domingo, 25 de dezembro de 2016

Fernando de Lacerda, o médium português ~

Explicando…

A primeira vez que ouvimos falar de Fernando de Lacerda foi quando nos referiram a história de um homem que, no princípio do século, vivera em Lisboa, saltando para cima dos eléctricos e do Arco da Rua Augusta, e que um outro homem conseguia dominar com a sua presença… e, da narrativa, ficou-nos a sensação de que o que era mais importante não era o cantor, mas a canção!

Tínhamos «descoberto» há pouco tempo a Doutrina Espírita e, talvez, olhando agora para trás, tenhamos de concluir que a deficiência da ideia que formámos, deveria ser consequência da nossa ignorância, da maneira mais ou menos vaga como assimiláramos o caso – não o caso em si próprio – tão desabitual que, só por isso, deveria, antes, ter-nos levado a debruçar sobre o assunto.

Não o fizemos.

Em 1974 conseguimos ler as Memórias de Um Suicida, mas o nome do médium que Camilo ali refere, nada nos dizia…

Passaram-se 11 anos.

Em Portugal, a «Associação Luz no Caminho», de Braga, edita o 1.º volume da obra de Lacerda, e, poucos meses depois, tivemos a possibilidade de obter a obra completa, em edição brasileira.

O nome de Fernando de Lacerda passou, então, a representar para nós o de um médium português que na primeira década de 1900 recebera várias comunicações de espíritos de escritores grandes da literatura portuguesa, a que se juntaram mensagens de nomes de outras personalidades estrangeiras, universalmente conhecidas.

Os livros foram lidos rapidamente, tendo – realmente – apreciado o estilo das diversas composições. Recordamo-nos que, na época, um familiar, sentado a nosso lado, lia «O Mistério da Estrada de Sintra» enquanto nós analisávamos, um e outro, da igualdade de estilo, a ironia, os «floreados», as descrições…

– Extraordinário!...

Mas foi só isso…

Em 1989 a Associação Luz no Caminho, ainda ela, edita o opúsculo Fernando de Lacerda, o Homem… o Médium!

Lembramo-nos de termos adquirido o livrito em Dezembro, na própria Associação, num Conselho Federativo Nacional que a Federação Espírita Portuguesa ali esteve realizando.

Lemo-lo à noite, em meia hora, tendo-o terminado com a sensação, talvez idêntica à de um esfomeado sentado a uma mesa repleta de iguarias, que só os olhos comem… porque não as consegue mastigar!

Sem saber porquê, sentimo-nos defraudados… mas semanas depois calmamente, voltámos a abrir o livrinho. O artigo de Hermínio de Miranda: – Fernando de Lacerda, o Médium do País de Camões –, levantou a ponta de um véu: a Federação Espírita Brasileira tinha em seu poder o espólio que o escritor recebera e ali entregara. Através da F.E.P., de cuja Direcção fazíamos parte, escrevemos à nossa congénere brasileira, pedindo fotocópias daquele espólio, por serem «elementos de reconhecido valor histórico e doutrinário que, por certo, permitirão dar a conhecer ao Movimento Espírita Português quem foi e o que fez Fernando de Lacerda em prol da Mensagem do Consolador, a benefício da Humanidade…», e, enquanto a resposta não chegava, procurámos, então, descobrir Fernando de Lacerda. Foi uma iniciativa que demorou um ano em pesquisas na Biblioteca Nacional, na Torre do Tombo – para descobrirmos os nomes dos familiares do médium –, rescaldo do muito que já se possuiu de valioso antes do seu encerramento na década de 60.

A sensação da descoberta foi maravilhosa mas, apesar disso, um pouco frustrante! Não conseguíamos encontrar o que consideramos principal: o assunto que levara à suspensão do subchefe da polícia administrativa do Governo Civil, e consequente demissão.

Mas, a nossa percepção dava-nos uma outra sensação: não estávamos sós a movimentar-nos! A partir de determinado momento, começamos a perceber que «alguém» emparceirava connosco, caminhando, por vezes, à nossa frente, debruçando-se igualmente sobre o que líamos. Assim nos foi aberto o caminho e os nossos passos orientados para determinada estante, e as nossas mãos seguraram um livro da grande Enciclopédia Luso-Brasileira, e os nossos dedos procuraram, como se lessem também eles, e se detinham, logo após, na página 990, em «Botto Machado (Fernão do Amaral)».

Tínhamos andado à sua procura, anteriormente, de maneira errada, embora essa procura nos tivesse concedido determinados dados, também eles úteis, e agora, talvez no momento oportuno, vinha todo o resto!

Na descrição ali encontrada descobrimos jornais e, nestes, tudo o que nos faltava saber.

Pelos artigos de uns, encontrávamos os outros… e fomos, assim, acumulando os elementos de que nos servimos para o nosso trabalho, que tivemos o cuidado de não manchar com transcrições menos nobres. Não nos move o escândalo!

Do Brasil, o Dr. Francisco Thiesen, ora desencarnado, respondia à carta da F.E.P., dizendo: – «…Não vemos inconveniente algum em ir ao encontro do propósito manifestado. Só que só poderemos atendê-lo oportunamente, em virtude de esses documentos se encontrarem guardados no prédio em construção, em sala sem acesso de momento. Assim, tão logo possamos tê-los ao alcance de nossas mãos, apressar-nos-emos em fazê-los chegar à Federação Espírita Portuguesa, de vez que concordamos tratar-se de “elementos de reconhecido valor histórico e doutrinário”.»

Aguardámos.

Na nossa agenda procurámos nomes de amigos residentes no Rio de Janeiro, que nos pudessem ajudar a encontrar ali o que, de outra forma, não poderíamos obter, e recorremos a Portugal Ferreira Marques.

Foi ele que nos obteve fotocópias da certidão de óbito, datada de 6 de Agosto, e da ordem da sepultura, da Santa Casa da Misericórdia, esta sim, datada do dia 7 do mesmo mês. Enviou-nos, ainda, fotocópias do artigo de Hermínio de Miranda e do de Jorge Rizzini, publicado no «Jornal de S. Paulo», e de que tínhamos o borrão que o próprio Rizzini nos facultara.

Aos serões, em nossa casa, dedicámo-nos, então, ao estudo dos quatro volumes Do País da Luz, e neles descobrimos, não só as orientações e ensinos que cada um dos autores comunicantes transmite, como o próprio Fernando de Lacerda.

Nas palavras do Eça, de Camilo, de Castilho, de Frei Bartolomeu dos Mártires, do Padre António Vieira, de HerculanoFialhoSilva Pinto – como nas orientações do «Marinheiro» – foi-se-nos revelando o homem.

presença que sentíamos há umas semanas, continuava quase constante. Nunca, na nossa condição de médium, uma entidade nos foi tão palpável… Mas, a esta altura já tínhamos concluído que essa companhia não podia ser de Lacerda! A maneira de ser, que nele descobrimos, a sua humildade, não se coadunavam com a elaboração de um trabalho, fosse este como fosse, para o dar a conhecer. Seria, antes, um amigo? Um familiar?... o próprio Botto Machado?

/…
«…É geralmente conhecido o Sr. Lacerda pelo “passa-culpas”. Multas… paga-as do seu bolso, quando não pode livrar delas os desgraçados. / Órfãos, não só os protege, como os tem em casa, dando-lhes leite, pão, instrução e educação. / Não se lhe conhece um acto indigno. Nunca ninguém o procurou em vão para uma obra piedosa. / Profundamente religioso, é profundamente justo. Todos os desgraçados, quando mais aflitos, vão colher uma esperança e um alento junto dele. / Dá colocação aos sem-trabalho, esmolas valiosas e constantes aos que dele se abeiram envoltos em lágrimas… e, às vezes, de crocodilo. / Ajuda todos como pode, sem os sugar – o que é raro. / Pode ter entrada nos lares honestos. Nunca os manchou… por causa da grande teoria do “amor livre”. / Nunca protegeu mulher nenhuma, para lhe impor uma torpeza. / É digno, é puro, é bom. / Tão inteligente como honesto, os próprios inimigos que, afinal, são poucos, não lhe negam nenhuma daquelas qualidades. / Um “defeito” lhe apontam: ser fraco pela sensibilidade que leva à maior abnegação.» in Jornal A "Palavra", 4 de Outubro de 1908



Manuela Vasconcelos, Fernando de Lacerda o Médium Português, Explicando 1 de 3, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Fernando de Lacerda, inspector da Polícia Administrativa, em Lisboa 1908-1909, no seu gabinete do Governo Civil , recebendo mediúnicamente João de Deus para as crónicas "O que dizem os mortos")

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

~ há em nós uma surda aspiração, uma íntima energia misteriosa que nos encaminha para as alturas ~


alma humana…

Grandioso é o espectáculo da luta do espírito contra a matéria, luta para a conquista do Globo, luta contra os elementos, os flagelos, contra a miséria, a dor e a morte. Por toda a parte a matéria se opõe à manifestação do pensamento. No domínio da Arte, é a pedra que resiste ao cinzel do escultor; na Ciência, é o inapreciável, o infinitamente pequeno que se furta à observação; na ordem social, como na ordem privada, são os obstáculos sem-número, as necessidades, as epidemias, as catástrofes!

Não obstante, frente às potências cegas que o oprimem e o ameaçam de todos os lados, o homem, ser frágil,  ergueu-se. Por único recurso tem apenas a vontade e, com esse único recurso, tem continuado, sem tréguas nem piedade, através dos tempos, a áspera luta; depois, um dia, pela vontade humana, foi vencida, subjugada a formidável potência. O homem quis e a matéria submeteu-se. Ao seu gesto, os elementos inimigos, a água e o fogo, uniram-se rugindo e para ele têm trabalhado.

É a lei do esforço, lei suprema, pela qual o ser se afirma, triunfa e se desenvolve; é a magnífica epopéia da História, a luta exterior que enche o mundo. A luta interior não é menos comovente. De cada vez que renasce, terá o Espírito de ajeitar, de apropriar o novo invólucro material que lhe vai servir de morada e fazer dele um instrumento capaz de traduzir, de exprimir as concepções do seu génio. Demasiadas vezes, porém, o instrumento resiste e o pensamento, desanimado, retrai-se, impotente para adelgaçar, para levantar o pesado fardo que o sufoca e aniquila. Entretanto, pelo esforço acumulado, pela persistência dos pensamentos e dos desejos, apesar das decepções, das derrotas, através das existências renovadas, a alma consegue desenvolver as suas altas faculdades.

Há em nós uma surda aspiração, uma íntima energia misteriosa que nos encaminha para as alturas, que nos faz tender para destinos cada vez mais elevados, que nos impele para o belo e para o bem. É a lei do progresso, a evolução eterna, que guia a humanidade através das idades e aguilhoa cada um de nós, porque a humanidade são as próprias almas, que, de século em século, voltam para prosseguir, com o auxílio de novos corpos, preparando-se para mundos melhores, na sua obra de aperfeiçoamento. A história de uma alma não difere da história da humanidade; só difere a escala: é a escala das proporções.

O Espírito molda a matéria, comunica-lhe a vida e a beleza. É por isso que a evolução é, por excelência, uma lei de estética. As formas adquiridas são o ponto de partida de formas mais belas. Tudo se liga. A véspera prepara o dia seguinte; o passado gera o futuro. A obra humana, reflexo da obra divina, expande-se em formas cada vez mais perfeitas.

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LÉON DENIS, O Problema do Ser, do Destino e da Dor,  IX – Evolução e finalidade da alma, fragmento.
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)