terça-feira, 28 de novembro de 2023

literatura do além-túmulo ~


Capítulo VI

 Lembro-me que há alguns anos, tendo consagrado longo estudo à análise das admiráveis provas de identificação pessoal fornecidas pela entidade Oscar Wilde(i) o célebre poeta e dramaturgo inglês, nas suas comunicações por intermédio da médium Hester Dowden, terminei observando que, no caso em questão, foram dadas todas as provas cumulativas que se estava razoavelmente no direito de exigir nestas circunstâncias.

Enumerei, com efeito, a transmissão de numerosas provas pessoais, ignoradas de todos os assistentes e das quais se constatou a autenticidade; a prova memorável da identidade da escrita, seguida, de modo impecável, no decorrer de várias centenas de páginas; a prova mais importante ainda a da identidade do estilo, ou, para melhor dizer, dos dois estilos que caracterizavam a personalidade literária do defunto; enfim, a mais concludente ainda, da emergência da personalidade intelectual e moral de Oscar Wilde com todas as variedades do seu carácter: personalidade complexa, original, inimitável.

Depois do que acrescentei:

“Noto, finalmente, que Oscar Wilde prometeu, por fim, acrescentar às provas fornecidas até aqui uma nova demonstração: a de uma comédia póstuma com o auxílio de sua médium.”

Ele manteve a palavra dada. A comédia foi ditada à médium logo depois da publicação do seu livro: Psychic messages from Oscar WildeHester Dowden (Travers-Smith) dá, a esse respeito, as seguintes informações:

“Eu nunca fui admiradora das obras de Oscar Wilde, nem a sua personalidade nunca me suscitou interesse. Creio concluir racionalmente então que a minha mão tem escrito algo que não provêm de mim. Oscar Wilde vivera numa época que não a minha e, a partir das suas obras literárias exala algo diferente dos dias de hoje. Eu não posso remontar ao passado, ao período de 1880, como ele fizera e, ele não se pode emancipar dos gostos literários e dos costumes do seu tempo, que eu não vou lembrar-me em tudo. Ora, é nesta condição mental que consiste o traço característico mais saliente de todas as suas mensagens mediúnicas e da sua comédia. Quando me ditava, pediu-me que o informasse sobre os gostos literários e costumes da nossa época e eu lhe expliquei as mudanças radicais que tinham ocorrido, mas ele não as levou em conta e veio a emancipar-se do ambiente em que vivia.

Pessoalmente, considero que a prova mais convincente que se pode imaginar em favor da sobrevivência da alma é a que se refere à personalidade intelectual e moral dos defuntos que se comunicam. As indicações relativas à existência terrestre, sobretudo se desconhecidas de todos os assistentes, são importantes e convincentes, mas quase sempre susceptíveis de serem explicadas pela hipótese das reminiscências latentes nas subconsciências dos assistentes (criptomnesia). Nenhuma intenção tenho de contestar a importância desses informes, que constituem a base sobre a qual repousam as pesquisas experimentais concernentes à questão da sobrevivência; sem elas não se poderia considerar como a identificação do defunto tenha sido provada. Entretanto, cada vez que as informações desse género constituem as únicas provas de que dispomos, não podemos considerar-nos autorizados a afirmar que a personalidade do defunto comunicante estava realmente presente ou que o espírito sobrevive à morte do corpo. É a mentalidade do morto que é preciso salientar nas manifestações mediúnicas; é a sua personalidade intelectual e moral, com todos os matizes do seu temperamento e a maneira de compor as frases que o caracterizavam. Eis o que devemos examinar experimentalmente, se queremos chegar a dissipar qualquer dúvida relativamente ao problema do além. Penso que, no domínio das pesquisas psíquicas, não se compreendeu ainda toda a importância decisiva que reveste a personalidade psíquica da entidade que se comunica e que deveria ser o elemento essencial nas provas de identificação espírita.

Quando as mensagens de Oscar Wilde se sucediam diariamente, eu lhe perguntava se não podia ditar-me alguma obra literária, a título de prova ulterior de sua presença. Dirigindo-lhe este pedido, não pensava absolutamente numa produção de teatro mas, antes, nos seus ensaios literários, onde, a meu ver, se encontra o que de melhor o seu talento produziu. Foi o próprio Oscar Wilde que me declarou que ia escrever uma comédia e que se sentia em condições de o fazer. Quanto a mim, fiquei antes céptica a esse respeito: tinha notado, com efeito, que, na mediunidade psicográfica, as sessões curtas são as únicas que dão bons resultados e considerava então como irrealizável o seu projecto de me ditar uma comédia inteira.

As primeiras tentativas pareceram, de facto, justificar o meu cepticismo: Oscar Wilde era um comunicante indeciso, difícil, autoritário, por vezes de um humor muito desagradável. Durante as primeiras cinco ou seis sessões, ele discutiu comigo a respeito das condições mediúnicas; informou-me que já tinha concebido o cenário de uma comédia inteira, que eu nada tinha a preocupar-me; que se sentia em condições de dispor as cenas, de escolher os nomes dos seus personagens, de desenvolver os diferentes caracteres utilizando eficazmente a técnica do drama. Fiz-lhe notar que as antigas modalidades tradicionais dos cenários tinham sofrido, nos nossos dias, grandes mudanças, como, por exemplo, os “à parte” tinham sido abolidos. Ele respondia, da mesma maneira, a todas as minhas observações, isto é, advertindo-me que eu não era autora dramática e que como ele já tinha na sua cabeça todo o entrecho do drama, não poderia desistir...

Com efeito, desde o começo, era manifesto que Oscar Wilde tinha organizado, no seu espírito, todo o enredo da comédia, ainda que não chegasse a desenvolver o seu diálogo do modo que desejava. Devo reconhecer, sinceramente, que a falta era minha, pois estava nessa época sobrecarregada de trabalhos urgentes que me absorviam a actividade.

Durante os meses de junho e julho de 1923, o primeiro ditado do drama foi executado; ele tão-só constituía, entretanto, uma espécie de rascunho que veio a ser posto em causa mais tarde pelo próprio. Não quero com isso dizer que ele tenha depois refeito a ordem das cenas, pois esta ficou tal qual era, mas os caracteres dos personagens foram, ao contrário, sensivelmente reformados.

Depois, no mês de agosto, pude consagrar, regularmente, três ou quatro sessões por semana a Oscar Wilde: isso se dava habitualmente das 11 às 13 horas.

O sistema de trabalho que Wilde tinha adoptado consistia num retorno contínuo para trás. Quando ele tinha ditado um acto de sua comédia, a minha auxiliar, srta. Cummins, devia relê-lo em alta voz e, Oscar Wilde a interrompia a todo o instante, sugerindo correcções que sempre constituíam uma melhoria sensível sobre o que ditara anteriormente. A sua diligência era extraordinária, ela excedia muito a minha força de trabalho. Ele refazia, aperfeiçoava, intercalava um período com cuidados tão meticulosos que se tornava penoso continuar, tal o sentimento pesado de monotonia que, transformando-se em sonolência, me causava.

Tinha resolvido nunca reler o que tinha sido transmitido mediunicamente, a fim de evitar que a minha mente subconsciente pudesse exercer certa influência sobre o ditado em curso; pensava então que não havia nessa comédia nenhuma ideia coerente e me sentiria desencorajada se a srta. Cummins não estivesse aí para garantir-me, de tempos a tempos, que o tema se desenvolvia, diariamente, de maneira precisa e interessante.

A obra dramática foi intitulada pelo seu autor: Uma comédia extraordinária. Se ela devesse ser representada, duvido que os directores de teatro consentissem em conservar tal título, mas creio que Oscar Wilde não veria com bons olhos a modificação.

Oscar Wilde explicou que se propusera delinear na sua comédia a continuidade inalterada da existência humana – nos seus alvos e nas suas aspirações – assim também antes como depois da crise da morte e, que, por consequência, o último acto ia desenrolar-se no mundo espiritual. Quando ele exprimiu esta proposta, voltou-me o desânimo, sabendo eu bem que nada é tão árduo em literatura como inserir cenas do além numa comédia. Quando se quer aí introduzir este elemento, vai-se, inevitavelmente, ao encontro do insucesso. Tais eram as minhas preocupações quando Oscar Wilde anunciou que o último acto de sua comédia se devia desenrolar nas esferas espirituais...

Quando o drama foi terminado, li-o para uma das minhas amigas, que possui grande experiência de teatro. Logo que cheguei ao meio do segundo acto, ela me interrompeu, notando: “Tudo isso é tão mundano que o autor jamais chegará a passar a ponte que separa o visível do invisível. Eis uma tarefa impossível!”

Terminada, porém, a leitura, a minha amiga teve exclamações de surpresa e admiração pela genialidade com a qual o autor tinha sabido vencer o obstáculo. Nenhuma solução de continuidade no desenvolvimento do drama, embora os dois primeiros actos sejam de um género ligeiro, análogo à comédia do mesmo autor: A importância de ser sério.

O drama termina com uma nota consoladora: o amor pode, ou não, existir no além tal como o conhecemos aqui. Nas esferas espirituais, o amor-paixão não deixa de existir, o amor se manifesta na pesquisa da “alma gémea”, complemento de nós mesmos. Nós nos completamos: tal é a aspiração suprema de todo o espírito; quando o fim é atingido, os espíritos casados vêem nítida e luminosamente o caminho ascensional que lhes resta a percorrer, unidos um ao outro.” (Light, 1925, pág. 524).

Tal é a interessante e instrutiva descrição feita pela sra. Hester Dowden a respeito da maneira pela qual foi ditada a comédia de Oscar Wilde. Para completá-la, vou reproduzir uma alínea de um artigo que foi consagrado ao memorável acontecimento pelo Sr. David Gow, director da revista Light. Escreve ele:

“Notarei de passagem que assisti, pessoalmente, ao ditado mediúnico do drama de Oscar Wilde durante o qual o autor morto ocupou a médium e a sua secretária por várias semanas consecutivas, corrigindo, refazendo, suprimindo, dando tantas disposições e ordens que tornava muito penosa a existência das duas damas. Tudo se desenrolou como se o autor invisível, mas absolutamente real, se metesse febrilmente ao trabalho, desenvolvendo alternativamente um temperamento irritável, choramingador, brilhante cínico e, algumas vezes dócil e simpático. A comédia, que veio assim à luz, parece uma obra de arte extraordinária, mas é preciso notar a esse respeito que um director de teatro a quem ela foi oferecida para ser representada, depois de a ter lido, relido e pesado, declarou que ele renunciava a pô-la em cena, não porque não fosse obra de Oscar Wilde, mas porque era dele mesmo! Ele queria, com estas palavras, fazer alusão ao assunto e à técnica do desenvolvimento das comédias de Oscar Wilde, que julgava, para o futuro, fora de moda.” (Light, 1828, pág. 18).

Essa declaração de um director de teatro é verdadeiramente preciosa e muito significativa.

Resumindo o que se acaba de ler e concluindo, noto que, sob o ponto de vista teórico, todas as circunstâncias que acabo de transmitir tomam, cumulativamente, valor enorme em favor da interpretação espírita do caso de que nos ocupamos. Os que leram a comédia póstuma de Oscar Wilde são acordes em afirmar que ela constitui uma obra de arte magistralmente orientada e que é uma reprodução maravilhosa do estilo, da forma, da técnica teatral que caracterizavam, no seu conjunto, um só autor: Oscar Wilde, quando vivo. E se isso não bastar para identificar uma personalidade literária, é preciso ajuntar aí o incidente tão eloquente de um director de teatro ter declarado que a comédia em questão não poderia ser representada com sucesso pelo facto do seu assunto e seu desenvolvimento terem envelhecido meio século. Não se poderia imaginar confirmação mais eficaz em favor da identidade pessoal da entidade comunicante, pois que a reputação de Oscar Wilde atingira o seu apogeu há meio século e os dramas escritos por ele, quando vivo, apresentam todos os mesmos defeitos assinalados pelo director do teatro, ao mesmo tempo que todas as grandes qualidades literárias e as idiossincrasias psíquicas muito especiais de que acabamos de nos ocupar.

Agora, voltando ao que antes fiz notar, lembro que Oscar Wilde tinha, antecipadamente, dado todas as provas de identificação pessoal que se pode razoavelmente exigir de um morto que se comunique. Recordo haver feito notar que a única prova que ele poderia fornecer ainda seria a de demonstrar aos vivos que a sua intelectualidade, o seu temperamento de autor, a sua virtuosidade incomparável de cinzelador de frases e de artista apaixonado das palavras permaneceram intactas depois da morte do corpo. Ora, ele deu também esta prova última, que reveste valor probante superior a qualquer outro, embora não se possa passar pelos outros para atingir a demonstração experimental, sobre a base dos factos, da sobrevivência de uma individualidade pensante.

Noto, enfim, que o valor teórico desta última “prova literária” é a tal ponto eficaz que triunfa mesmo sobre uma objecção apoiada numa hipótese metafísica fundada em memórias de amplidão infinita. Faço alusão à velha hipótese, agora novamente em moda, formulada com um fim puramente especulativo, pelo professor William James, segundo a qual não se poderia teoricamente excluir a possibilidade da existência, no universo, de um “reservatório cósmico de memórias individuais”, do qual os médiuns extrairiam as indicações verídicas relativamente às personificações de defuntos desconhecidos de todos. Não é agora o momento de discutir essa hipótese, que tenho longamente analisado e refutado, mantendo-me no terreno dos factos, numa monografia especial; noto somente aqui que, mesmo concedendo-se à hipótese em questão a extensão incomensurável que lhe conferem os seus defensores, ela não chegaria mesmo a fornecer provas de identificação espírita análogas às que venho a relatar, pois que não se referem ao que se deveria encontrar num “reservatório cósmico de memórias individuais”. É claro, com efeito, que, no nosso caso, não se trata de lembranças de espécie alguma, mas de um trespassado que se manifesta ditando uma obra literária, isto é, executando uma acção que se desenrola no presente e, que não se poderia então encontrar em parte alguma, em estado de vibração latente.

Repito, então, que a circunstância de ter chegado a triunfar também da hipótese metafísica do “reservatório cósmico de memórias individuais” constitui uma circunstância teoricamente muito importante. De facto, ela equivale a afirmar que nenhuma hipótese não-espiritualista chegará jamais a explicar, no seu conjunto, o memorável caso de identificação espírita do qual o falecido escritor Oscar Wilde foi protagonista.

Inútil é acrescentar que isto serve para fazer ressaltar o valor teórico muito especial que podem revestir os casos em geral de comunicações psicográficas na base de “ensaios literários”, ditados por entidades espirituais que afirmam ser autores conhecidos, isto é, “ensaios literários” susceptíveis de serem submetidos aos processos de análise comparada.

/...

(i) Bozzano refere-se ao artigo Le retour d’Oscar Wilde, incluído na obra Cinco Excepcionais Casos de Identificação de Espíritos (Publicações Lachâtre), sob o título “Surpreendente Caso de Identificação Espírita”. (N.E.)


Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo VI, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

domingo, 12 de novembro de 2023

belo maio | bela como os lírios ~


XVI

Jeanne d'Arc e o ideal céltico ~

(I de IV)

Ó terra de granito esmaltada de carvalhos!

Uma noite, o Espírito de J. Michelet, precedendo e anunciando o de Jeanne d'Arc, dirigiu-nos estas palavras, no decorrer de uma das nossas reuniões de estudo:

“Jeanne adquiriu nas suas existências anteriores o sentimento dos grandes deveres que teria de cumprir. Encontrámo-nos muitas vezes nesses longínquos tempos. O laço que desde então se estabeleceu entre nós a atrai. Ela vos inspirará, do mesmo modo pelo qual me inspirou a mim. O meu livro não foi mais do que um eco da sua paixão pela França e pela verdade. Vai agora descer, para vos transmitir uma parcela da verdade divina.”

Jeanne, como todas as almas que connosco percorrem o ciclo imenso da evolução, contou numerosas existências na Terra. Algumas foram brilhantes, vividas sobre os degraus de um trono; outras obscuras; todas, porém, de resultados fecundos para o seu próprio adiantamento e benéficas para os seus semelhantes.

As primeiras transcorreram durante o período céltico, no país de Armor. Lá é que a sua personalidade se impregnou dessa natureza particular, feita de ideal, de intrepidez e de mística poesia, que a caracteriza no décimo quinto século.

Desde a infância em Domremy, aprazia-lhe frequentar os lugares onde se celebraram os ritos druídicos: os bosques de carvalho, testemunhas das antigas evocações das almas, as fontes sagradas, os monumentos de pedras brutas, esparsas aqui e ali, nos arredores da aldeia. Gostava de adentrar-se na espessa floresta, para lhe escutar as harmonias, quando, sacudindo-a, o vento a fazia vibrar qual harpa gigantesca. Com o olhar de vidente, distinguia, por sob as abóbadas verdejantes, as misteriosas sombras dos que presidiam àquelas evocações e aos sacrifícios. Entre os seus guias invisíveis, poder-se-ia deparar com os Espíritos protectores das Gálias, os mesmos que em todas as eras prestaram assistência aos filhos de Artur e de Merlin e dão aos que lutam por uma causa nobre a vontade e o amor que conduzem à vitória.

Feneceu nas ramagens o visco, nos lares apagou-se a chama sagrada; mas, no coração de Jeanne, vívida estará sempre a fé nas vidas inextinguíveis e nos mundos superiores. Os historiadores, que lhe souberam analisar e compreender o carácter, reconheceram nele os influxos de uma dupla corrente – céltica e cristã, cuja origem ela própria nos indicará em breve. Henri Martin, notadamente, a acentuou nas páginas de sua História. Em primeiro lugar, ele assinala, nos seguintes termos, as lembranças deixadas pelos Celtas, ainda vivas no tempo da heroína:

“Próximo da casa de Jeanne d'Arc passava uma vereda que, atravessando tufos de groselheiras, subia o outeiro a cujo cimo, coberto de mata, era dado o nome de Bois Chesnu. A meia encosta, debaixo de grande faia isolada, borbotava uma fonte, objecto de culto tradicional. Nas suas águas claras, desde tempos imemoráveis, buscavam a cura os enfermos que a febre atormentava... Seres misteriosos, anteriores entre nós ao cristianismo e que os camponeses nunca assentiram em confundir com os espíritos infernais da legenda cristã, os génios das águas, das pedras e dos bosques, as senhoras fadasfrequentavam a cristalina fonte e a faia secular, que se chamava o Belo Maio. Ao entrar a primavera, vinham as donzelas dançar em baixo da árvore de Maio, “bela como os lírios” e pendurar-lhe nos galhos, em honra das fadas Celtas, grinaldas que desapareciam durante a noite, segundo era voz geral”. (i)

Descreve em seguida as impressões da virgem Lorena:

“As duas grandes correntes que se haviam juntado para dar nascimento à poesia cavalheiresca, a do sentimento céltico e a do sentimento cristão, misturaram-se de novo para formar essa alma predestinada. A jovem pastora umas vezes sonha ao pé da árvore de Maio, ou sob os robles, doutas, passa horas esquecidas no fundo da pequenina igreja, em êxtase diante das santas imagens que resplandecem nas vidraças... Quanto às fadas, ela nunca as viu ao luar, descrevendo os círculos de suas danças, em volta do Belo Maio. A sua madrinha, porém, outrora as encontrara e Jeanne julga perceber de quando em quando formas imprecisas, nos vapores do crepúsculo: gemem vozes à tarde nos ramos dos carvalhos; as fadas já não dançam – choram: é o lamento da velha Gália que expira!”. (ii)

Finalmente, falando do processo de Ruão, diz ainda o mesmo autor: (iii)

“Jeanne soube opor o livre génio gaulês ao clero romano, que intentava pronunciar-se em definitivo sobre a existência da França. Por seu intermédio, o génio místico reivindica os direitos da personalidade humana, com a mesma força que o génio filosófico; a mesma alma, a grande alma da Gália, desabrochada no Santuário do Carvalho, brota igualmente no livre-arbítrio de Lérins e do Paracleto, na soberana independência da inspiração de Jeanne d'Arc e no Eu de Descartes.”

A própria Jeanne, confirmando esses modos de ver, assim se exprimia numa mensagem que ditou em Paris, no ano de 1898: (iv)

“Remontemos, por instantes, ao curso das idades, a fim de aprenderdes o caminho que percorri, preparando-me para transpor a etapa dolorosa que conheceis.

“Múltiplas foram as existências que contribuíram para o meu progresso espiritual. Decorreram na velha Armorica, debaixo do zimbório dos grandes robles seculares, cobertos do visco sagrado. Foi lá que, lentamente, me encaminhei para o estudo das leis do Espírito e para o culto da pátria.

“Oh! entre todas, benditas as horas em que o bardo, com os seus cantares alegres, nos fazia palpitar os corações e nos abria os olhos para a luz, permitindo-nos entrever as maravilhas do infinito! Ensinava-nos então que o passar da morte à ressurreição gloriosa do Espírito, no espaço, representa uma simples transformação, sombria, ou luminosa, conforme o homem se conduziu nesse mundo: ou seguindo a estrada da justiça e do amor, ou deixando-se dominar pelas forças avassaladoras da matéria. Fazia-nos compreender as leis da solidariedade e da abnegação; instruía-nos sobre o que era a prece, dizendo: “Orar é triunfar; a prece é o motor de que o pensamento se serve, para estimular as faculdades do Espírito, as quais, no espaço, constituem a sua ferramenta. A prece é o ímã poderoso do qual se desprende o fluido magnético espiritual, que, não só pode aliviar e curar, como também descerra ao Espírito horizontes sem fim e lhe dá azo de satisfazer ao desejo de conhecer e aproximar-se continuamente da fonte divina, donde emanam todas as coisas. A prece é o fio condutor que põe a criatura em relação com o Criador e com os seus missionários.”

“Um dia, compenetrada dessas verdades, adormeci e tive a seguinte visão: Assisti, primeiramente, a muitos combates, oh! impossível de serem evitados por efeito do livre-arbítrio de cada um; mas, sobretudo, por motivo do amor ao ouro e à dominação, os dois flagelos da Humanidade. Depois, descortinei claramente a grandeza futura da França e o seu papel de civilizadora no porvir. Deliberei consagrar-me muito particularmente a essa obra.

“Logo me vi rodeada de uma multidão simpática, que na maior parte chorava e deplorava a minha perda. Em seguida, o veneno, o cadafalso, a fogueira passam vagarosamente por diante de mim. Senti as labaredas devorando-me as carnes e desmaiei!... Vozes amigas chamaram-me à vida e me disseram: “Espera! A falange celeste que tem por missão velar sobre esse globo te escolheu para secundá-la nos seus trabalhos e assim acelerar o teu progresso espiritual. Mortifica a tua carne, a fim de que as suas leis não possam ser obstáculo ao teu Espírito. A provação será curta, porém rude. Ora e a força te será dada: colherás da tua obra todas as bênçãos nos tempos vindouros. Assegurarás a vitória da fé arrazoada contra o erro e a superstição. Prepara-te para fazer em tudo a vontade do Senhor, a fim de que, chegada a ocasião, tenhas adquirido bastante energia moral para resistir aos homens e obedecer a Deus! Seguindo estes conselhos, os mensageiros do céu virão a ti, ouvirás as suas vozes, eles te guiarão e aconselharão; podes ficar tranquila, não te hão de abandonar!”

“Como descrever o supremo anelo que se apoderou de mim! Senti o aguilhão do amor penetrar todo o meu ser. Já não tive outro objectivo que não fosse trabalhar pela libertação espiritual deste país abençoado, em que acabava de saborear o pão da vida e de beber pela taça dos fortes. Essa visão foi para a minha alma um celestial viático.”

/... 
(i) Henri Martin – Histoire de France, t. VI, páginas 138 e 193.
(ii) Ibidem, pág. 140.
(iii) Ibidem, t. VI, pág. 302.
(iv) Ver: Revue Seientifique et Morale du Spiritisme, Janeiro de 1898.


Léon Denis, Jeanne d’Arc Médium, Segunda Parte – As missões de Jeanne d'Arc, XVI Jeanne d’Arc e o ideal céltico (I de IV) 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L'Annonciation, óleo sobre painel (1901), de Edgard Maxence