giovanna,
médium inspirada, era, sem o saber, o eco de uma voz sobre-humana que retinia
nas profundezas do seu Ser.
Quase todo o dia, passeavam assim, conversando através dos
pequenos bosques perfumados, reaquecidos pelos raios de sol da Itália,
acariciados pelo vento, sob o azul profundo do céu. Algumas vezes, subiam num
barco com Luísa e deixavam-se deslizar docemente ao sabor das correntes do lago. Pouco a pouco os
barulhos enfraquecidos da margem vinham morrer à volta deles. Bem alto, no ar
límpido, grandes aves de rapina voavam em giros; peixes prateados saltavam na
água transparente. Tudo então os convidava ao devaneio, aos doces desabafos do
coração. Mas, reconduzidos por uma força oculta para os assuntos sérios,
Giovanna falava de preferência da vida futura, das leis divinas, dos progressos
infinitos da alma, de sua depuração pelas provas e sofrimentos.
A dor, dizia, tão temida, tão mal conhecida aqui em baixo,
é, na realidade, o ensinamento por excelência, a grande escola onde se aprende
as verdades eternas. Ela somente habitua o Ser a se desapegar dos bens pueris,
das coisas terrestres, a apreciar o nada. Sem as provas, o orgulho e o egoísmo,
esses flagelos da alma, não teriam nenhum freio. É a sua função amolecer os
Espíritos rebeldes, os constranger à paciência, à obediência, à submissão. O
sofrimento é o grande cadinho da purificação. Como os grãos na joeira, sempre daí se
sai melhor. É preciso ter sofrido para compadecer-se com os sofrimentos dos
outros. A aflição torna-nos mais sensíveis, inspira-nos mais piedade pelos
infelizes. Se os homens fossem esclarecidos, bendiriam a dor como o mais
possante agente de progresso, de crescimento, de elevação. Por ela, a razão
fortifica-se, o julgamento afirma-se, as enfermidades do coração desaparecem.
Mais alto que os bens terrestres, mais alto que o prazer, mais alto que a
glória, ela mostra à alma aflita, a grande figura do dever erguendo-se,
imponente, augusto, iluminado pelas claridades do fogo que não se extingue.
Essas revelações, essa voz encantadora, esses acentos
eloquentes, inspirados, preenchiam Maurice de espanto e de admiração.
Giovanna – dizia – fale ainda, fale sempre, querida; o vivo
eco de minhas esperanças, de minha fé, de minha paixão pelo justo e o
verdadeiro. Fale! Sou tão feliz de escutá-la, de contemplá-la. E, todavia, me
surpreende por vezes o receio de que a nossa felicidade se esvaneça de repente.
A nossa felicidade não tem nada de humano. Parece-me que o vento áspero da vida
vai soprar sobre o nosso sonho de amor; uma voz secreta me diz que um perigo
nos ameaça.
Em vão a jovem moça procurou seguir os seus receios. A
aproximação de eventos dolorosos nos preenche de uma apreensão vaga. A alma
pressente o porvir? Este é um problema em suspenso, acima da nossa inteligência
e que nós não podemos resolver.
Assim como Giovanna tinha dito, quem pode prever o dia de
amanhã aqui em baixo?
Alegrias, riquezas, honras, amores insensatos, afeições
austeras, tudo passa, tudo escapa entre as mãos do homem como areia subtil. As
horas amargas e desoladas da vida podem tocar de perto as horas de felicidade e
de paz; mas é raro, quando as primeiras se aproximam, que não sejamos atingidos
por um sombrio prognóstico. Assim estava Maurice. Essa conversa sobre a dor –
pensava – não seria como um presságio, uma advertência do alto? Uma pressão
penosa apertava-lhe o coração quando se separava de Giovanna.
A noite se escoava longa e sem sono. Mas as primeiras
claridades da alvorada afastaram as suas impressões e quando retornou para
perto de sua bem-amada, vendo-a plena de graça, de jovialidade, de vida,
embelezada pelo noivado, os seus últimos receios se esvaneceram como um nevoeiro
matinal sob os raios de sol de Agosto.
/...
Léon Denis, Giovanna_1880, IV (II de II) 6º
fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena
pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)
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