domingo, 18 de dezembro de 2022

a floresta ~


Alma humana… 

A floresta é o adorno da Terra e a verdadeira conservadora do globo. Sem ela, o solo, arrastado pelas chuvas, cedo voltaria aos abismos do mar imenso. Ela retém as largas gotas da tempestade nos seus tapetes de relva, no enredo das suas raízes; ela as encaminha para as fontes e as entrega, pouco a pouco, transformadas, tornadas fertilizantes e não devastadoras. Por toda a parte em que as árvores desaparecem, a terra empobrece, perde a sua beleza. Gradualmente, chega à monotonia, à aridez e depois à morte. Regeneradora por excelência, a respiração dos seus milhares de folhas destila o ar e purifica a atmosfera. 

Do ponto de vista psíquico, já vimos, o papel da floresta não é menos considerável. Ela foi sempre o asilo do pensamento recolhido e sonhador. Quantas obras delicadas e fortes têm sido meditadas na sua sombra fresca e mutável, na paz das suas potentes e fraternais ramadas! Quem quer que possua alma de artista, de escritor, de poeta, saberá haurir nessa fonte viva e transbordante a inspiração fecunda. Com o seu ritmo majestoso, a floresta embalou a infância das religiões. A arquitectura sagrada, nas suas mais altivas audácias, não tem feito mais que copiá-la. As naves góticas das nossas catedrais, não são mais que a imitação de pedra, das mil colunatas e das abóbadas imponentes dos bosques? A voz dos órgãos não é o frémito do vento, que, segundo a hora, suspira nos roseirais, ou faz gemer os grandes pinheiros? 

A floresta serviu de modelo às manifestações mais altas da ideia religiosa na sua expansão estética. Nas primeiras idades, ela cobria a superfície quase inteira do globo. 

Nada mais impressionante para os nossos pais, que a antiga e profunda selva dos gauleses, na sua grandeza misteriosa, com os seus santuários naturais, onde se consumavam os ritos sagrados, os retiros por vezes cheios de horror, quando os rumores da tempestade faziam ressoar o eco dos bosques e, do seio das touceiras, subiam o grito das feras; cheia de encanto e de poesia, quando, vindo à calma, o céu azul, a cristalina luz aparecia através da ramada e o canto dos pássaros celebrava a festa eterna da vida. De século em século, a alma céltica guardou o forte cunho da floresta primitiva e o amor dos seus santuários, morada dos Espíritos tutelares que Vercingétorix e Jeanne d'Arc veneraram, dos quais ouviram, na verde solidão, as vozes inspiradoras. 

O espírito céltico é ávido de claridade e de espaço, apaixonado da liberdade; possui intuição profunda das coisas da alma que reclamam revelação directa, comunhão pessoal com a Natureza visível e invisível. Eis por que ele estará sempre em oposição à Igreja Romana, desconfiada dessa Natureza e cuja doutrina é toda cheia de compressão e de autoridade. Os druidas e os bardos foram-lhe rebeldes. Apesar das conquistas romanas e das invasões bárbaras que facilitaram a expansão do Cristianismo, a alma céltica, por uma espécie de instinto, sempre se sentiu herdeira de uma fé mais larga e mais livre que a de Roma. 

Inutilmente os monges procurarão impor-lhe a ideia de ascetismos e de renúncia, a submissão a dogmas rígidos, a uma concepção lúgubre da morte e do Além; o espírito céltico, na sua sede ardente de saber, de viver e de agir, escapará a esse círculo estreito

A ideia fundamental do druidismo é a evolução, a ideia do progresso e do desenvolvimento na liberdade. Essa ideia é tomada, em certa medida, à Natureza e completada pela Revelação. 

Com efeito, a impressão geral que ressalta do espectáculo do mundo é um sentimento de harmonia, uma noção de encadeamento, uma ideia de fim e de lei, isto é, relações eternas dos seres e das coisas. A concepção evolutiva emana do estudo dessas leis. Há uma direcção, uma finalidade na evolução, e esse rumo traz o conjunto das vidas, por gradações insensíveis e seculares, para um estado sempre melhor. 

Cristianismo, ou antes, o Catolicismo afastou essa ideia, mas a Ciência torna a levar-nos para ela. Primeiramente, esta espiritualiza a matéria, reduzindo-a a centros de força e nos mostra o sistema nervoso, complicando-se cada vez mais na escala dos seres, para chegar ao homem. As espécies bravias tendem a desaparecer diante da superioridade do homem. Com o desenvolvimento do cérebro, o pensamento triunfa. A consciência executa a sua ascensão paralela. Há aproximação entre as leis morais e as certezas físicas e biológicas. A ordem que se manifesta nos dois domínios chega a conclusões análogas. A Natureza é plástica, móvel quanto elas, e sofre a influência do Espírito Divino. 

Sendo essa evolução a lei central do Universo, o principal papel da ordem social é facilitá-la a todos os seus componentes. A vida é, pois, boa, útil e fecunda. Diante das perspectivas infinitas que ela nos abre, todos os sentimentos deprimentes, pessimismo, dúvida, tristeza, desespero, desaparecem para dar lugar às inspirações imortais, à esperança imperecível. 

É esse génio da nossa raça, sobrelevando à onda das invasões, sobrevivendo a todas as vicissitudes da História, reaparecendo sobre vinte formas diversas, depois de períodos de eclipse e de silêncio, que explica a grande missão e a irradiação da França na obra da civilização. Mais que qualquer outra raça, os celtas, cujas origens se perdem no longínquo vertiginoso dos tempos, se aproximam, pelo instinto hereditário, do mundo das causas e das fontes da vida. Tanto na Ciência quanto na Filosofia, eles conseguiram muitas vezes aplicar o pensamento desnorteado ao sentimento da Natureza e das suas leis reveladoras, a uma concepção mais clara dos princípios eternos. Se o entusiasmo e a lei célticos pudessem extinguir-se, haveria menos luz e alegria no mundo, menos transportes apaixonados para a Verdade e para o Bem. Desde há mais de um século, o materialismo alemão entenebreceu o pensamento, paralisou o seu surto; podemos ver por toda a parte, à nossa volta, os resultados funestos da sua influência. Mas, eis que o génio céltico reaparece sob a forma de espiritualismo moderno, para esclarecer de novo a Alma humana na sua ascensão; ele oferece, a todos aqueles cujos lábios estão secos pelo áspero vento da vida, a taça da esperança e da imortalidade. 

/... 


LÉON DENIS, O Grande Enigma, Segunda parte, O Livro da Natureza 3º fragmento, XI – A floresta (2 de 2). 
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)  

sábado, 3 de dezembro de 2022

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria (II) – O Céu ~  


Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos, sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam todos os acusadores de quantos decretam não passar a força de cego atributo da matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol – qual coração palpitante de um mesmo ser – houvermos personificado o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos absorve na sua esplendente e poderosa personalidade – então, não tardaremos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infinitos, o atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que deles recebe luz e vida e, veremos que todas as estrelas são guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda mais céleres que as atrás mencionadas. 


Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos sob o verdadeiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a eloquência maravilhosamente brutal de facto concreto, o seu valor, a sua missão, autoridade e poder. Diante desses movimentos indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer – que transportam pelos desertos do infinito essa infinidade de sóis; diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas rotas, dessas órbitas imensuráveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um relógio, da maçã que cai, ou da roda do moinho, obedientes à lei da gravidade; diante da submissão dos corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas analíticas podem traçar de antemão, bem como da condição suprema de estabilidade e duração do mundo, quem ousará negar que a Força não governe, não dirija soberanamente a Matéria, em virtude de uma lei inerente ou afecta à própria Força? Quem pretenderá subordinar a Força à cegueira constitucional da Matéria e afirmar, à maneira retrógrada dos peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania? Que Deus tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força, deixasse de agir e abdicasse do seu ceptro? A só imaginação desta hipótese dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa. 

Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quádruplos sóis giram em conjunto, em volta do centro comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma ideia da escala da construção dos mundos – diz John Herschel

Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados a admitir simultaneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto. 

Os astrónomos que humildemente remontam ao princípio ignoto das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser inteligente essa atracção universal, que rege inteligentemente o Cosmos. “A lei de gravitação – dizia o saudoso director do Observatório de Toulouse (i) – enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos celestes e, por uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade – longe de temer as excepções aparentes, as perturbações dos movimentos normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os geómetras modernos explicarem a precessão dos equinócios pela combinação da força centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a acção do Sol sobre o nosso menisco equatorial. Assim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma influência análoga, da Lua, sobre a mesma luminescência da Terra e, mais: – as atracções planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retardamento de Júpiter quando Saturno se acelera e, vice-versa, quando a aceleração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos por que, sob a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo se vai acelerando de século em século e deverá diminuir mais tarde, porque a linha dos nós da Lua perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc. (ii) 

Não somente, em resumo, esse princípio notável explica todos os fenómenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos que a observação não indica, de modo que se poderia estabelecer a priori, pela análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da observação senão em alguns pontos de referência, de que se utilizam os geómetras sob a denominação de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de simplicidade, visto que os movimentos, aparentemente mais complicados, resultam da combinação de impulsos primitivos com uma força única agindo sobre cada molécula material; força única, com a qual, e consequentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como deve ser vigilante a mão eterna que sabe, a cada momento, renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis astros destinados a povoar as regiões de infinita imensidade. Não será o caso de dizer com o rei-profeta, inclinando-se perante tanta grandeza: Coeli enarrant gloriam Dei

A partir de Newton e Kepler, sabemos que o Universo é um dinamismo imenso, cujos elementos na sua totalidade não cessam de agir e reagir na infinidade do tempo e do espaço, com actividade indefectível. Esta a grande verdade que a Astronomia, a Física e a Química nos revelam nas imponentes maravilhas da Criação. 

Tal o sublime espectáculo do mundo, tais as leis constitutivas da sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de raciocínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua esses factos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento divino? 

Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem imposto a muita gente: (iii) 

“Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam, sem relutância, sem excepções nem desvios, com esta lei inerente a toda a matéria e a toda partícula de matéria, como podemos experimentar a cada momento. É com uma precisão e certeza matemáticas que todos esses movimentos se fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes factos o pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a prova de que a ideia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege não fosse soberana. É fácil (diz Büchner) conciliar o nascimento, a constelação (?) e o movimento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A hipótese de uma força pessoal criadora é inadmissível. Por que? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o movimento dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside. Ingénuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a desordem, que excluem a hipótese de uma acção pessoal regida pelas leis da inteligência, mesmo humana.” 

Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Kepler não levou menos de dezassete para formular as suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses génios possantes mal puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma inteligência sequer igual à do homem! 

E o Sr. Renan escreve então esta frase: “Por mim, penso não haver no Universo inteligência superior à humana.” E ousam compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para afirmarem que não existe harmonia na construção do mundo. 

Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores críticos de Deus? 

Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou que esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força criadora individual – diz Büchner – a origem dos mundos para habitação de homens e animais, importaria saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tornaram habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mesma ideia, quando representou num dos seus encantadores desenhos os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto na boca. E o anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o sistema planetário, mais avisados andariam os inventores dirigindo-se seriamente à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia. 

Que esta, na verdade, nada tem com isso. 

/… 
(i) F. Petit – Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon. 
(ii) Curioso é que Clairaut, tendo encontrado nos seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente, para este caso, a gravitação inversa ao quadrado da distância e que fosse precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a Natureza não podia ter duas leis diferentes, insistisse com o geómetra para que revisse os seus cálculos. Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas séries, termos indispensáveis. 
(iii) Büchner – Força e matéria


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu (2 de 3), 12º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva), 1895, pintura de James Jebusa Shannon