sábado, 30 de novembro de 2013

o sentido da vida ~

Amar a Deus

Não somente um ilustre pastor protestante nos fez certa vez essa pergunta, como também o reverendo Otoniel Motta a explanou, do ponto de vista protestante, no seu livrinho Temas Espirituais, afirmando que os espíritas não podem amar a Deus, uma vez que não lhe atribuem nenhuma espécie de forma. Tivemos já a oportunidade de lembrar a ambos um outro mandamento bíblico, aliás tão invocado pelos presentes, o de que não devemos adorar imagens. Esse mandamento foi renovado por Jesus, quando disse que devíamos adorar a Deus em espírito e verdade. Analisando ambos, e tendo em vista o que dissemos no capítulo anterior, compreenderemos que o Espiritismo vem renovar também a compreensão desses mandamentos, abrindo a inteligência do homem para a compreensão de Deus em espírito e verdade, única maneira de ele o adorar independentemente de qualquer imagem.

De um ponto de vista material, sabemos que há imagens de madeira, de barro, de metal e de outros elementos. Entretanto, do ponto de vista espiritual, devíamos saber que há também outras espécies de imagens, e muito especialmente as imagens mentais. Por acaso podemos admitir que a adoração de uma imagem mental seja menos condenável do que a das imagens materiais? Podemos admitir que não seja idolatria a adoração de ídolos mentais, forjados pelo homem à sua imagem e semelhança?

Contra a idolatria mental, tão perniciosa quanto a material, se ergue o Espiritismo. Essa idolatria levou Antero de Quental a escrever o célebre soneto em que considera Deus como um ser criado pelo homem, à imagem e semelhança deste. Levou também Marx e Engels a considerarem o fenómeno Deus como a simples projecção do homem a um plano superior, no anseio natural de querer superar as circunstâncias que o dominam e escravizam, na Terra. Graças à idolatria mental, os filósofos materialistas conseguiram desferir profundos golpes na crença de muitos homens acostumados a pensar. E multidões de crentes, por sua vez, no mundo inteiro, desviaram o sentimento de amor que deviam dedicar a Deus, para o simples ídolo mental que a religião lhes oferecia. Com isso, tornaram morta a sua própria fé, tiraram-lhe todas as possibilidades de expansão dinâmica, reduzindo-a a uma expressão inferior de puro fetichismo.

O Espiritismo apresenta-nos a seguinte constituição do Universo:

“Deus, espírito e matéria constituem o princípio de tudo o que existe, a trindade universal. Mas, ao elemento material, temos de juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário entre o espírito e a matéria...”

Como vemos, o Espiritismo é profundamente deísta, considerando Deus como elemento constitutivo e básico do Universo. O Deus do Espiritismo, entretanto, e por isso mesmo, não pode ser reduzido a uma simples imagem mental de forma humana.

Allan Kardec nos apresenta Deus, no O Livro dos Espíritos, como eterno, imutável, imaterial, único, omnipotente, soberanamente justo e bom. São atributos que as religiões também reconhecem no Criador, e que por si mesmos contradizem a forma humana que lhe dão. Negando-lhe essa forma ou qualquer outra que lhe quisermos dar, o Espiritismo nos coloca em face, tão-somente, dos atributos de Deus. É, pois, pelos seus atributos, que o devemos amar. E quem não percebe que, dessa maneira, o Espiritismo nos desvia da idolatria, para nos encaminhar ao amor de Deus em espírito e verdade?

Do ponto de vista espírita, aliás, compreendemos a lição do amar a Deus sobre todas as coisas, lição que, usando a faculdade de pensar, não poderíamos compreender, do ponto de vista idólatra. Mesmo porque seria um contra-senso colocarmos o nosso amor por uma imagem qualquer, fosse ela mental ou não, acima do amor que devemos aos nossos entes mais queridos. Só um desvio mental, uma anomalia psíquica, nos levaria a tal coisa.

O Espiritismo nos ensina que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, segundo a lição dos textos sagrados, e nos mostra, aliás, que é absolutamente indispensável fazermos isso, se quisermos cumprir a nossa tarefa terrena, alcançar o objectivo supremo da nossa encarnação neste planeta expiatório. E isso pelo simples motivo de que sendo Deus eterno, imutável e imaterial, devemos colocar o nosso interesse acima das coisas transitórias, mutáveis e materiais, que nos cercam e nos prendem à existência terrena. Sendo Deus único e omnipotente, nele devemos confiar e esperar, e não em outros seres e outras coisas, por mais belas e fascinantes que elas nos sejam apresentadas.

Mas o que é mais importante para todos nós, pequenos bichos da terra, tão pequenos, como dizia Camões, é que, sendo Deus soberano, justo e bom, é evidentemente a suprema justiça e a suprema bondade, pelo que devemos amar a justiça e a bondade acima de toda a injustiça e de toda a maldade. Amando a Deus sobre todas as coisas, através daquilo que de Deus podemos conhecer, que são os seus atributos, seremos capazes de realmente colocar Deus acima de tudo e de todos.

Assim compreendemos também o ensinamento de Cristo, de que devemos abandonar até mesmo os nossos pais, a nossa mulher e os nossos filhos, se o quisermos seguir. Pois o homem que ama a Deus, em espírito e verdade, sobre todas as coisas, está sempre com a verdade, a justiça, o amor, a bondade, a pureza, contra mesmo os seus próprios interesses da vida material. Coloca o seu amor a Deus acima das vantagens que pode auferir na vida, sempre que prefere a verdade à mentira, por mais fascinantes que sejam as promessas desta. E não terá dúvidas em romper com os próprios pais, a mulher e os filhos, quando estes ficarem com a mentira ou a injustiça, pois ele, fiel ao seu amor a Deus, preferirá sempre a justiça e a verdade.

Neste caso, porém, até o materialista não poderia amar a Deus mais eficientemente do que muitos religiosos, e de maneira mais real?

Já nos dirigiram, certa vez, essa pergunta, a que vamos responder.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Amar a Deus 1º fragmento da obra.
(imagem: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

o grande enigma ~

Ao Leitor

Nas horas pesadas da vida, nos dias de tristeza e de acabrunhamento, leitor, abre este livro! Eco das vozes do Alto, ele te dará coragem; inspirar-te-á a paciência e a submissão às leis eternas!

Onde e como pensei em escrevê-lo? Numa tarde de inverno, tarde de passeio na costa azulada da Provença.

Deitava-se o Sol sobre o mar pacífico. O seus raios de ouro, resvalando sobre a vaga adormecida, acendiam tintas ardentes sobre o cimo das rochas e dos promontórios, enquanto o delgado crescente lunar subia no céu sem nuvens. Fazia-se grande silêncio, envolvendo todas as coisas. Solitário, um sino longínquo, lentamente, soava o ângelus.

Pensativo, eu ouvia os ruídos abafados, os rumores apenas perceptíveis das cidades de inverno em festa e as vozes que cantavam na minha alma.

Pensava na indiferença dos homens que se inebriam de prazeres para melhor esquecer o fim da vida, os seus imperiosos deveres, as suas pesadas responsabilidades.

O mar balouçante, o Espaço que, pouco a pouco, se constelava de estrelas, os odores penetrantes dos mirtos e dos pinheiros, as harmonias longínquas na calma da tarde, tudo contribuía para derramar, em mim e em torno de mim, um encanto subtil, íntimo e profundo.

E a voz me disse:

Publica um livro que nós te inspiraremos, um livrinho que resuma tudo o que a Alma humana deve conhecer para se orientar no seu caminho;

publica um livro que demonstre a todos não ser a vida uma coisa vã de que se possa fazer uso leviano, e sim uma luta pela conquista do Céu, uma obra elevada e grave de edificação, de aperfeiçoamento, regida por leis augustas e equitativas, acima das quais paira a eterna Justiça, amenizada pelo Amor.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Ao Leitor 1 de 3, 1º fragmento da obra.
(imagem: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~

Origem dos Celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico ~

Nos primeiros vislumbres da História, encontramos os celtas estabelecidos em boa parte da Europa.

De onde vieram? Qual foi o lugar de sua origem? Certos historiadores colocam o berço da sua raça nas montanhas de Taurus, no centro da Ásia Menor, nas vizinhanças dos caldeus. Quando a população aumentou, eles teriam transposto o Pont-Euxin (no Mar Negro) e penetrado até à parte central da Europa. Mas, nos nossos dias, essa teoria parece ter caído em desuso, ocorrendo o mesmo com a hipótese dos arianos.

Camille Jullian, do Colégio de França, na sua obra mais recente sobre a Histoire de la Gaule, contenta-se em fixar entre 600 e 800 a.C. a chegada à Gália dos “kymris”, o ramo mais moderno dos celtas. Eles vinham, crê-se, da foz do Rio Elba e das costas da Jutlândia, enxotados por maremotos, o que os obrigou a emigrar em direcção ao sul.

Chegados à Gália, encontraram um ramo mais antigo dos celtas, os gaélicos, que ali se achavam fixados desde há muito tempo e que eram de estatura menor, geralmente morenos, enquanto que os “kymris” eram altos e louros. Essas diferenças são ainda sensíveis na Armorique, onde as costas do oceano, no Morbihan, são povoadas de homens pequenos e morenos, misturados com elementos estrangeiros, atlantes ou bascos, que se fundiram com as populações primitivas. Nas Costas do Norte (Côtes-du-Nord) ou na Mancha os habitantes eram de estatura mais alta, aos quais se vieram juntar os celta-bretões expulsos da grande ilha pelas invasões dos anglo-saxões.

Os considerandos de C. Jullian se acham confirmados pelo parentesco das línguas célticas e germânicas, semelhantes pela sua estrutura, pelos sons guturais, abuso de letras duras como o K, o W, etc.

No meio das correntes migratórias, que se cruzam e se entrecruzam na noite da pré-história, a Ciência acha um processo mais seguro nos estudos linguísticos para reconstituir a filiação das raças humanas. (i)

(i) D’Arbois de Jubainville, no seu curso do Colégio de França, por vezes, se dedicava a uma demonstração no quadro-negro a fim de estabelecer o grau de parentesco das línguas indo-europeias. Ele pegava uma palavra que traduzia em gaélico, em alemão, em russo, em sânscrito, em grego, em latim, e descobria que, sob aquelas diferentes traduções, essa palavra tinha uma mesma raiz.

Daremos apenas um resumo da história dos gauleses. Sabe-se que os nossos antepassados, durante séculos, encheram o mundo com o barulho das suas armas. Ávidos de aventuras, de glórias e de combates, eles não podiam resignar-se a uma vida apagada e tranquila e iam para a morte como a uma festa, tal era a sua certeza do Além.

Conhecem-se as suas numerosas incursões na Itália, na Espanha, na Alemanha e até no Oriente. Os gauleses invadiam regiões vizinhas e, pela lei de choque e retorno, sofreram invasões e foram reduzidos à impotência.

A alma da Gália encontra-se nas instituições druídicas e bárdicas. Os druidas não eram somente os sacerdotes, mas também os filósofos, os sábios, os educadores da juventude. Os ovates presidiam as cerimónias do culto e os bardos consagravam-se à poesia e à música.

Mais adiante exporemos o que era a obra e o verdadeiro carácter do Druidismo.

No início da nossa era, os romanos já tinham penetrado na Gália, escalado o vale do Rhône e, após terem ocupado Lyon, avançaram até ao coração do país.

Os gauleses resistiram com energia e provocaram, por vezes, rudes reveses aos seus inimigos; entretanto, eles estavam divididos e não ofereciam, amiúde, mais do que resistências locais. A sua coragem, levada até à temeridade, e o seu desprezo pelas astúcias guerreiras e pela morte tornavam-se uma desvantagem para eles.

Combatiam em desordem, nus até à cintura, com armas mal preparadas, contra adversários cobertos de ferro, astuciosos e desleais, fortemente disciplinados e abastecidos de materiais considerável para a época.

Vercingétorix, o grande chefe arverno, sustentado pelo poderio dos druidas, conseguiu, certa vez, sublevar toda a Gália contra César, e uma luta grandiosa teve lugar. (ii) Educado pelos bardos, Vercingétorix tinha em parte as qualidades que se impõem à admiração dos homens e os levam à obediência e ao respeito. O seu amor pela Gália aumentava com o progresso crescente dos exércitos romanos.

(ii) Arverno – indivíduo dos arvernos (formação latina “arvernil”), povo da Gália Central ou Gália Céltica que habitava a região montanhosa (Puy de Dôme, Mont-Dore e Cantal) hoje denominada Auvergne, uma antiga província francesa. (Nota da Revisora. As suas notas subsequentes conterão apenas as iniciais N.R.)

Que diferença entre Vercingétorix e César! O herói gaulês, cheio de fé na potência invisível que governa os mundos, sustentado pela sua crença nas vidas futuras, tinha por regra de conduta o dever, por ideal a grandeza e a liberdade de seu país.

César, profundamente céptico, só acreditava na fortuna. Tudo nesse homem era astúcia e cálculo; uma sede intensa de dominação o devorava. Após uma vida de excessos, crivado de dívidas, ele veio à Gália procurar na guerra os meios de elevar os seus créditos. Ele cobiçava de preferência as cidades ricas e, após tê-las entregues à pilhagem, viam-se longos comboios encaminharem-se para a Itália, levando ouro gaulês aos credores de César.

É necessário lembrar que, em nome do patriotismo, César perjurou, negou as liberdades romanas e oprimiu o seu país. Certamente não negaremos o génio político e militar de César, mas devemos, na verdade, lembrar que esse génio era marcado por vícios vergonhosos.

E é nos escritos desse inimigo da Gália que se vai sempre procurar a verdade histórica! É nos seus Comentários, escritos sob a inspiração do ódio, com a intenção evidente de se realçar aos olhos dos seus concidadãos, que se estuda a história da guerra das Gálias. Mas, dois autores romanos, Pollion e Suetônio, confessam que essa obra está cheia de inexactidões, de erros voluntários.

Em resumo, os gauleses, ardentes, entusiastas, impressionáveis, tinham-se beneficiado da corrente céltica, dessa grande corrente, veículo das altas inspirações, que, desde os primeiros tempos, tinham influenciado todo o nordeste da Europa. Eles foram impregnados pelos eflúvios magnéticos do solo, desses elementos que, em todas as regiões da Terra, caracterizam e diferenciam as raças humanas. (iii)

(iii) Ver, no capítulo XIII, no fim desta obra, as mensagens números 5 e 6, de Allan Kardec.

Mas o seu ardor juvenil, a sua paixão pelas armas e pelos combates os tinham levado muito longe, e as perturbações causadas à ordem e à marcha regular das coisas retornaram pesadamente sobre eles, em virtude dessa lei soberana que reconduz aos indivíduos, como aos povos, todas as consequências das obras que eles executaram. Porque tudo o que fazemos pesa sobre nós, através dos tempos, na forma de chuvas ou de raios, de alegrias ou de dores, e a dor não é o agente menos eficaz da educação das almas e da evolução das sociedades.

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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Nas garras do pensamento crítico ~

Introdução |

A história do conhecimento é uma sequência de erros, equívocos e frustrações. É este o motivo pelo qual Sócrates costumava explicar: “Só sei que nada sei, e que a filosofia começa quando começamos a duvidar.”

Outra coisa não tem feito o homem, desde as cavernas da era pré-lacustre, do que errar para aprender. A história da civilização não é, portanto, somente a da luta de classes, segundo o materialismo dialéctico, mas a própria história do erro. Como, entretanto, do erro, do equívoco, da frustração, nasceram sempre e em todos os tempos o conhecimento e a sabedoria, mais uma vez se comprova, no terreno do pensamento, o processo dialéctico da natureza, que do pântano arranca os lírios, da larva a borboleta, do pecador o santo, do caos da sociedade capitalista os contornos do socialismo.

Quando Demócrito firmou o princípio atómico da constituição do mundo, cometeu toda uma série de erros, atribuindo à suposta partícula indivisível a diversidade de peso no vácuo, e dotando-a de ganchos para a composição da matéria. Não obstante, havia descoberto, mais de trezentos anos antes de Cristo, o segredo da constituição do mundo, que a física experimental só encontraria vinte e quatro séculos depois.

Ao formular a base dialéctica da sua filosofia, Hegel unificou o “ser” e o “pensar” de Kant, mas caiu no equívoco da “ideia universal”, espécie de encarnação filosófica do caprichoso deus antropomórfico das religiões. Feuerbach teve a coragem de fazer a filosofia descer do empíreo hegeliano à terra, para ligá-la às ciências naturais, mas caiu na frustração da “antropologia”, novamente separando o “ser” do “pensar” e transformando este último numa simples função da matéria. Não obstante, apoiados na dialéctica de Hegel e no materialismo de Feuerbach, Marx e Engels criaram o materialismo dialéctico, dando novo impulso ao pensamento filosófico, abrindo novas possibilidades à investigação dos processos históricos e sociais, oferecendo base científica às aspirações do socialismo empírico.

Foram os génios transformadores do século XIX, tornando-se credores de todos os que – e são a humanidade – desfrutam hoje da possibilidade de uma caminhada mais rápida nos rumos da civilização socialista. Stanley Jones, o grande missionário protestante, conhecido como “o cavaleiro do Reino de Deus”, observa, em Cristo e o Comunismo, que Marx impulsiona a história, limpando o templo da praga dos vendilhões, à semelhança do chicote do rabino, que ainda hoje espanta os cristãos comodistas.

Entretanto, a filosofia que Marx e Engels ofereceram ao mundo, como a mais alta expressão do conhecimento, não passa de uma forma híbrida, que se travestiu de síntese. A tese de Hegel e a antítese de Feuerbach não se conjugam na moderna escolástica do materialismo dialéctico, pois ali estão, sem dúvida, forçadas pela violência gráfica, duas palavras contraditórias e irredutíveis, que não encontram caminho para o desenvolvimento da síntese. O materialismo é a porta fechada, diante da qual se interrompe, abruptamente, o processo dialéctico de Hegel.

Marx condenou a “incapacidade burguesa” de Proudhon para compreender a lei fundamental da dialéctica hegeliana, a “unidade dos contrários”, e chamou-o de falsificador, por ter feito a escolha indébita de um dos contrários, a propriedade “boa”, rejeitando dessa maneira a própria dialéctica. Mas, em compensação – rejubile-se o Espírito de Proudhon! –, ele e Engels não fizeram outra coisa. A luta dos contrários foi simplesmente frustrada na elaboração da dialéctica moderna, que se formou pela mesma e indébita escolha de um dos contrários. O materialismo dialéctico considerou “mau” o princípio espiritual, escolhendo como “bom” apenas o material. Por isso mesmo, não obstante a enorme contribuição que trouxe à marcha do conhecimento, não é mais do que uma tentativa de síntese.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – Introdução, 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades


Introdução '

Apenas um real e positivo idealismo pode dar vigor e energia à natureza humana.

Apenas um ideal que seja capaz de sobrepor-se à dura realidade do dia-a-dia pode ajudar o homem a lutar contra aquilo que está destruindo o verdadeiro sentido da vida.

Este ideal está na beleza, na justiça e no bem, mas, principalmente, na poesia que simultaneamente pode vincular o homem tanto ao humano quanto ao transcendente.

O homem como Ideia poderá olhar de frente e com segurança o mundo material e o mistério do universo; mas, considerado como um reflexo dos fenómenos físicos, o homem será um ser sem liberdade e sujeito ao mecanismo do meio em que está situado. Porém, a vontade humana será real apenas mediante a auto-liberdade do ser. O Ideal é como o vapor que pode movimentar um grande volume de ferro, razão pela qual o homem não será o verdadeiro motor da história enquanto for considerado como um reflexo do meio em que vive. O homem, a moral e a sociedade serão realidades criadoras apenas quando a vontade puder gerar a sua própria liberdade sobre a base de um ideal inspirado na verdade.

Se o homem não for uma ideia soberana e criadora será um ser sem dignidade. Será apenas um mecanismo que acciona as causas dos reflexos circundantes e uma consequência das forças físicas sem nenhuma teleologia moral ou espiritual. A verdade e a justiça não são anuladas por ser o homem uma Ideia. O verdadeiro homem progressista é o que se sustenta pela força da Ideia e, por isso mesmo, pelo Espírito. Os que são capazes de forjar o bem para a humanidade são os que vivem iluminados pela luz que emana da sua própria inteligência. São os que vivem sustentados pelo Ideal porque se sentem a ideia que se sobrepõem às influências opressoras dos fenómenos físicos.

Victor Hugo foi um exemplo do que dissemos. A sua natureza poética não surgiu no seu Ser pelos reflexos do meio ambiente da sua época. Ao contrário, o seu Ser foi poético, idealista e amante da justiça porque esses valores morais estavam no seu espírito e não fora dele. Não se chega a escrever um poema somente com os reflexos materiais que influem sobre a inteligência. Um poema escreve-se quando o espírito possui as condições indispensáveis para dar curso a esse fenómeno poético.

A verdade e a justiça não estarão no homem pela acção reflexa do meio; tais valores éticos surgirão da Ideia que determina o ser espiritual e social do homem. Surgem da consciência, que é onde Victor Hugo falou a Deus e, logo, ao Espírito. O autor de Os Miseráveis foi uma vida que lutou pela Ideia apesar dos mais variados obstáculos sociais que atingiram a sua sensibilidade. Mas não foi um homem que amarrou o seu ideal ao mundo exclusivo da matéria. A sua inteligência penetrou no Além não apenas para ver uma nova imagem das coisas objectivas, mas para descobrir a essência da vida imortal do Espírito.

Victor Hugo sabia que somente se constrói um mundo-novo e melhor se as asas do pensamento não são atropeladas pelas garras da vulgaridade e da indiferença. Por isso é necessário o Ideal, é indispensável a Fé e urge conhecer o sentido da vida, posto que sem uma teleologia espiritual o ser e a existência se apresentam como dois enigmas que desembocam num abismo. Victor Hugo não se rendeu à morte e ao nada. Afirmou pela poesia a vida do Espírito e da Ideia e lutou como um gigante para mostrar ao homem a essência divina e imortal que se esconde na sua carne perecível.

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Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita, Introdução 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Victor Hugo | 1879, retratado por Léon Bonnat)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O Espiritismo na Arte ~

Parte I

(Conceitos de arte. Espiritismo, fonte de inspiração. Materialismo, esterilizador da arte)

|Janeiro de 1922|

A beleza é um dos atributos divinos. Deus pôs nos seres e nas coisas esse encanto misterioso que nos atrai, nos seduz, nos cativa e enche a alma de admiração, às vezes de entusiasmo.

A arte é a busca, o estudo, a manifestação dessa beleza eterna da qual percebemos, aqui na Terra, apenas um reflexo.

Para contemplá-la em todo o seu esplendor, em todo o seu poder, é preciso subir de grau em grau em direcção à fonte de onde ela emana, e isso é uma tarefa difícil para a maioria entre nós. Ainda assim, podemos conhecê-la pelo espectáculo que o Universo oferece aos nossos sentidos e também pelas obras que ela inspira aos homens de génio.

O Espiritismo vem abrir para a arte novas perspectivas, horizontes sem limites. A comunicação que ele estabelece entre os mundos visível e invisível, as indicações fornecidas sobre as condições da vida no Além, a revelação que ele nos traz das leis de harmonia e de beleza que regem o Universo vêm oferecer aos nossos pensadores, aos nossos artistas, motivos inesgotáveis de inspiração.

A observação dos fenómenos de aparições proporciona aos nossos pintores imagens da vida fluídica da qual James Tissot já pôde tirar proveito nas ilustrações da sua Vida de Jesus. Os oradores, os escritores, os poetas neles encontrarão uma fonte fecunda de ideias e de sentimentos. O conhecimento das vidas sucessivas do ser, a sua ascensão dolorosa através dos séculos, o ensino dos espíritos sobre a questão grandiosa do destino, lançaram, sobre toda a História, uma luz inesperada, e proporcionarão ainda aos romancistas, aos poetas, temas de drama, motivos de elevação, todo um conjunto de recursos intelectuais que ultrapassarão em riqueza tudo o que o pensamento pôde conhecer até aqui.

Quando reflectimos em tudo quanto o Espiritismo traz para a humanidade, quando pensamos nos tesouros de consolação e de esperança, na mina inesgotável de arte e de beleza que ele lhe vem oferecer, nós nos sentimos cheios de piedade por esses homens ignorantes ou pérfidos, cujas críticas malévolas não têm outro objectivo senão desacreditar, ridicularizar e mesmo asfixiar a ideia nascente cujos benefícios já são tão sensíveis. Evidentemente, essa ideia, na sua aplicação, necessita de um exame, um controle rigoroso; mas a beleza que emana dessa ideia se revela deslumbrante para todo o pesquisador imparcial, para todo o observador atento.

O materialismo, com o seu sopro dessecante, havia esterilizado a arte. Esta se arrastava no realismo degradante sem poder elevar-se até aos cumes da beleza ideal. O Espiritismo veio dar-lhe um novo estímulo, um impulso mais vivo através das alturas onde ela encontra a fonte fecunda das inspirações e a sublimidade do talento.

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I Conceitos de arte, Espiritismo, fonte de inspiração, Materialismo, esterilizador da arte, 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

domingo, 24 de novembro de 2013

Da sombra do dogma à luz da razão ~

SINAIS DOS TEMPOS

Com a ideia de que a actividade e a cooperação individuais na obra geral da civilização estão limitadas à vida presente, que nada fomos e nada seremos, para que serve ao homem o progresso posterior da humanidade? Que lhe importa que no futuro os povos sejam mais bem governados, mais felizes, mais esclarecidos, melhores uns para os outros? Dado que não deve retirar daí nenhum benefício, não estará este progresso perdido para ele? Para que lhe serve trabalhar para os que vierem depois dele, se nunca os deverá conhecer, se são seres novos que pouco tempo depois entrarão eles mesmos no nada? Sob o império da negação do futuro individual, tudo se limita forçosamente às mesquinhas proporções do momento e da personalidade.

Mas, pelo contrário, que amplitude confere ao pensamento do homem a certeza da perpetuidade do seu ser espiritual! Que de mais racional, de mais grandioso, de mais digno do Criador que esta lei, segundo a qual a vida espiritual e a vida corporal não são mais do que dois modos de existência que se alternam para realização do progresso! Que de mais justo e de mais consolador que a ideia dos mesmos seres a progredirem sem parar, primeiro através das gerações do mesmo mundo e a seguir de mundo em mundo até à perfeição, sem solução de continuidade! Todas as acções têm então uma finalidade, pois, trabalhando para todas, trabalhamos para nós e reciprocamente; para que nem o progresso individual nem o progresso geral sejam alguma vez estéreis; aproveita às gerações e aos indivíduos futuros que não são mais do que as gerações e os indivíduos passados, chegados a um mais elevado grau de evolução.

fraternidade deve ser a pedra angular da nova ordem social; mas não há fraternidade real, sólida e efectiva se não estiver apoiada numa base inabalável; esta base é a fénão a fé nestes ou naqueles dogmas particulares que mudam com os tempos e os povos e se apedrejam, pois anatematizando alimentam o antagonismo, mas a fé nos princípios fundamentais que toda a gente pode aceitar: Deus, a alma, o futuro, O PROGRESSO INDIVIDUAL ILIMITADO, A PERPETUIDADE DAS RELAÇÕES ENTRE OS SERES. Quando todos os homens estiverem convencidos de que Deus é o mesmo para todos; que Deus, soberanamente justo e bom, não pode querer nada de injusto; que o mal vem dos homens e não dele, olhar-se-ão como filhos de um mesmo Pai e dar-se-ão as mãos.

É esta a fé que o Espiritismo dá e que será doravante o eixo sobre o qual se moverá o género humano, seja qual for o modo de adoração e as crenças particulares.

progresso intelectual realizado até hoje nas mais vastas proporções é um grande passo e marca a primeira fase da humanidade, mas sozinho é impotente para a regenerar; enquanto o homem estiver dominado pelo orgulho e pelo egoísmo, utilizará a sua inteligência e os seus conhecimentos em benefício das paixões e dos seus interesses pessoais; é por isso que as aplicam no aperfeiçoamento dos meios para prejudicar os seus semelhantes e os destruir.

Só o progresso moral pode garantir a felicidade dos homens na Terra pondo um travão nas más paixões; só ele pode fazer reinar entre os homens a concórdia, a paz, a fraternidade.

É ele que derrubará as barreiras dos povos, que fará cair os preconceitos de casta e calar os antagonismos das seitas, ensinando aos homens a olharem-se como irmãos, chamados a ajudarem-se uns aos outros e não a viverem à custa uns dos outros.

É ainda o progresso moral, secundado aqui pelo progresso da inteligência, que confundirá os homens numa mesma convicção estabelecida sobre as verdades eternas, não sujeitas a discussão e por isso mesmo aceitas por todos.

unidade de crença será o elo mais poderoso, o mais sólido fundamento da fraternidade universal, destruída desde sempre pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as famílias, que fazem com que se veja nos dissidentes inimigos de quem é preciso fugir, combater, exterminar, em vez de irmãos que é preciso amar.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo XVIII, SÃO CHEGADOS OS TEMPOS – Sinais dos tempos 16 a 19, fragmento solto da obra, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.

(imagem de ilustração: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 23 de novembro de 2013

Saberes e o tempo ~

TEORIAS ANTIGAS E MODERNAS SOBRE O MUNDO

A primeira ideia que os homens fizeram da Terra, do movimento dos astros e da constituição do Universo deve ter sido, na sua origem, unicamente baseada no testemunho dos sentidos. Na ignorância das leis mais elementares da física e das forças da natureza, não tendo mais que a sua visão limitada como meio de observação. Ao ver o Sol surgir de manhã de um lado do horizonte e desaparecer do lado oposto, concluiu-se daí naturalmente que este girava à volta da Terra, enquanto esta permanecia imóvel. Se tivesse então sido dito aos homens que é o contrário que se passa, teriam respondido que isso não podia ser, porque, teriam eles dito, nós vemos o Sol mudar de sítio e não sentimos a Terra mexer-se.

A pouca extensão das viagens, que raramente ultrapassavam então os limites da tribo ou do vale, não permitiam que se constatasse a forma esférica da Terra. Como é que, aliás, se poderia supor que a Terra pudesse ser uma bola? Os homens não se poderiam manter sobre o ponto mais elevado e imaginá-la habitada em toda a sua superfície; como poderiam viver no hemisfério oposto, de cabeça para baixo e pés para cima? A coisa teria parecido ainda menos possível com um movimento de rotação. Quando vemos, ainda hoje, que se não apercebem deste fenómeno, não nos devemos espantar por os homens dos primeiros tempos não o terem nem sequer suspeitado.

A Terra era portanto para eles uma superfície plana, circular como uma mó de moinho, estendendo-se a perder de vista em sentido horizontal; daí a expressão ainda utilizada: ir até ao fim do mundo. Os seus limites, a sua espessura, o seu interior, a sua face inferior, o que havia por baixo, era o desconhecido. (*)

(*) “ A mitologia hindu ensinava que o astro do dia se despojava à noite da sua luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega representava o carro de Apolo puxado por quatro cavalos. Anaximandro, de Mileto, sustentava que em relação a Plutarco, que o Sol era uma quadriga cheia com um fogo muito vivo que se teria escapado por uma abertura circular. Epicuro teria, segundo alguns, emitido a opinião de que o Sol se acendia de manhã e se apagava à noite nas águas do oceano; outros pensam que ele fazia deste astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras considerava-o um ferro quente com o tamanho do Peloponeso. Estranha observação! Os antigos eram tão irresponsavelmente levados a considerar a grandeza aparente deste astro como se fosse real, que perseguiram este filósofo temerário por ter atribuído um tal volume ao archote do dia e que foi necessária toda a autoridade de Péricles para o salvar de uma condenação à morte, comutando-a por uma sentença de exílio.” (Flammarion, Estudos e Leituras Sobre Astronomia.)

Quando vemos tais ideias expressas no século v antes da era cristã, na época mais florescente da Grécia, não nos podemos espantar com as que os homens das primeiras eras tinham sobre o sistema do mundo. (N. do A.)

O céu, aparecendo sob uma forma côncava, era, segundo a crença vulgar, uma abóbada real cujos bordos inferiores assentavam na Terra, demarcando-lhe os confins; vasta cúpula com a capacidade total repleta de ar. Sem nenhuma noção de infinito, de espaço, incapaz mesmo de o conceber, os homens imaginavam esta abóbada formada por matéria sólida; daí o nome de firmamento que sobreviveu à crença e que significa firmeresistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego hermahermatos, firme, suporte, ponto de apoio).

As estrelas, cuja natureza não podiam imaginar, eram simples pontos luminosos, mais ou menos grandes, ligados à abóbada como lâmpadas suspensas, dispostas numa única superfície e, por consequência, todas à mesma distância da Terra, tal como se representam no interior de certas cúpulas pintadas de azul para imitar o azul dos céus.

Apesar de hoje as ideias serem muito diferentes, o uso das expressões antigas conservou-se; diz-se ainda, por comparação: a abóbada estrelada; sob a calote do céu.

A formação das nuvens por evaporação das águas da Terra era então igualmente desconhecida; não podiam pensar que a chuva que cai do céu tivesse a sua origem na Terra, de onde não se via a água subir. Daí a crença na existência das águas superiores e das águas inferiores, das fontes celestes e das fontes terrestres, em reservatórios situados nas regiões altas, suposição que estava perfeitamente de acordo com a ideia de uma abóbada capaz de as manter. As águas superiores, escapando-se por fissuras da abóbada, caíam em chuva e, consoante essas aberturas fossem maiores ou menores, a chuva era suave ou torrencial e diluviana.

A ignorância total sobre o conjunto do Universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e destino dos astros, que pareciam tão pequenos em comparação com a Terra, deve necessariamente ter feito com que esta fosse considerada a coisa principal, fim único da Criação, e onde os astros seriam acessórios criados unicamente para os seus habitantes. Este preconceito perpetuou-se até aos nossos dias, apesar das descobertas da ciência que mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quantas pessoas acreditam ainda que as estrelas são ornamentos do céu para recrear a vista dos habitantes da Terra!

Não tardaram a aperceber-se do movimento aparente das estrelas que se movem em massa do Oriente para o Ocidente, levantando-se à noite e deitando-se de manhã, conservando as suas posições respectivas. Esta observação não teve durante muito tempo outra consequência para além de confirmar a ideia de uma abóbada sólida arrastando as estrelas no seu movimento de rotação.

Estas primeiras ideias, ideias ingénuas, foram durante longos períodos seculares a base das crenças religiosas e serviram de fundo a todas as cosmogonias antigas.

Mais tarde compreendeu-se, pela direcção do movimento das estrelas e pelo seu regresso periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser simplesmente uma semiesfera assente sobre a Terra, mas sim uma esfera inteira, côncava, no centro da qual se encontrava a Terra, sempre plana ou quando muito convexa e habitada unicamente na face superior. Era já um progresso.

Mas em que estava assente a Terra? Seria inútil mencionar todas as suposições ridículas concebidas pela imaginação, desde a dos índios que a diziam levada por quatro elefantes brancos e estes pelas asas de um imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que não sabiam nada disso.

No entanto, uma opinião geralmente propagada nas teogonias pagãs situava nos lugares baixos, ou dito de outra maneira, nas profundezas da Terra, ou por baixo, não se sabia muito bem, a morada dos reprovados, chamados infernos, quer dizer, lugares inferiores; nos lugares altos, para além do lugar das estrelas, a morada dos bem-aventurados. A palavra inferno conservou-se até aos nossos dias, embora tenha perdido o seu significado etimológico desde que a geologia desalojou o lugar dos suplícios eternos das entranhas da Terra e que a astronomia demonstrou que não há nem alto nem baixo no espaço infinito.

Sob o céu puro da Caldeia, da Índia e do Egipto, berço das mais antigas civilizações, foi possível observar o movimento dos astros com tanta precisão quanta permitia a ausência de instrumentos especiais. Viu-se primeiro que certas estrelas tinham um movimento próprio independente da massa, o que não permitia supor que estivessem agarradas à abóbada; chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas para as distinguir das estrelas fixas. Calcularam-se os seus movimentos e os seus regressos periódicos.

No movimento diurno da esfera estrelada observou-se a imobilidade da estrela polar à volta da qual as outras descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos maiores ou menores, consoante as latitudes e as estações; a elevação da estrela polar abaixo do horizonte, variando com a altitude, colocou-nos no caminho da esfericidade da Terra; foi assim que, a pouco e pouco, fomos ficando com uma ideia mais certa do sistema do mundo.

Cerca do ano 600 antes de Jesus Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor), conheceu a esfericidade da Terra, a obliquidade da elítpica e a causa dos eclipses.

Um século depois, Pitágoras de Samos, descobre o movimento diurno da Terra sobre o seu eixo, o seu movimento anual à volta do Sol e liga os planetas e os cometas ao sistema solar.

160 anos antes de J. C., Hiparco de Alexandria (Egipto), inventa o astrolábio, calcula e prevê os eclipses, observa as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das mudanças da Lua.

Por muito preciosas que fossem estas descobertas para o progresso da ciência, levaram cerca de 2000 anos a popularizar-se. As ideias novas, não tendo então para se propagarem mais do que raros manuscritos, continuavam a ser o quinhão de alguns filósofos que as ensinavam a discípulos privilegiados; as massas, que nem se pensava em esclarecer, não as aproveitavam em nada e continuavam a alimentar-se de velhas crenças.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo V, TEORIAS ANTIGAS E MODERNAS SOBRE O MUNDO, números de 1 a 10, fragmento solto da obra, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~

O DUQUE DI BICCI DI M.

O catafalco ergue-se no meio do salão nobre do palácio senhorial e os pesados crepes descem pelas paredes de pedras e argamassa, sob tecto de cedros envernizados, sustentados por esguias colunas góticas. Flâmulas em cor de ouro, com seis bolas vermelhas (palle) – emblema da casa – arrancadas de muitas lanças, em seda fartalhante, descem dos capitéis e guarnecem os fustes das colunas pardas e altaneiras. Na porta de entrada, trabalhado em pedra lavrada, destaca-se o brasão com as armas da família, que descende dos remanescentes M., dominadores até há pouco do grão ducado da Toscana.

A noite sombreada de nuvens precursoras de tormenta, que logo desabará, tudo envolve. Ventos fortes vergastam lá fora, ululantes…

Dos arredores, afluem agricultores humildes e senhores da terra, grandes plantadores de vide e oliveiras; chegam, pressurosos, representantes das autoridades governamentais da Casa de Lorena e as diversas ordens religiosas da cidade fazem-se destacar com as roupas coloridas e os estandartes dispostos ao lado dos tocheiros fumegantes.

Círios e archotes untados de óleo e breu ardem esfuziantes, dando a coloração amarelo-avermelhada a se projectar por toda a parte, enquanto servos diligentes, em pesados trajes, e senhores enlutados passam em ruidosa movimentação por entre carpideiras profissionais adrede contratadas para lamentarem o extinto, exaltando-lhe as qualidades e posses…

Fora, no pátio de pedras quadrangulares e largas, em volta do importante chafariz que exibe gracioso cavalo marinho capturado por Vénus levantando-se de concha ampla, os cocheiros arrumam os carros variados e conduzem os animais relinchantes às cavalariças, para os defender da tempestade.

Sobre a essa, atapetada de vermelho e negro, ergue-se o ataúde de madeira preciosa alcochoada de veludo, no qual repousam os despojos carnais do duque Giovanni di Bicci di M., descendente de Cosme III, em mortalha característica da Ordem de Santo Sepulcro, a que pertencia, e que, desde a paz de Viena, se recolhera a singular abatimento…

Viúvo há três anos aproximadamente, fechara-se em áspera reclusão no seu palácio situado nos arredores de Siena, entre bosques frondosos e seculares, ao lado dos filhos do casal, cuja primogénita, Grazziella, que contava apenas 7 anos, não conseguia afugentar da sua alma os fantasmas da dor e da saudade.

Dona Ângela, a senhora duquesa, partira subitamente, vítima de “febres” (i) estranhas que assolaram a região, situada nos alagamentos das planuras, despedaçando o coração do nobre esposo, que ainda não completara quarenta anos de idade. O sofrimento, que desde então o enlutara, fez-se-lhe cruel verdugo, esmagando-o continuamente.

Com o matrimónio, Dona Ângela trouxera para o Solar di Bicci um sobrinho órfão, de quem cuidava com extremada abnegação desde antes que lhe houvessem chegado os próprios filhos, incluindo-o, logo após; entre os “rebentos” da sua vida, graças à generosa aquiescência do consorte.

De carácter fraco, o filho adoptivo do casal revelou, desde cedo, tendências para a dissolução, a aventura, os prazeres violentos, como, aliás, eram habituais na época em que se destacavam as ambições guerreiras, as disputas pelo favoritismo artístico e as concessões religiosas no jogo para a dominação dos homens.

Conquanto a austeridade dos senhores, que se dedicavam à agricultura, proprietários que eram de extensas áreas próximas à cidade, havia na herdade educadores que se encarregavam da preparação dos descendentes da família e especialmente de Girólamo, o qual todavia, passara a residir em Siena logo após a desencarnação da tia, a fim de prosseguir os estudos.

Alto e vigoroso, Girólamo possuía porte empertigado e atraente, agraciado com os requisitos da beleza física, de que se utilizava indevidamente para explorar moçoilas inexperientes e triunfar socialmente onde se apresentava.

Como era natural, por impositivo das leis das afinidades, o moço frequentava as reuniões alegres da cidade nas bisca e betolla (ii) mal afamadas, nas quais aprimorava as inclinações negativas da personalidade infeliz.

Não perdoava a arrogância do tio que o expulsara, sob o ardiloso pretexto do programa de estudos, da villa impotente, onde, conforme ambicionava, esperava dominar algum dia.

Rebelde e irascível, possuía temperamento voluntarioso e apaixonado, insistindo até ao desvario, quando arquitectava possuir uma presa para os aguçados instintos. Insinuante, sabia fazer-se estimar, e, ao consegui-lo, golpeava os que dele se acercavam, com certeira e segura manobra.

Dessa forma conquistara Assunta, jovem aia da duquesa, que lhe fascinara o apetite e que dele, a seu turno, se enamorara. Frívola e irrequieta, a moça se lhe entregara à desgovernada paixão, constituindo-se segura e fiel informante de quanto ali ocorria, quando ele se demorava em Siena.

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(i) Maremma toscana – impaludismo.
(ii) Bisca e betolla: tasca e cabaré.



Victor Hugo, Espírito "PÁRIAS EM REDENÇÃO" – LIVRO PRIMEIRO 1. O DUQUE DI BICCI DI M. 1 de 3, 1º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

apóstolos de verdade ~

Apresentação '

Laureado pela Academia Brasileira de Letras e pela Câmara Brasileira do Livro, Caio Porfírio Carneiro (escritor sem vínculo com o Espiritismo) publicou no jornal “Linguagem Viva”, edição de outubro de 2000, uma crónica sobre Herculano Pires, da qual extraio os seguintes tópicos que retratam o mestre:

“Parece que estou vendo Herculano Pires sentado no bar, em frente ao prédio dos Diários Associados, na Rua 7 de Abril, aqui em São Paulo, onde trabalhava, naquela tarde ensolarada, cercado de amigos, bebendo qualquer coisa, creio que nada alcoólico, e respondendo nossas perguntas curiosas sobre Espiritismo. Era ele um estudioso e devoto da doutrina, kardecista famoso, convidado anualmente pela direcção do Bradesco para a festa na Cidade de Deus, criação do presidente do Banco, Amador Aguiar, para os funcionários. Era e sempre foi uma festa belíssima do dia de acção de Graças. Compareciam representantes de destaque das mais diversas religiões cristãs. O único que representava uma corrente espiritual não religiosa era Herculano Pires. Quando chegava a sua vez de falar e abria o verbo, encantava a todos. (...) Tipo mais ou menos gordo, estatura mediana, óculos, andar meio bamboleante, rosto cheio, corado, irradiava uma simpatia pessoal muito grande. (...) Não externava sua cultura, sua vasta leitura em praticamente todos os campos do conhecimento. Criatura modesta, cavalheiro de primeira linha, simples por natureza. Apenas quando soltava o verbo, como nas festas da Cidade de Deus, o vulcão vinha ao vivo, mostrava-se fulgurante, brilhante, dono de uma inteligência privilegiada.”

Observações precisas, as de Caio Porfírio Carneiro.

José Herculano Pires foi o que podemos chamar homem múltiplo. Em todas as áreas do conhecimento em que desenvolveu actividades – dentro e fora do movimento doutrinário – a sua inteligência superior iluminada pela Doutrina Espírita e pela cultura humanística brilhava com grande magnitude, fazendo o povo crescer espiritualmente.

Herculano Pires foi mestre em Filosofia da Educação na Faculdade de Filosofia de Araraquara e membro da Sociedade Brasileira de Filosofia. Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo e fundador do Clube dos Jornalistas Espíritas de São Paulo, que presidiu por longos anos. Director da União Brasileira de Escritores e vice-presidente do Sindicato dos Escritores de São Paulo. Presidente do Instituto Paulista de Parapsicologia. Romancista, recebeu em São Paulo o “Prémio Municipal de Cultura” e foi reconhecido pela crítica como um dos renovadores do romance brasileiro.

E, o que é mais importante: espírita desde os vinte e dois anos de idade, ninguém no Brasil e no estrangeiro mergulhou tão fundo nas águas cristalinas da Codificação Kardeciana e ninguém defendeu mais – e com mais competência do que ele – a pureza doutrinária, que colocava acima das instituições e dos homens, de que é exemplo a batalha dantesca que travou quando uma edição adulterada de trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo fora publicada por uma das maiores federações espíritas do Brasil.

“Todo espírita consciente de suas responsabilidades humanas e doutrinárias está no dever intransferível de lutar contra essas ondas de poluição espiritual que pesam na atmosfera terrena. Ninguém tem o direito de cruzar os braços em nome de uma falsa tolerância que os levará à cumplicidade”, declarou o mestre. (i)

(i) Vide a obra Curso Dinâmico de Espiritismo, capítulo 20, editora Paidéia.

Para comer o pão da verdade só necessitamos dos dentes do bom-senso, dizia ele.

Herculano Pires, desde o ano da conversão ao Espiritismo ao de sua desencarnação, ou seja, durante quarenta e três anos ininterruptos, ampliou superlativamente a cultura espírita, propagou e defendeu os princípios doutrinários no Rádio, na TV, nos jornais, no livro e na tribuna. Ele foi o fermento de que nos fala o Evangelho. E, notemos, foi imbatível esse apóstolo de Allan Kardec! As suas principais batalhas doutrinárias estão relatadas nesta biografia com absoluta fidelidade, pois além de testemunhá-las, participei de algumas e seu vasto acervo doutrinário, incluindo o diário íntimo, (ii) me fora cedido pela esposa.

(ii) Herculano Pires desde menino gostava de fazer anotações num diário. Escreveu vários. Num deles anotou estes pensamentos: “Às vezes me pergunto por que este prazer mórbido de registar num diário os acontecimentos, os pensamentos, as emoções, as ocorrências de uma vida obscura. (...) O facto é que anoto, registo, comento, protesto, censuro e louvo para mim mesmo – ao menos assim me parece – mas nem por isso deixo de pensar, às vezes, que estes rabiscos possam ter um destino diferente, um endereço oculto.” Palavras proféticas, porque os rabiscos de Herculano Pires tinham, realmente, um endereço oculto: o meu, o de seu futuro biógrafo.

Reencontrei Herculano Pires nesta existência no ano de 1952 na cidade de São Paulo, na tradicional Livraria Teixeira – ponto de encontro de escritores e poetas. Tinha eu vinte e oito anos de idade e ele trinta e oito. É curioso: reencarnamos no dia 25 de setembro. Ele em 1914, durante a primeira grande guerra, e eu dez anos depois, durante a revolução de 1924. Mas a nossa amizade tem raízes em vidas anteriores – desde o tempo de Roma Imperial. Quando as nossas vozes eram ouvidas no senado romano trabalhamos secretamente em favor do triunfo das ideias revolucionárias de Cristo. E, como toquei agora em assunto tão delicado que, certamente, despertará a curiosidade dos leitores, convido-os a ler o trecho de uma conversa de Herculano Pires comigo e por mim gravada em 1972, trecho que somente hoje dou à publicidade, no qual relata ele uma encarnação sua no século XIX (ao tempo de Allan Kardec), quando foi eminente historiador, romancista e poeta português.

O referido trecho do saudoso companheiro de batalhas espirituais encontra-se no fim deste volume.

São Paulo, 1º de Dezembro de 2000.

Jorge Rizzini
Apêndice

Herculano Pires revela uma sua encarnação

Na noite de 14 de julho de 1972 gravei em fita magnética a conversa que mantive com Herculano Pires no seu lar após os trabalhos mediúnicos. Trata-se de uma entrevista longa e informal, improvisada, durante a qual ele revelou uma sua encarnação. Eu lhe havia prometido que somente a divulgaria após a sua passagem para o Grande Além. Eis o trecho em questão: (iii)

(iii) A entrevista completa encontra-se no meu livro Imortalidade.

(Rizzini) – Suponhamos que você, Herculano, estivesse vivendo no século XIX na França e visse nas livrarias de Paris O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, lançado nesse dia nas livrarias. Qual a sua impressão após a leitura da obra?

(Herculano) – Jorge Rizzini, você me dá a oportunidade de fazer aqui (já que você não pretende divulgar imediatamente; esta é uma fita que vai ficar para o futuro. Eu nunca pensei que tivesse a oportunidade de falar para o futuro. Acho que é uma pretensão muito grande. Mas, em todo o caso, como você está abrindo essa porta, eu vou falar para o futuro). Eu queria dizer que no século passado (XIX), e isto não é um sonho, uma ilusão, é uma convicção adquirida através de pesquisas que eu fiz e que nunca revelei a ninguém, levado por uma revelação; uma revelação inesperada através de um médium inteiramente ignorante do assunto e que me abriu o caminho para uma possibilidade muito interessante. Vamos esclarecer isto. No século XIX eu estive na França, realmente, mas não era francês. Eu era português. Eu morava em Portugal, onde tive uma encarnação. Eu fui parar a França como exilado. E como exilado tomei conhecimento do Espiritismo, mas não o aceitei porque eu era católico. E era um tipo católico muito comum, aliás, em Portugal, naquela época. Discordava dos padres, brigava com o clero e não aceitava muito o catolicismo. O meu desejo era encontrar uma forma de fazer o Cristianismo voltar ao seu estado primitivo, quer dizer, voltar à verdade pura do Cristo. Era este o meu desejo. Como naquela época eu era também jornalista, como sou hoje, isso ficou gravado em alguns jornais portugueses, o que se pode constatar.

(Rizzini) – Um pormenor, Herculano. Você se lembraria do nome que tinha?

(Herculano) – Eu não quero dizer, Rizzini. Você me perdoa isso, mas eu não quero dizer. Eu sei que nessa ocasião...

(Rizzini) – Mas esta é uma entrevista para o futuro.

(Herculano) – Sim, eu sei, mas o futuro depois verá. Mas eu tive, então, oportunidade de saber que se estava processando uma nova revelação, mas Portugal era um país profundamente católico e qualquer infiltração de outra religião lá seria prejudicial, porque o povo não estava à altura, segundo eu pensava, de aceitar uma nova concepção de Deus. Então, não adoptei o Espiritismo. Continuei católico até ao fim, mas um católico às avessas, porque continuamente em luta com o próprio clero. Então, eu diria a você: não tenho certeza que eu vi algum livro espírita, mas sei que tive conhecimento do Espiritismo. Mas se eu visse O Livro dos Espíritos em Paris, nesse dia 14 de julho, naquela época (na data da tomada da Bastilha) eu, certamente, não teria o impacto que hoje me provocaria essa visão. Porque não sabia ainda o que era o Espiritismo, nem tinha possibilidade de saber que ele realizava aquele meu sonho: o sonho da volta ao Cristianismo primitivo. Só depois de passar para o mundo espiritual foi que eu tive contacto pleno com a nova revelação. Interessante: foi no Espaço que eu me tornei espírita. Quando eu vim para a Terra, portanto, nascendo aqui no Brasil dessa vez – e nascendo em Avaré, no Estado de São Paulo, no dia 25 de setembro de 1914...

(Rizzini) – E no meio católico...

(Herculano) – Também numa família católica. Tendo educação católica, eu, entretanto, já trazia ideias espíritas bem acentuadas, que se foram revelando em mim independentemente de qualquer influência exterior. De maneira que, agora sim, se eu tivesse depois disso um encontro com O Livro dos Espíritos numa livraria de Paris, para mim seria uma grande emoção, uma emoção extraordinária.

(Rizzini) – E se você encontrasse numa das ruas do centro de Paris, de súbito, ao dobrar uma esquina, a figura de Allan Kardec?

(Herculano) – Bem... Se eu o encontrasse agora, nesta época, quer dizer, depois que sou espírita, então para mim seria uma coisa extraordinária, porque Allan Kardec representa a figura exponencial dos novos tempos na Terra. Jesus veio para implantar no mundo o Reino de Deus – e realmente ele realizou esse trabalho maravilhoso, pois o implantou no coração e na consciência dos poucos homens que foram capazes de compreendê-lo até hoje – e o Reino de Deus vai desenvolvendo-se lentamente através dos séculos, vai realizando-se apesar dos homens. De maneira que Jesus representou essa figura extraordinária, e Kardec é o seu continuador. Kardec foi aquele que veio trabalhar na era decisiva da implantação do Reino de Deus em maior amplitude. Kardec é quem trouxe a revelação que o Espírito de Verdade transmitiu; ele trouxe essa possibilidade extraordinária de abrir as perspectivas do mundo para uma era inteiramente nova que está nascendo aos nossos olhos neste momento, neste século XX.

Herculano Pires, certamente tomado por um súbito sentimento de pejo, não revelou o nome que tivera na existência anterior em Portugal, mas anos depois de sua desencarnação pesquisei a vida dos grandes vultos da literatura lusitana do século XIX e descobri inúmeros pontos de contacto (a começar pelo nome) entre ele e o célebre jornalista, romancista, poeta e historiador Alexandre Herculano, o qual ao tempo de Allan Kardec se exilara na França. O mesmo carácter impoluto e inflexível; o sentimento religioso; a oposição ao clero; o amor à literatura, particularmente à poesia e ao romance; e, sobretudo, a fidelidade à verdade.

A propósito da extremada fidelidade à verdade, medite o leitor sobre o seguinte texto, mas procurando descobrir se o autor é o Herculano nascido em Portugal ou o brasileiro:

“Quando a justiça de Deus põe a pena na destra do historiador, ao passo que lhe põe na esquerda os documentos indubitáveis de crimes que pareciam escondidos para sempre debaixo das lousas, ele deve seguir avante sem hesitar, embora a hipocrisia ruja em redor, porque a missão do historiador tem nesse caso o que quer que seja de divina.” (iv)

(iv) Texto extraído do volume terceiro, página 192, da obra Opúsculos, de Alexandre Herculano (autor, inclusive, da História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal).

Parece-nos evidente tratar-se de um só Espírito.

As informações sobre a reencarnação de Herculano Pires foram por mim guardadas, sigilosamente, durante décadas. Somente dias atrás, em conversa com Heloísa Pires, me referi à pesquisa, mas antes que lhe revelasse o resultado ela exclamou sorrindo:

– Meu pai é a reencarnação de Alexandre Herculano. O pai, certa vez, comentou isso!

Não foi, pois, por outra razão que quatro anos antes da desencarnação Herculano Pires redigira um extenso e belo artigo exaltando a sua antiga pátria e o renascimento do movimento espírita lusitano. (v)

(v) Vide a revista “Estudos Psíquicos”, de Lisboa, edição de junho de 1975.

Não estamos, porém, dogmatizando, mesmo porque o julgamento final cabe, evidentemente, ao leitor.

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Jorge Rizzini, José Herculano Pires o Apóstolo de Kardec o Homem, a Vida, a Obra, Apresentação e, Apêndice – Herculano Pires revela uma sua encarnação, 1º.s fragmentos soltos da obra.
(imagem de ilustração: São Luís com a coroa de espinhos, desenho de Alexandre Cabanel)