domingo, 20 de fevereiro de 2022

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Terceiro 

OS MÉDIUNS DE BORDÉUS 

A biobibliografia "Allan Kardec" de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen oferece um bom momento para uma análise da mensagem que o Espírito de Erasto, um dos mais directos membros da equipe espiritual da Codificação, enviou aos espíritas de Bordéus por ocasião da visita que Allan Kardec fez àquela cidade em 1861. Com efeito, está assim assinalada a mensagem no segundo volume (pág. 261): "Terminado o seu discurso, Kardec lê uma instrutiva mensagem que o Espírito de Erasto, "humilde servo de Deus", dedicou aos espíritas de Bordéus, mensagem recebida pelo médium Sr. d'Ambel, antes de o viajante deixar Paris". Além desta menção, nada mais se lê sobre a instrutiva mensagem. Ela, porém, merece ser analisada, não só porque não perdeu a sua actualidade como por chamar a atenção, já na ocasião – 1861! – para a presença de inúmeros médiuns na região. Para Erasto, este facto significa uma possibilidade de que "espíritos enganadores" se sirvam dos mais invigilantes e vaidosos. Eis, pois, a mensagem (I): 

"Que a paz do Senhor esteja convosco, meus bons amigos, a fim de que nada venha jamais perturbar a boa harmonia que deve reinar num centro de espíritas genuínos! Sei quão profunda é a vossa fé em Deus e quanto sois fervorosos adeptos da nova revelação. Eis por que vos digo, com toda a efusão de minha ternura, que ficaria desolado, ficaríamos desolados todos nós que, sob a direcção do Espírito de Verdade– somos os iniciadores do Espiritismo na França, – se viesse a desaparecer do vosso meio a concórdia de que, até hoje, destes provas brilhantes. Se não tivésseis dado o exemplo de uma sólida fraternidade; se, enfim, não fôsseis um centro sério e importante da grande comunhão espírita francesa, eu teria deixado esta questão na sombra. Mas se a levantei é por que tenho razões plausíveis para vos convidar à manutenção da união, da paz e da unidade da doutrina entre os vossos diversos grupos. Sim, meus caros discípulos, aproveito com entusiasmo esta ocasião, que nós mesmos preparamos, para vos mostrar quanto seria funesta ao desenvolvimento do Espiritismo e que escândalo causaria entre os vossos irmãos de outras regiões, a notícia de uma cisão no centro que até agora nos encantou citá-lo, pelo seu espírito de fraternidade, a todos os outros grupos formados ou em vias de formação. Não ignoro, como não o deveis ignorar, também, que tudo farão para semear a divisão entre vós; que vos armarão ciladas; que no vosso caminho semearão emboscadas de toda a sorte; que vos oporão uns aos outros, a fim de fomentar a divisão e levar a uma ruptura, a todos os títulos lamentável. Mas podereis evitar tudo isso praticando os sublimes preceitos da lei do amor e da caridade, inicialmente perante vós próprios e, a seguir, perante todos. Estou convicto de que não dareis aos inimigos de nossa santa causa a satisfação de dizer: 

"Vede esses espíritas de Bordéus, que nos mostravam como marcham na vanguarda dos novos crentes! Não sabem nem ao menos estar de acordo entre si". Eis, meus amigos, onde vos esperam e onde nos esperam a todos. Os vossos excelentes guias já vos disseram: "Tereis que lutar não só contra os orgulhosos, os egoístas, os materialistas e, todos esses infelizes que estão imbuídos do espírito do século; mais ainda e, sobretudo, contra a turba de Espíritos enganadores que, encontrando no vosso meio uma rara reunião de médiuns, pois a tal respeito sois os mais aquinhoados, em breve virão assaltar-vos: uns, com dissertações sabiamente combinadas, nas quais, graças a passagens piedosas, insinuarão a heresia ou algum princípio dissolvente; outros, com comunicações abertamente hostis aos ensinos dados pelos verdadeiros missionários do Espírito de Verdade. (II) Ah! acreditai-me, não temais desmascarar os embusteiros que, novos Tartufos, se introduziriam entre vós sob a máscara da religião; sede igualmente impiedosos para com os lobos devoradores, que se ocultariam sob peles de cordeiro. Com a ajuda de Deus, que nunca invocais em vão e, com a assistência dos bons Espíritos que vos protegem, ficareis inquebrantáveis na vossa fé; os maus Espíritos vos acharão invulneráveis e, quando virem os seus dardos se quebrarem contra o amor e a caridade que vos animam o coração, retirar-se-ão confusos de uma campanha onde só terão colhido impotência e vergonha. Encarando como subversiva toda a doutrina contrária à moral do Evangelho e aos princípios gerais do Decálogo (III), que se resume nesta lei concisa: Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos, ficareis invariavelmente unidos. Aliás, em tudo é preciso saber submeter-se à lei comum: a ninguém cabe subtrair-se ou querer impor a sua opinião e o seu sentimento, quando estes não forem aceites pelos outros membros de uma mesma família espírita. E nisto eu vos convido insistentemente a vos modelardes pelos usos e regulamentos da Sociedade de Estudos Espíritas de Paris, onde ninguém, seja qual for sua posição, idade, serviços prestados ou autoridade adquirida, pode substituir por sua iniciativa pessoal a da Sociedade de que faz parte e, a fortiori, engajá-la em coisa alguma por meio de manobras que ela não aprovou. Dito isto, é incontestável que os adeptos do mesmo grupo devem ter uma justa deferência para com a sabedoria e a experiência adquiridas. experiência nem é divisa do mais velho nem do mais sábio, mas do que se ocupou por mais tempo e com mais frutos para todos, da nossa consoladora Filosofia. Quanto à sabedoria, cabe-vos examinar aqueles que entre vós a seguem e a praticam melhor de acordo com os preceitos e as leis. Contudo, meus amigos, antes de seguir as vossas próprias inspirações, não o esqueçais, tendes os vossos conselheiros e os vossos protectores etéreos a consultar e, estes jamais vos faltarão quando o solicitardes com fervor e com um objectivo de interesse geral. Por isso necessitais de bons médiuns e aqui os vejo excelentes, em cujo meio só tendes que escolher. Certo e, – bem o sei – a Sra. e a Srta. Cazemajoux e alguns outros possuem qualidades mediúnicas no mais alto grau e nenhuma região, eu vo-lo repito, a esse respeito é melhor dotada do que Bordéus (IV). 

"Eu tive que vos fazer ouvir uma voz tanto mais severa, meus amigos, quanto o Espírito de Verdade, mestre de todos nós, mais espera de vós. Lembrai-vos de que fazeis parte da vanguarda espírita e que a vanguarda, como o estado-maior, deve a todos o exemplo de uma submissão, absoluta à disciplina estabelecida. Ah! a vossa obra não é fácil, desde que vos cabe a tarefa de levar com mão vigorosa o machado às sombrias florestas do materialismo e perseguir até às suas últimas trincheiras os interesses materiais coligados. Novos Jasons, marchai à conquista do verdadeiro tosão de ouro, isto é, dessas ideias novas e fecundas, que devem regenerar o mundo; mas neste caso já não marchais no interesse privado, nem mesmo no da geração actual, mas, sobretudo no das gerações futuras, para as quais preparais os caminhos. Há nesta obra um cunho de abnegação e de grandeza que ferirá de admiração e de reconhecimento os séculos futuros e, crede-me, Deus saberá vos levar isto em conta. Tive que vos falar como falei, porque me dirijo a criaturas que escutam a razão, a homens que perseguem seriamente um objectivo eminentemente útil: a melhoria e a emancipação da raça humana; a espíritas, enfim, que ensinam e pregam o exemplo, que o melhor meio para lá chegar está na prática das verdadeiras virtudes cristãs. Tive que vos falar assim,", porque era necessário vos premunir contra um perigo (V), que era meu dever assinalar; venho cumpri-lo. Assim, agora posso encarar o futuro sem inquietude, porque estou convencido de que as minhas palavras serão proveitosas a todos e a cada um; e que o egoísmo, o amor-próprio e a vaidade, de agora em diante, não terão poder sobre os corações em que reine completa a verdadeira fraternidade. 

"Vós vos lembrareis, espíritas de Bordéus, que a vossa união é o verdadeiro encaminhamento para a união e a fraternidade universal; e, a esse respeito, sinto-me feliz, muito feliz, por poder constatar claramente que o Espiritismo, por si, vos impulsionou a dar um passo em frente. Recebei, pois, as nossas felicitações, pois aqui falo em nome de todos os Espíritos que presidem à grande obra de regeneração humana, já que, por vossa iniciativa, se abriu um novo campo de exploração e uma nova causa de certeza aos estudos dos fenómenos de além-túmulo, por vosso pedido de filiação, não como indivíduos isolados, mas como grupo compacto, à Sociedade iniciadora de Paris. Pela importância deste passo, reconheço a alta sabedoria dos vossos guias principais e agradeço ao terno Fénelon e aos seus fiéis coadjutores Georges e Marius, que com ele presidem às vossas piedosas reuniões de estudo. Aproveito esta circunstância para, igualmente, dar um testemunho brilhante aos Espíritos Ferdinand e Felicia, que todos conheceis. Embora estes dignos colaboradores tenham apenas feito o bem pelo bem, é bom saberdes que é a esses modestos pioneiros, secundados pelo humilde Marcelino, que a nossa santa doutrina deve ter prosperado tão rapidamente em Bordéus e no sudoeste da França. 

"Sim, meus fiéis crentes, a vossa admirável iniciativa será seguida, bem o sei, por todos os grupos espíritas formados seriamente. É, pois, um imenso passo em frente. Compreendeis e, todos compreenderão como vós, que vantagens, que progressos, que forma de divulgação a propagar e resultarão da adopção de um programa uniforme para os trabalhos e estudos da doutrina que vos revelamos. Não obstante, fique bem entendido que cada grupo conservará a sua originalidade e a sua iniciativa particular; mas, fora de seus trabalhos particulares, terá que ocupar-se de diversas questões de interesse geral, submetidas ao seu exame pela Sociedade central (VI) e, resolver várias dificuldades, cuja solução até agora não foi obtida dos Espíritos, por motivos que seria inútil aqui desenvolver. Então, quem ousará contestar uma verdade, quando esta for confirmada pela unanimidade ou pela maioria das respostas mediúnicas, obtidas simultaneamente em Lião, Bordéus, Constantinopla, Metz, Bruxelas, Sens, México, Carlsruhe, Marselha, Toulouse, Mâcon; Sétif, Argélia, Oran, Cracóvia, Moscou, São Petersburgo, como em Paris? (VII) 

''Eu vos ocupei com a rude franqueza com que falo aos vossos irmãos de Paris. Não obstante, não vos deixarei de testemunhar as minhas simpatias, justamente conquistada, esta família patriarcal, onde excelentes Espíritos, encarregues da vossa direcção espiritual, começaram a fazer compreender as suas eloquentes palavras. Citei a família Sabò, que soube atravessar com uma constância e uma piedade inalterável as dolorosas provas com que Deus a afligiu, a fim de a elevar e a tornar apta para a sua missão actual. Também não devo esquecer o concurso dedicado de todos quantos, nas suas respectivas esferas, contribuíram para a propagação da nossa consoladora doutrina. Continuai todos, meus amigos, a marchar resolutamente no caminho aberto: ele vos conduzirá seguramente para as esferas etéreas da perfeita felicidade, onde vos marcarei encontro. Em nome do Espírito de Verdade, que vos ama, eu vos abençoo, espíritas de Bordéus. Erasto." 

Esta a longa e importante mensagem enviada pelo Espírito. Coincidentemente, o seu destino fora Bordéus, cidade de Roustaing e da médium Collignon. O seu tom sério, quase viril, reconhecido pelo próprio Erasto, faz perceber que alguma razão muito forte motivou o envio da mensagem. Aliás, neste teor muito raramente os Espíritos se manifestam. Só o fazem quando há razões justificáveis. E a razão bem poderia ser a "rara reunião de médiuns" da região de Bordéus. Por que não? O Espírito ressalta este facto com bastante ênfase, chama a atenção para os perigos da invigilância, preocupado com a "turba de espíritos enganadores que… em breve virão assaltar-vos", mostrando os ardis de que se serviriam eles, "uns com dissertações sabiamente combinadas, nas quais, graças a passagens piedosas, insinuarão a heresia ou algum princípio dissolvente". Erasto é neste ponto tão incisivo que chega a dizer para que não temessem "desmascarar os embusteiros que, novos Tartufos, se introduziriam… sob a máscara da religião". Só falta citar "Os Quatro Evangelhos"… E com severidade clama: "sede igualmente impiedosos para com os lobos devoradores, que se ocultariam debaixo de pele de cordeiro". Bordéus se oferecia aos Espíritos enganadores como nenhum outro lugar, dado que ali se encontravam muitos médiuns. E Erasto compreende que somente a "união, a paz e a unidade da doutrina" seriam capazes de evitar que houvesse a intromissão daqueles Espíritos. Fala com severidade: 

"Tive que vos falar assim porque era necessário vos acautelar contra um perigo, que era meu dever assinalar". Espera que, daquele momento em diante, o "egoísmo, o amor-próprio ou a vaidade" não se aposse dos "corações onde reine a verdadeira fraternidade". Destaca como portadoras de "qualidades mediúnicas no mais alto grau" a Sra. e Srta. Cazemajoux (não diz de Collignon!), entre outros. Ressalta o valor da família Sabà (e não se refere a Roustaing). Agradece a Espíritos como FénelonFerdinand e outros. Tudo isso "em nome do Espírito de Verdade''. 

Não é fora de propósito assinalar que Kardec tinha em grande consideração o movimento espírita de Bordéus. Ao longo dos anos em que dirigiu a "Revista Espírita", publicou inúmeras mensagens de médiuns daquela cidade, além de notícias e comentários sobre o Espiritismo lá praticado. A própria médium Collignon viu, até 1865, trabalhos de sua lavra mediúnica publicados por Kardec. Depois dessa época, quando apareceram "Os Quatro Evangelhos", não mais esteve na "Revista Espírita", pelo menos enquanto esta esteve sob a direcção do Codificador. Tal não se deu, porém, com outros médiuns de Bordéus que continuaram tendo o apoio de Kardec. Entre estes, as Cazemajoux

Por outro lado, a mensagem de Erasto chegou a Bordéus numa época em que se esboçavam já os planos para "Os Quatro Evangelhos". As advertências que fez teriam sido motivadas já por estes planos? Não é improvável. Veja-se a afirmativa a respeito dos Espíritos enganadores e seus ardis, ao dizer que se apresentariam com "dissertações sabiamente combinadas, nas quais, graças a passagens piedosas, insinuariam a heresia ou algum princípio dissolvente". É, pois, possível concluir que Erasto procurava evitar a concretização de um plano que se constituiria em divisor no movimento espírita, como o é o do corpo fluídico de Jesus pregado por Roustaing… 

/... 
(I) "Revista Espírita", 1.ª edição em português pela Edicel, novembro de 1861, página 364. 
(II) Grifo nosso. Observe-se como Erasto chama a atenção para a presença dos Espíritos enganadores. Nesta ocasião, "Os Quatro Evangelhos" estavam sendo iniciados. Esta mensagem é uma verdadeira profecia, motivo pelo qual jamais seria transcrita pelos Autores de "Allan Kardec". 
(III) Grifo ainda nosso. Essa afirmativa é muito importante porque "Os Quatro Evangelhos" são sabidamente contrários à "moral do Evangelho e aos princípios gerais do Decálogo". A maioria dos que se detiveram no estudo crítico da obra roustainguista verificaram esse facto. Herculano Pires escreveu, inclusive, um capítulo em "O Verbo e a Carne" a esse respeito. 
(IV) Grifo nosso. 
(V) Grifo nosso. 
(VI) Roustaing nunca deu ouvidos a essa observação de Erasto. Não manteve nenhum contacto com Kardec durante a elaboração de sua obra. Fez tudo só e apenas depois de concluída e publicada deu conhecimento dela ao Codificador. 
(VII) Observe-se o destaque de Erasto para o princípio da universalidade dos ensinos que os roustainguistas desprezam e os Autores de "Allan Kardec" procuram colocar em segundo plano relativamente a Roustaing (vol. III, página 367). 


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Terceiro – OS MÉDIUNS DE BORDÉUS, 9º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Inquietações Primaveris ~


A Heróica Pancada 
(II de II) 

Um cidadão ilustrado, diplomado e doutorado, que aceita ao mesmo tempo os dogmas absurdos de uma igreja e os princípios racionais da Ciência, mostra desconhecer o princípio de contradição, da lógica, em que duas coisas não podem ser, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, ambas verdadeiras. Esse cidadão, por mais honesto que seja, sofre de uma falha mental no seu raciocínio, produzida por interferência de elementos efectivos e exacerbados na sua mundividência. Toda a sua cultura, todos os seus títulos, toda a sua fama nos meios socioculturais não podem salvá-lo da condenação intelectual a que se destina e da ingenuidade infantil a que se entrega no plano filosófico. Ou aceitamos a verdade científica demonstrada e provada do nosso tempo, com as suas perspectivas abertas para o amanhã, ou nos inscrevemos nas fileiras sem fim dos retrógrados, tentando tapar inutilmente o sol com a peneira. 

O amor à verdade é intransigente, porque a verdade é uma só. Os que sustentam o refrão ignorante da verdade de cada um, simplesmente revelam não conhecer a verdade e as suas exigências. 

A Educação para a Morte só pode basear-se na Verdade Única, provada com exclusão total das verdades fabricadas pelos interesses humanos ou pelo comodismo dos que nada procuram e por isso nada sabem. O homem educado na Verdade não usa as máscaras da mentira convencional nem pode ser um sistemático. A paixão da verdade enjeita toda a mentira e o faz lembrar os versos de Tobias Barreto, aplicando-os ao campo incruento das batalhas pelo futuro: 

Quando se sente bater 
no peito heróica pancada, 
deixa-se a folha dobrada 
enquanto se vai morrer 

A intuição desses versos supera as exigências formais da poética para inscrevê-los na realidade viva de uma existência humana voltada para a transcendência. Quando a verdade é ferida, ou simplesmente tocada por dedos impuros, aquele que a ama em termos de razão fecha o livro de seus estudos e pesquisas para morrer por ela, se necessário. Mas, entregando o cadáver à Terra, a que ele de facto pertence, ressuscita no seu corpo espiritual e volta aos estudos subitamente interrompidos. A reencarnação lhe permitirá, até mesmo, retomar na própria Terra, noutro corpo carnal regido pelo seu mesmo corpo espiritual, os trabalhos que nela deixou. A morte não é um esqueleto, com a sua caveira de olhos esburacados e um sabre sinistro nos ombros, como a figuraram desenhadores e pintores de outros tempos. A sua imagem real, liricamente cantada pelo poeta Rabindranath Tagore, é a de uma noiva espiritual, coroada de flores, que nos recebe nos portais da Eternidade para as núpcias do Infinito. Aqueles que assim a concebem não a temem nunca, nem desejam precipitar a sua chegada, pois sabem que ela é a mensageira da Sabedoria, que vem nos buscar após o labor fecundo e fiel nos campos da Terra. 

“Vem, ó Morte, quando chegar a minha hora, envolver-me em tuas guirlandas floridas” – exclamava Tagore num dos seus poemas-canção, já velho e cansado, mas com os seus olhos serenos reflectindo entre as inquietações humanas a luz das estrelas distantes. 

Se conseguirmos encarar a morte com essa compreensão e esse lirismo puro, desprovido dos excessos mundanos, saberemos também transmitir aos outros e, especialmente aos que nos amam, a verdadeira Educação para a Morte. 

A Verdade, o Amor e a Justiça formam a tríade básica dessa nova forma educacional que pode e deve salvar o mundo da sua perdição na loucura das ambições desmedidas. Essa tríade expulsará da Terra os espantalhos do Ódio, do Medo, da Violência e da Maldade, que fazem o homem retornar constantemente à animalidade primitiva. Então já não pensaremos em fugir para a Luz e de lá, como júpiteres de opereta, atirarmos para o planeta que nos abrigou no processo evolutivo os raios da nossa ferocidade. A Astronáutica se libertará de suas implicações bélicas e os satélites espiões das grandes potências infernais desaparecerão para sempre. Não somos os herdeiros do Diabo, esse pobre anjo decaído das lendas piedosas, que nos lança na impiedade. Somos filhos e herdeiros de Deus, a Consciência Criadora que não nos edificou para a hipocrisia, mas para a Verdade, a Justiça e o Amor. 

/… 


José Herculano Pires, – Educação para a Morte, A Heróica Pancada (2 de 2), 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

apóstolos de verdade ~


Viva José Herculano Pires! 

Este ano faz precisamente trinta anos que desencarnou José Herculano Pires, um dos maiores vultos do Espiritismo do Brasil. Sim, foi, precisamente, na noite do dia 9 de Março de 1979, que a sua alma gloriosa de grande missionário, defensor da pureza doutrinária do Espiritismo e consolidador da Doutrina Espírita em terras brasileiras, regressou à Pátria Espiritual. Foi com justa razão que Jorge Rizzini, o seu biógrafo, viu em sua pessoa um “Apóstolo de Allan Kardec”, com o que concordamos plenamente. 

José Herculano Pires nasceu na antiga Província do Rio Novo, que é hoje a bela cidade de Avaré, no interior do Estado de São Paulo, no dia 25 de Setembro de 1914. Era o filho primogénito de José Pires Correa casado com Bonina Amaral Simonetti Pires, que lhe deu sete filhos. O seu pai, inicialmente, era farmacêutico, mas abandonou a profissão para se tornar um dos mais brilhantes jornalistas do interior de São Paulo. A sua mãe foi uma distinta pianista de Avaré. 

Herculano Pires pertencia a uma tradicional família católica da classe média e, na infância, teve sérios problemas de saúde. 

A sua faculdade como médium vidente, começou a manifestar-se quando ele era ainda menino. Tinha visões reais de Espíritos andando de noite pela casa. 

Em 1920 a sua família transferiu-se para a cidade de Itaí e depois para Cerqueira César, voltando, logo em seguida, para Avaré, onde foi matriculado na Escola de Comércio, fundada e dirigida pelo Professor Jonas Alves de Almeida. 

Na adolescência, Herculano Pires foi aprendiz de tipógrafo e aluno do erudito Professor Pedro Solano de Abreu, e, durante dois anos, de 1927 a 1929, trabalhou com seu pai, na Gráfica Casa Ipiranga que o Sr. Pires Correa fundara em Cerqueira César, onde residia com a família e onde lançou o primeiro jornal político, um semanário em forma de tablóide, que recebeu o título de “O Porvir”. Herculano Pires foi o seu tipógrafo auxiliar e, nesse órgão da imprensa, publicou os seus primeiros versos e variados contos. 

Herculano Pires, além de poeta e jornalista, foi também professor e grande escritor. 

Desde a adolescência interessou-se muito pelo estudo de temas filosóficos. Deixou então o Catolicismo e, por influência de um parente próximo, Sr. Francisco Correa de Mello, tornou-se teosofista, passando a estudar a fundo os principais livros dessa filosofia, principalmente os de Helena Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica Mas, pouco depois veio a desilusão, porque verificou que a Teosofia lhe apresentou certas explicações que lhe pareciam absurdas. 

Estava então propenso a se entregar ao Materialismo marxista, quando, certo dia, em 1936, encontrando-se com um amigo, que era espírita e fiel discípulo de Allan Kardecfoi por ele desafiado a ler “O Livro dos Espíritos”. Muito a contragosto, aceitou o desafio. Leu e gostou. Gostou tanto que se tornou espírita convicto, levado pelo raciocínio e pela lógica indestrutível que encontrou no Missionário lionês, em quem o astrónomo francês, Camille Flammarion, viu o bom senso encarnado. 

Para Herculano Pires, ser espírita “significa viver o Espiritismo; transformar os princípios doutrinários em norma viva de conduta, para todos os instantes da nossa curta existência na Terra; é praticar o Espiritismo, não apenas no recinto dos Centros ou no convívio dos confrades, mas, em toda a parte: na rua, no trabalho, no lar, na solidão dos próprios pensamentos”. 

Tornou-se conferencista eloquente e muito solicitado pelos presidentes de centros espíritas. Num deles, situado na cidade de Ipauçu, encontrou, certa vez, a bela jovem Maria Virgínia de Anhaia Ferraz, também espírita, por quem se apaixonou e com quem veio a casar-se no dia 11 de Dezembro de 1938, numa cerimónia apenas civil, em casa da noiva. 

Herculano Pires foi um grande polemista, tendo mantido discussões acaloradas com pastores protestantes e sacerdotes católicos e até mesmo com muitos confrades espíritas defensores da obra “Os Quatro Evangelhos” de Jean-Baptiste Roustaing, publicada em Bordéus, em Maio de 1866. Ele não era de cruzar os braços diante das mistificações e abusos praticados no meio espírita, como acontece hoje. 

Ao grande Mestre as nossas sinceras homenagens de admiração e respeito. 

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Erasto de Carvalho Prestes, in O Franco Paladino, Maio de 2009 / Órgão de divulgação do Espiritismo codificado pelo Mestre Allan Kardec – Viva José Herculano Pires!, 1º fragmento solto da obra. 
(imagem de contextualização: São Luís com a coroa de espinhos, desenho de Alexandre Cabanel)