A embriagues, a toxicodependência e o vício
do jogo são os flagelos actuais do nosso mundo em fase aguda de
transição. Cansados de recorrer sem proveito a internamentos hospitalares, as
vítimas e as suas famílias acabam recorrendo ao Espiritismo e
às diversas formas mágicas do sincretismo religioso afro-brasileiro. É comum
fazer-se confusão entre essas formas de religião primitivas da África e o Espiritismo,
em virtude de haver manifestações mediúnicas nos dois campos. Os sociólogos,
que deviam ser minuciosos ao tratar desses problemas, carregam a maior parte da
culpa desse equívoco. Estão naturalmente obrigados, pela própria
metodologia científica, a distinguir com rigor um fenómeno social do outro,
mas preferem a simplificação dos processos de pesquisa, que gera confusões
lamentavelmente anticientíficas.
A palavra Espiritismo, cunhada por Allan Kardec como
um neologismo da língua francesa, na época, é uma denominação
genésica da Doutrina Espírita. Nasceu das suas entranhas e só a ela se
pode aplicar. Kardec rejeitou a denominação de Kardecismo, que os seus próprios
colaboradores lhe sugeriram, explicando que a doutrina não era uma elaboração
pessoal dele, mas o resultado das pesquisas e dos estudos das
manifestações espíritas. Entrando em contacto com o mundo espiritual, em todas
as suas camadas, Kardec recebeu dos Espíritos elevados os delineamentos
da doutrina, mas não os aceitou de mão beijada. Submeteu
essas comunicações do outro mundo a rigoroso processo de verificação
experimental. Só aceitou como válido o que era provado pelas numerosas
pesquisas incessantemente repetidas e confrontadas entre si. Para tanto, criou
uma metodologia específica, pois entendia que os métodos devem ajustar-se à
natureza específica do objecto submetido à pesquisa. Sem essa adequação
seria impossível obterem-se resultados significativos. Escapava assim, aos
fracassos iniciais da Psicologia Científica, que lutara em vão para enquadrar
os fenómenos psicológicos na metodologia da Física e de outras disciplinas.
As experiências de Wundt, Weber e Fechner,
por exemplo, restritas a mensurações de intensidade, não iam
além de explorações epidérmicas, pouco sugerindo sobre a natureza e o mecanismo
dos fenómenos. Os fenómenos espíritas, que revelavam inteligência,
não eram simples efeitos de processos biológicos e fisiológicos. Eram
fenómenos muito mais complexos, que podiam provir da mente ou das entranhas
humanas, mas também podiam ser produzidos por forças ainda não suficientemente
conhecidas, como o magnetismo natural, a electricidade, energias e elementos
procedentes de regiões ainda não devassadas da própria consciência humana. O
inconsciente era ainda uma incógnita. Kardec o abordou quando Freud estava
ainda na primeira infância. Kardec deu à Revista Espírita, órgão
que fundou para divulgar os seus trabalhos e pesquisas de opinião, o subtítulo
de Jornal de Estudos Psicológicos, provando já estar convencido de
que enfrentava os problemas do psiquismo humano. Estava fundada a Ciência
Espírita, que os cientistas da época rejeitaram, considerando que
Kardec fugia da metodologia científica originada das proposições filosóficas
de Bacon e Descartes. A
psicologia introspectiva, ainda apegada à matriz filosófica, atacou-a
com a antecedência de meio-século com ataques dirigidos aos
pioneiros da Psicologia Experimental. Essa é uma das glórias de Kardec,
geralmente desconhecida. Mais tarde, Alfred Russel
Wallace iria declarar que toda a psicologia não passa de um
espiritismo rudimentar, glorificando Kardec.
Charles Richet, prémio Nobel de Fisiologia e
fundador da Metapsíquica, discordante de Kardec, declarou no seu
próprio Tratado de Metapsíquica que Kardec era quem mais
havia contribuído para o aparecimento das novas ciências e lembrou
que Kardec jamais fizera uma afirmação que não estivesse provada nas suas
pesquisas. Depois desses sucessos no meio científico, numerosos e famosos
cientistas se entregaram às pesquisas espíritas, alguns, como William Crookes, com o fim exclusivo de provar que os
fenómenos espíritas não passavam de fraude. Após três anos de pesquisas,
Crookes publicou os seus trabalhos, pondo-os ao lado do antigo adversário. Após
a morte de Kardec, em 1869, Léon Denis o
substituiu na direcção do movimento espírita mundial e, a Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, que Kardec chamava de sociedade
científica, ficou praticamente viúva. Mas as pesquisas prosseguiram
no Instituto Metapsíquico, sob a direcção de Gustave
Geley e Eugéne Osty, com grande proveito. Ao mesmo tempo, pesquisas
continuavam a ser feitas em várias Universidades europeias, como a
de Zöllner em Leipzig, as de Crookes em Londres, as
de Ochorowicz na
Polónia e assim por diante. A Ciência Espírita continuava a desenvolver-se. O
Barão Von Schrenk-Notzing fundou em Berlim o primeiro
laboratório de pesquisas espíritas do mundo, procedeu a valiosa série de
pesquisas sobre o ectoplasma,
com o auxílio de Madame Bisson. Após a primeira Guerra Mundial a Ciência
Espírita continuava combatida, mas activa. Mas a guerra desencadeara
no mundo as ambições e interesses materiais, deixando exígua margem para o
interesse espiritual. Só agora ressurge na França, com André Dumas,
uma instituição de estudos e pesquisas espíritas. A Revista Renaitre
2.000, dirigida por Dumas, substitui a Revue Spirite de
Kardec.
Este breve escorço do aparecimento e desenvolvimento
da Ciência Espírita prova a sua vitalidade, apesar das
campanhas incessantes e sistemáticas movidas contra ela. Em todos os grandes
centros universitários do mundo as pesquisas espíritas prosseguem com resultados
positivos. Nenhum princípio da doutrina foi sequer abalado pelas
novas descobertas verificadas em quaisquer dos ramos da investigação.
Pelo contrário, os postulados básicos do Espiritismo se comprovaram,
confirmando a posição avançada da Ciência Espírita e da Filosofia Espírita
perante a cultura actual. Isso representa, para a Terapia Espírita,
uma base de segurança inegável para o desenvolvimento dos seus processos de
cura. O que hoje se chama, na Europa, de cura paranormal, não é mais do que a
cura espírita revestida ou fantasiada de novidades superficiais.
No difícil e geralmente falho tratamento das
viciações, o principal é a integridade moral dos terapeutas.
Os viciados não são apenas portadores de vícios, mas também de
cargas de influências psíquicas negativas provenientes de entidades espirituais
inferiores que a eles se apegam para vampirizar-lhes as energias e
as excitações do vício. As pesquisas parapsicológicas provam a existência
desses processos de vampirismo espiritual, que na verdade são apenas
a contrafacção no após morte dos processos de vampirismo entre os vivos. Nas
relações humanas, quer sejam entre encarnados ou desencarnados, sempre
existem os que se tornam parasitárias de outras pessoas. Não há nisso
nenhum mistério, nem se trata de acções diabólicas. Em toda a Natureza a
vampirização é uma constante que vai do reino mineral ao humano. A cura
depende, em primeiro lugar, da vontade da vítima em se livrar do perseguidor.
As intenções deste nem sempre são maldosas. Ele procura o amigo ou
conhecido encarnado que era o seu companheiro de vício e o estimula na prática
para obter assim os elementos de que necessita na sua condição de desencarnado.
Obtém a satisfação por indução. Ligando-se mental e psiquicamente ao
ex-companheiro, pode haurir as suas emanações alcoólicas ou as drogas
psicotrópicas de que se servia antes da morte. De outras vezes o espírito
vampiresco se serve de alguém que, não sendo viciado, revela tendências para o
vício e o leva facilmente para a viciação.
A terapia espírita consiste, nesses casos, num processo oral
de persuasão, conhecido como doutrinação. Conseguindo-se levar o
espírito vampiro e a sua vítima a se convencerem da necessidade e da
conveniência de abandonarem o vício, ambos se curam. A doutrinação
distingue-se profundamente do exorcismo por ser um
processo racional e persuasivo e não pautado pela violência. A terapia
espírita parte da compreensão de que ambos, o vampiro e a vítima, são
criaturas humanas necessitadas de socorro e orientação. Essa posição
favorece o tratamento, que ao invés de provocar reacções de indignação do
espírito tratado como diabólico, lhe provoca a razão e o sentimento de sua
dignidade humana e lhe mostra as possibilidades de uma situação feliz na vida
espiritual. Submetido às reuniões de preces, passes e doutrinação, os dois
espíritos, o desencarnado e o encarnado, são tratados com a assistência das
entidades espirituais encarregadas desse trabalho amoroso. Kardec
acentuou a necessidade de boas condições morais das pessoas que se dedicam a
esse trabalho, pois só a moralidade do doutrinador exerce influência
sobre os espíritos. Toda a pretensão de afastar o espírito vampiresco pela
violência só servirá para irritá-lo e complicar o caso. A boa intenção do
doutrinador para com o vampiro e a vítima, a sua atitude amorosa
para com ambos, é factor importante para o êxito do trabalho. A
formação de correntes de mãos dadas em torno do paciente. O uso de defumadores
e outros artifícios semelhantes e, qualquer outra forma de encenação material
são simplesmente inúteis e prejudiciais. O imprudente que gritar com o
espírito, dando-lhe ordens negativas, arrisca-se a prejudicar o trabalho e
chamar sobre si a indignação do espírito ofendido. O clima dos trabalhos deve
ser de paz, compreensão, amor e confiança nas possibilidades de recuperação das
criaturas humanas. Nenhum espírito tem a destinação do mal.
Todos se destinam ao bem e acabarão modificando-se pelos seus próprios impulsos
de transcendência.
/…
José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações
terapêuticas, Tratamento de Vícios e Perversões (1 de 2), 11º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar
de névoa, pintura de Caspar
David Friedrich)
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