sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Inquietações Primaveris ~


a extinção | da Vida

A insistência do homem na negação de sua própria imortalidade não decorre, como geralmente se pensa, das dificuldades para prová-la cientificamente, nem da visão caótica do mundo em que se perdem os espíritos cépticos, que vivem como aturdidos entre as certezas e incertezas do conhecimento humano.

Decorre apenas do sentimento da fragilidade humana, considerado tão importante pelos existencialistas.

O instinto de morte da tese freudiana, num mundo em que tudo morre, nada permanece, como notava Protágoras desolado, supera e esmaga na sensibilidade humana o instinto de vida, os anseios existentes geralmente confundidos com o elã vital de Bergson.

Sentindo-se frustrado e desolado ante a fatalidade irremovível da morte, e levado ao desespero ante a irracionalidade das proposições religiosas, o homem vê secarem as suas esperanças no inverno único e irremissível da vida material.

A sua impotência revela-se como absoluta, apagando em seu espírito as esperanças e a confiança na vida que o sustentavam na mocidade. A vida se extingue em si mesma e a seus olhos por toda a parte, em todos os reinos da Natureza, e ninguém jamais conseguiu barrar o fluxo arrasador do tempo, que leva de roldão as coisas e os seres, envelhecendo-os e desgastando-os, por maiores, mais fortes e brilhantes que possam parecer. A passagem inexorável dos anos marca minuto a minuto, com uma segurança fatal e uma pontualidade exasperante, o fim inevitável de todas as coisas e todos os seres.

Ao contrário do que se diz popularmente, não são os velhos que sonham com a imortalidade, mas os jovens. Porque estes, na segurança ilusória de sua vitalidade, são mais propícios a aceitar e cultivar esperanças de renovação. Por mais geniais que sejam, por mais realistas que se mostrem, os jovens – com excepção dos que sofrem de desequilíbrios orgânicos e psíquicos – crêem na vida que usufruem sem preocupações. 

Alega-se que são os velhos e não os jovens que se interessam pelas religiões, acreditando-se que esse interesse da velhice pela ilusão da sobrevivência é o desespero do náufrago que se apega à tábua de salvação. Imagem aparentemente apropriada, mas na verdade falsa. O velho religioso, não raro fanático, sabe muito bem que os seus dias estão contados e teme a possibilidade de seu encontro com os julgadores implacáveis com que as religiões os ameaçaram, desde a infância remota. Querem geralmente prevenir-se do que lhes pode acontecer ao passarem para outra vida carregados de pecados que as religiões prometem aliviar. 

O medo da morte é tão generalizado entre as pessoas que entram na recta final da existência, que Heideggerd acentuou, com certa ironia, a importância da partícula se nas expressões sobre a morte. A maioria das pessoas dizem morre-se ao invés de morremos, porque se refere aos outros e não a si mesmo.

A figura jurídica da legítima defesa, nos casos de assassinato, institucionalizou racionalmente o direito de matar que, se por um lado reconhece a validade social do instinto de conservação, por outro lado legitima nos códigos do mundo o sentido oculto da partícula se nas fraudes inconscientes da linguagem. Por outro lado, essa partícula confirma o desejo individual de que os outros morram, e não nós, mostrando a inocuidade dos mandamentos religiosos. Por sinal, essa inocuidade, como se sabe, revelou-se no próprio Sinai, quando Moisés, ainda com a Tábua das Leis em mãos, ordenou a matança imediata de dois mil israelitas que adoravam o Bezerro de Ouro.

Chegamos assim à conclusão de que a posição do homem diante da morte é ambivalente, colocando-o num dilema sem saída, perdido no labirinto das suas próprias contradições. Desse desespero resulta a loucura das matanças colectivas, das guerras, do apelo humano aos processos de genocídio, tão espantosamente evidenciados na História Humana. Os arsenais atómicos do presente, e particularmente o recurso novíssimo das bombas de neutrões, revelam no homem o desejo inconsciente, mas racionalizado pelas justificativas de segurança, de extinção total da vida no planeta. Os versos consagrados do poeta: “Antes morrer do que um viver de escravos”, valem por uma catarse colectiva. A extinção da vida é o supremo desejo da Humanidade, que só não se realiza graças à impotência do homem ante a rigidez das leis naturais. Por isso a Ciência acelera sem cessar a descoberta de novos meios de matança massiva. Os escravos da vida preferem a morte.

Esse panorama apocalíptico só pode modificar-se através da Educação para a Morte. Não se trata de uma educação especial nem supletiva, mas de uma para-educação sugerida e até mesmo exigida pela situação actual do mundo. O problema da chamada explosão demográfica, com o acelerado desenvolvimento da população mundial, impossível de se deter por todos os meios propostos, mostra-nos a necessidade de uma revisão profunda dos processos educacionais, de maneira a reajustá-los às novas condições de vida, cada vez mais intoleráveis. 

Como assinalou Kardec, somente a Educação poderá levar-nos às soluções desejadas. Os recursos que, em ocasiões como esta, são sempre produzidos pela própria Natureza, já nos foram dados através da também chamada explosão psíquica dos fenómenos paranormais. O conhecimento mais profundo da natureza humana, levado pelas pesquisas psicológicas e parapsicológicas até às profundezas da alma, revelam que o novo processo educacional deve atingir os mecanismos da consciência subliminar da teoria de Frederic Myers, de maneira a substituir as introjecções negativas e desordenadas do inconsciente por introjecções positivas e racionais. A teoria dos arquétipos de Jung, bem como a sua teoria parapsicológica das coincidências significativas, podem ajudar-nos em dois planos: o da transcendência e o da dinâmica mental consciente. 

A Educação para a Morte socorrerá a vida, restabelecendo-lhe a esperança e o entusiasmo das novas gerações pelas novas perspectivas da vida terrena. Uma nova cultura, já esboçada nos nossos dias, logo se definirá como a saída natural que até agora buscamos inutilmente para o impasse.

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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 4 A Extinção da Vida 1 de 2, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

há no universo duas imensas correntes de vida. Uma sobe do abismo pela animalidade; a outra desce das alturas divinas ~


Alma humana...

A lei do progresso não se aplica somente ao homem; é universal. Há, em todos os reinos da Natureza, uma evolução que foi reconhecida pelos pensadores de todos os tempos. Desde a célula verde, desde o embrião errante, boiando à flor das águas, a cadeia das espécies tem-se desenrolado através de séries variadas, até nós. |*

Cada elo dessa cadeia representa uma forma da existência que conduz a uma forma superior, a um organismo mais rico, mais bem adaptado às necessidades, às manifestações crescentes da vida; mas, na escala da evolução, o pensamento, a consciência e a liberdade só aparecem passados muitos graus. Na planta a inteligência dormita; no animal ela sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente; a partir daí o progresso, de alguma sorte fatal nas formas inferiores da Natureza, só se pode realizar pelo acordo da vontade humana com as leis Eternas.

É pelo acordo, pela união da razão humana com a razão divina que se edificam as obras preparatórias do reino de Deus, isto é, do reino da sabedoria, da justiça, da bondade, de que todo o ser racional e consciente tem em si a intuição.

Assim, o estudo das leis da evolução, em vez de anular a espiritualidade do homem, vem, pelo contrário, dar-lhe uma nova sanção; ensina-nos como o corpo do homem pode derivar de uma forma inferior pela selecção natural, mas nos mostra também que possuímos faculdades intelectuais e morais de origem diferente e encontramos essa origem no universo invisível, no mundo sublime do Espírito.

A teoria da evolução deve ser completada pela da percussão, isto é, pela acção das potências invisíveis, que activa e dirige essa lenta e prodigiosa marcha ascensional da vida do Globo. O mundo oculto intervém, em certas épocas, no desenvolvimento físico da humanidade, como intervém no domínio intelectual e moral, pela revelação medianímica. Quando uma raça que chegou ao apogeu é seguida de uma nova raça, é racional acreditar que uma família superior de almas encarna entre os representantes da raça exausta para fazê-la subir um grau, renovando-a e moldando-a à sua imagem. É o eterno himeneu entre o céu e a Terra, a infinita penetração da matéria pelo espírito, a efusão crescente da vida psíquica na forma em evolução.

O aparecimento do homem na escala dos seres pode explicar-se dessa forma. O homem, demonstra-nos a embriogenia, é a síntese de todas as formas vivas que o precederam, o último elo da longa cadeia de vidas inferiores que se desenrola através dos tempos. Mas isso é apenas o aspecto exterior do problema das origens, ao passo que amplo e imponente é o aspecto interior. Assim como cada nascimento se explica pela descida à carne de uma alma que vem do espaço, assim também o primeiro aparecimento do homem no Planeta, deve ser atribuído a uma intervenção das Potências invisíveis que geram a vida. A essência psíquica vem comunicar às formas animais evoluídas o sopro de uma nova vida; vai criar, para a manifestação da inteligência, um órgão até então desconhecido: a palavra. Elemento poderoso de toda a vida social, o verbo aparecerá e, ao mesmo tempo, a alma encarnada conservará, mediante o seu invólucro fluídico, a possibilidade de entrar em relação com o meio |** donde saiu.

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|* Os seres monocelulares encontram-se ainda hoje aos biliões, em cada organismo humano. Não foi de uma única célula que saiu a série das espécies; foi, antes, a multidão das células que se agrupou para formar seres mais perfeitos e, de degrau em degrau, convergir para a unidade.
|** Qualquer que seja a teoria a que se dê preferência nessas matérias, adoptem-se as vistas de Darwin, de Spencer ou de Haeckel, não é possível crer-se que a Natureza, que Deus apenas tenha um só e único meio de produzir e desenvolver a vida. O cérebro humano é limitado; as possibilidades da vida são infinitas. Os pobres teóricos, que querem enclausurar toda a ciência biológica dentro dos estreitos limites de um sistema, fazem-nos sempre lembrar o menino da lenda, que queria meter toda a água do oceano num buraco feito na areia da praia.
O próprio professor Charles Richet declarou, na sua resposta a Sully-Prudhomme: “As teorias da selecção são insuficientes.” E nós acrescentaremos: “Se há unidade de plano, deve haver diversidade nos meios de execução. Deus é o grande artista que, dos contrastes sabe fazer resultar a harmonia. Parece que há no universo duas imensas correntes de vida. Uma sobe do abismo pela animalidade; a outra desce das alturas divinas. Vão ambas ao encontro uma da outra para se unirem e se confundirem e mutuamente se atraírem. Não é essa a significação que tem a escada do sonho de Jacob?”



LÉON DENIS, O Problema do Ser, do Destino e da Dor,  IX – Evolução e finalidade da alma, fragmento.
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria;
I Posição do Problema (II)

Há umas tantas questões profundas que, no curso da vida humana, nas horas de silêncio e solidão, se nos apresentam como outros tantos pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.

Tais os problemas da existência da alma, do seu destino futuro, da existência de Deus e das suas relações com a Criação.

Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e dominam na sua imensidade, pois sentimos que nos aguardam, e na ignorância deles não poderemos razoavelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.

Assim é que, já o dizia Pascal, um desses problemas – o da mortalidade da alma – é tão importante, que é preciso haver perdido toda a consciência para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo. O mesmo se poderá dizer quanto à existência de Deus. Quando meditamos essas verdades, ou apenas na possibilidade da sua existência, elas nos aparecem sob o aspecto tão grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas inteligentes, seres racionais, pensantes, entregar-se a uma vida inteira a interesses transitórios, sem se abstraírem uma por outra vez da sua apatia para atender a essas interrogativas preciosas.

Se é verdade, qual o temos observado, que há neste mundo homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses problemas, menos não é que eles nos inspiram verdadeira piedade. Aqueles que, no entanto, mais agravam a brutalidade da indiferença e, de caso pensado, desdenham alçar-se ao nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os doces gozos da vida material, esses, – declaramo-lo alto e a bom som – nós os deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerá-los fora da esfera intelectual.

O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem por outro motivo é que, contra ele, se apontam as principais, as mais possantes baterias do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a inexistência de Deus e que uma tal hipótese não passa de aberração da inteligência humana. Um grande número de homens sérios, convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos, enfileiraram-se à volta desses inovadores reincidentes, engrossando desmesuradamente as hostes materialistas, primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça e na própria Itália.

Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos se apoiam em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus não existe, cometem a mais grave inconsequência.

Acusando-os dessa errónea, haveremos de justificar-nos, ainda que os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que vimos combatê-los.

Deixamos de lado toda a ciência especulativa e colocamo-nos, exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.

Não pensamos como Demócrito que, vazar os olhos, para evitar as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar frutuosamente a Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos firmes na esfera da observação e da experiência.

Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos a aplicar ao problema os actuais conhecimentos científicos, longe de conduzirem à negativa, afirmam eles a inteligência e sabedoria das leis da Natureza.

A elevação para Deus, mediante o estudo científico da Natureza, nos mantém em situação equidistante dos dois extremos, isto é: – dos que negam e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como se houvessem sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas, combatemos duas potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.

Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus infantil, quanto negar uma causa primária.

Em vão se nos objectará não podermos afirmar a existência de uma entidade que não conhecemos. Acautelemo-nos de presunções que tais. Certo, não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tampouco, conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da Terra.

“Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann – que tenha uma exacta noção do Ser supremo. As minhas opiniões, faladas ou escritas, resumem-se nisto: Deus é incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e nós com ela, somos de tal modo penetrados pela Divindade que dela nos sustentamos, nela vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade com leis eternas, perante as quais representamos um papel activo e passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com o bolo, sem pensar em quem o fez, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como a esta se formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma, essa íntima intuição que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria infinitamente abaixo da verdade, tantos são os seus inumeráveis atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, se manifesta não só no homem como no âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a ideia que dele se faz é, evidentemente, exígua.”

A ideia que os antepassados formavam de Deus, em todas as épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente adquirido pela Humanidade. Tal como o saber humano, essa ideia é variável e deve, necessariamente, progredir, pois, seja como for, cada uma das noções que constituem o património da inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pena de ficar distanciada.
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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 2 de 6, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)