quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

a floresta ~


Alma humana… 

Ó alma humana! Torna a descer à Terra, recolhe-te; vira as páginas do grande livro aberto a todos os olhares; lê, nas camadas do solo que pisas, a história da lenta formação dos mundos, a acção das forças imensas preparando o globo para a vida das sociedades. 

Depois, escuta. Escuta as harmonias da Natureza, os ruídos misteriosos das florestas, os ecos dos montes e dos vales, o hino que a torrente murmura no silêncio da noite. Escuta a grande voz do mar! Por toda a parte retine o cântico dos seres e das coisas, a vida ruidosa, o queixume das Almas que sofrem ainda, qual se permanecessem aqui e, fazem esforços para se libertar da ganga material que as estreita. 

A floresta estende até ao horizonte longínquo as suas massas de verdura que estremecem sob a brisa e ondulam, de colina em colina. Através das espessas ramadas, a luz se escoa em louras estrias sobre os troncos das árvores e sobre os musgos; o sopro da brisa folga nas ramagens. O Outono junta a esses prestígios a simpatia das cores, desde o verde-amarelado até ao vermelho-rubro e ao ouro puro; matiza e cresta as moitas; amarela de ocre os castanheiros, de púrpuras as faias; aformoseia as urzes róseas das clareiras. Embrenhemo-nos sob a folhagem. À medida que avançamos, a floresta nos envolve com os seus eflúvios e o seu mistério. Aromas fecundos sobem do solo; as plantas exalam subtil perfume. Poderoso magnetismo se desprende das árvores gigantescas e nos penetra e nos inebria. Mais longe, raios dourados penetram a clareira e fazem brilhar os troncos das bétulas qual fossem as colunatas de um templo. Mais longe ainda, bosques sombrios aparecem cortados em linha recta por uma aleia que alonga, a perder de vista, as suas arcadas de verdura, semelhantes a abóbadas de catedral. Por toda a parte se abrem refúgios cheios de sombra e de silêncio, solidões profundas que inspiram uma espécie de emoção. Caminhamos aí sob espessas trevas, crivadas de gotas de sol. 

Aqui, uma faia venerável arredonda no flanco de um cabeço os seus folhudos zimbórios. Ali, são os carvalhos que inclinam sobre o espelho de uma lagoa as suas espessas ramagens. Uma árvore secular, patriarca dos bosques, respeitada pelo machado e, que três ou quatro homens não poderiam abraçar, eleva-se isolada, alta qual uma igreja. O raio a tem visitado várias vezes, conseguindo, apenas, quebrar-lhe os galhos, deixando-a sempre de pé, altiva e protectora. O seu pé intumesce de raízes monstruosas, alcatifadas de musgos; coleópteros, semelhantes a pedras preciosas, correm sobre a sua rugosa casca. 

Em triste solidão, diversos pinheiros expandem os seus fustes avermelhados e os seus galhos torcidos em forma de lira. Será um capricho da Natureza? O pinheiro é a árvore musical por excelência. As suas agulhas finas e maleáveis balançam ao vento cheias de carícias e cochichos. 

Como é bom perambular sob a sombra silenciosa e comovente dos grandes bosques, ao longo do límpido regato e dos apagados trilhos traçados pelos cabritos! Como é agradável estendermo-nos sobre o veludo das alfombras ou sobre o tapete dos fetos, na base de qualquer rochedo granítico, para seguir o carreiro dos escaravelhos dourados sobre as ervas, das lagartixas sobre as pedras e, prestar ouvidos aos alegres trinados dos passarinhos! Um mundo invisível se agita e freme em redor: concertos dos infinitamente pequenos acalentando o repouso da terra; insectos, em legiões, fazem a sua ronda a um raio de luz, ao mesmo tempo que do cimo de um álamo a toutinegra se faz ouvir em garganteios de pérolas. Aqui, tudo é gozo de viver e metamorfose fecunda! No seio de um ramalhete de árvores, a fonte jorra entre os rochedos; ela se espreguiça sobre um leito, de pedras, entre florinhas e campânulas, hortelãs bravas e salvas. Do sulco esculpido pelas águas, aonde vêm beber os passarinhos, a onda cristalina corre gota a gota e murmura docemente. Um grande pinheiro sombreia e protege a pequenina concha. O vento agita as suas agulhas, enquanto a fonte murmura a sua cantilena. Um raio de sol, deslizando pela ramagem, vem por mil reflexos faiscantes sobre a toalha límpida. No ar, libélulas dançam e folgam; bonitas moscas multicores zumbem ao cálice das flores. Na paisagem tranquila, a água corrente e murmurante é um símbolo da nossa vida, que surge nas profundezas obscuras do passado e foge, sem nunca parar, para o oceano dos destinos, aonde Deus a conduz para tarefas sempre mais altas, sempre novas. Pequena fonte, pequeno regato, amigo dos filósofos e dos pensadores, vós me falais da outra margem, para a qual eu me encaminho a cada segundo e, me recordais que tudo, em volta dos seres, é lição, ensinamento para quem sabe ver, auscultar e compreender a linguagem desses seres e de todas as coisas! 

Mas, de repente, o vento sul irrompe; um sopro poderoso passa sobre a floresta, que vibra qual um órgão imenso. Semelhante a uma onda de esmeraldas, o grande fluxo vegetal intumesce pouco a pouco, ondula e sussurra. Um coração invisível anima a solidão feraz. Os troncos gigantescos se torcem em longos gemidos. Clamores sobem das touceiras; dir-se-ia o rodar de carros ou de exércitos que se entrechocam. 

O carreiro ganha um planalto e serpenteia através de um bosque de castanheiros. Estas árvores centenárias tremem ao vento. Inclinando os seus galhos pesadamente carregados, elas parecem dizer ao homem: Colhe os meus frutos, nos quais destilei o suco da minha medula; guarda os meus galhos mortos, que no Inverno aquecerão o teu lar. Toma, porém, não sejas ingrato, nem indiferente, porque toda a Natureza trabalha para o teu proveito. Não sejas ingrato, senão as provações, as rudes lições da adversidade virão fatalmente atingir o teu coração, arrancar-te, cedo ou tarde, à tua indiferença, às tuas dúvidas, aos teus erros e orientar o teu pensamento para a compreensão da grande Lei! 

Imediatamente a impressão muda e se adoça. O vento se foi. A charneca sucedeu à floresta; os tojos, as alfazemas, as giestas fazem séquito à augusta assembleia dos bosques. Sobre uma elevação do solo, um alto monólito se levanta, no centro de um círculo de pedras, coberto de musgo, umas ainda de pé, outras jazendo na relva, contando a história das raças milenares, os seus sonhos, as suas tradições, as suas crenças. O espectáculo dessas pedras enigmáticas nos reconduz ao abismo dos tempos. Daí se origina a melancolia das coisas desaparecidas, enquanto que, em seu redor, a Natureza nos dá a sensação de mocidade eterna. 

Nas encostas, vales se abrem, declives se aprofundam. Sob moitas bastas e odoríferas, puras, frescas, surgem fontes; o seu murmúrio enche o vale. O dia declina. Através das gargantas, numa chanfradura azulada, o Sol projecta reflexos de púrpura e ouro. Alvores de incêndios aparecem na orla dos bosques. Atrás, sob os fogos do poente, a grande floresta zimborial expande os seus bosques gigantescos, os seus maciços cerrados, todo o sumptuoso e cativante vestuário de que o Outono o adornou. Os raios oblíquos do Sol perpassam entre as colunatas e vão iluminar as solidões longínquas; fazem sobressair às folhagens multicores; ruivos variados, ouros foscos, vermelhos brilhantes, cromos e lacas; tudo se ilumina, tudo flameja numa espécie de apoteose. Diante dessa fantástica decoração, que me fascina, na paz da tarde, o meu pensamento se exalta e eleva, sobe à Casa de tantas maravilhas, para glorificá-la! 

Tudo na floresta é encanto, quer na Primavera, quando as seivas potentes incham as suas mil artérias, quer quando os rebentos novos reverdecem fartamente, quer quando o Outono a decora de tintas ardentes, de cores prestigiosas, ou quando o Inverno a transforma num mágico palácio de cristal, que as sombrias ramadas moldam debaixo da neve, ou se carregam de pingentes diamantinos, transformando cada pinheiro em árvore de Natal. 

A floresta não é somente um maravilhoso espectáculo; é ainda um perpétuo ensinamento. Ela nos fala, sem cessar, das regras fortes, dos princípios augustos que regem toda a vida e, presidem à renovação dos seres e das estações. Aos tumultuosos, aos agitados, oferece os seus retiros profundos, propícios à reflexão. Aos impacientes, ávidos de gozo, diz que nada é duradouro, senão aquilo que custa trabalho e precisa tempo para germinar, para sair da sombra e subir para o céu. Aos violentos, aos impulsivos, opõe a vista de sua lenta evolução. Verte a calma nas almas enfebrecidas. Simpática às alegrias, compassiva às dores humanas, ela cura os corações chagados, consola, repousa e comunica, a todas as forças obscuras, as energias escondidas no seu seio. A lenda de Anteu é sempre aplicável aos feridos da existência, a todos aqueles que esgotaram as suas faculdades, as suas potências vitais nas ásperas lutas deste mundo. Basta-lhes porem-se em contacto com a Natureza, para encontrarem, na virtude secreta o que dela emana, recursos ilimitados. 

E que analogias, que lições em todas as coisas! A bolota, sob o seu invólucro modesto, contém não só um carvalho completo no seu majestoso desenvolvimento, mas uma floresta inteira. A semente minúscula encerra no seu garrido berço toda a flor, com a sua graça, as suas cores, os seus perfumes. De igual maneira, a Alma humana possui, em gérmen, todo o desenvolvimento das suas faculdades, das suas potências futuras. Se não tivéssemos sob os olhos o espectáculo das metamorfoses vegetais, nós nos recusaríamos a crê-lo. As fases de evolução das Almas no seu curso nos escapam e, não podemos compreender actualmente todo o esplendor do seu porvir. Temos, no entanto, um exemplo disso na pessoa desses génios, que passaram através da História deslumbrantemente, deixando aos pósteros obras imperecíveis. Tais são as alturas a que se podem elevar as Almas mais atrasadas na escada das vidas inumeráveis, com o auxílio destes dois factores essenciais: o tempo e o trabalho! 

Assim, a Natureza nos mostra, em toda a beleza da vida, o prémio do esforço paciente e corajoso e a imagem dos nossos destinos sem-fim. Ela nos diz que tudo está no seu lugar no Universo; mas também que tudo evolve e se transforma, Almas e coisas. A morte é apenas aparente; aos tristes Invernos, sucedem os dias primaveris, cheios de vida e de promessas. 

A lei de nossas existências não é diferente das estações. Depois dos dias de sol, do Verão, vem o Inverno da velhice e, com ele, a esperança dos renascimentos e de nova mocidade. A Natureza, tal qual os seres, ama e sofre. Por toda a parte, debaixo da onda de amor que transborda no Universo, encontra-se a corrente de dor; mas esta é salutar, pois que, purificando a sensibilidade do ser, desperta nele qualidades latentes de emoção, de ternura e, lhe proporciona, assim, um acréscimo de vida. 

/... 


LÉON DENIS, O Grande Enigma, Segunda parte, O Livro da Natureza (2º fragmento), XI – A floresta (1 de 2). 
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria II – O Céu ~  

A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, sem lugar a contestação, inefáveis encantos particulares. Na organização dos seres descobre-se o incessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre todas as coisas. 

Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos abutres e das pombas. A luz que espalha a viço nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas aéreas. O som que estremece a folhagem canta na orla dos bosques, ruge nas plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas, que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo esplendor da vida planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação aos mundos que aí fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites silenciosas. Esses mundos longínquos que, qual o nosso, se embalam no mesmo éter, sob o império das mesmas energias e das mesmas leis, são igualmente sedes de actividade e vida. Poderíamos apresentar este grandioso e magnífico espectáculo da vida universal como eloquente testemunho da inteligência, sabedoria e omnipotência da causa anónima, que houve por bem reverberar, dos primórdios da Criação, o seu mágico esplendor no espelho da Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligência criadora. 

Se, abrindo os olhos diante desse espectáculo, eles persistirem na sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes, em consciência, que também duvidaremos das suas faculdades mentais. Porque, para falar com franqueza, a inteligência do Criador nos parece infinitamente mais curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros. 

E, como o método positivo consiste em não julgar antes de observar os factos, ocorre-nos o dever de examinar primeiro os factos astronómicos de que falamos e depois da interpretação com que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário, se revelar insensata, temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a desmascarar e entregar ao apupo da plateia. 

Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos e mundos, sistemas depois de sistemas, na infinita sucessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultaneamente vertiginosos e regulares que enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige esses mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso, eléctrico, calorífico do sistema planetário, giram os planetas obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais, conhecidos em Astronomia por leis de Kepler, laborioso sábio que a descobriu graças ao seu génio, como à sua paciência e, que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu mestre Tycho Braheantes que distinguisse sob o véu da matéria a força que a rege. 

Esses três pontos são: 

1º – Cada planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica, na qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos. 

2º – As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vector (1) de um planeta em redor do foco solar são proporcionais aos tempos que levam a descrevê-las. 

3º – Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em torno do Sol, são proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitários. 

A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro a formular na sua obra imortal sobre os Princípios. 

Nesse livro, ensina-nos ele – como bem adverte Herschel – que todos os movimentos celestes são consequências da lei, isto é: – que duas moléculas materiais se atraem na razão directa do volume de suas massas e na inversa do quadrado das distâncias. Partindo deste princípio, ele explica como a atracção exercida entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema, é regulada por uma lei cuja expressão é exactamente idêntica, como os movimentos elípticos dos planetas à volta do Sol e dos satélites à volta dos planetas, tal como os determinou Képler, se deduzem consequentes necessários da mesma lei e, como as próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares dos movimentos planetários. Passando em seguida às aplicações difíceis, faz-nos ver como as desigualdades tão complicadas do movimento lunar se prendem à acção perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da desigualdade de atracção que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios não passa de consequência necessária da mesma lei. 

Pois é à execução dessas leis que está confiada a harmonia do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que derivam a eclosão da vida, a forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a acção incoercível dessas forças colossais, os mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e percorrem centenas de mil léguas por dia, sem parar, seguindo estritamente a rota certa e previamente traçada por essas mesmas forças. 

Se nos fora dado libertar por um momento das aparências, sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo e, se pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre si mesmos, projectados no vácuo a toda a velocidade, quais gigantescas balas que uma força de projecção inimaginável houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos desses comboios ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes e, no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa Terra deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas tanto quanto a destas ultrapassa a das tartarugas. A terra que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a velocidade de seiscentos e cinquenta mil léguas por dia. Rodeando esses mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas adstritos e submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas flutuantes inclinam os pólos alternativamente para o calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando, cada manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo do astro-rei. Tiram, assim, da combinação própria dos seus movimentos, a renovação da beleza e da juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos outonos e dos invernos; coroam de grinaldas as montanhas onde o vento suspira; reflectem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, às vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protector, ou transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a atracção dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os matizes policrómicos dos ocasos comburentes e fremem nos seus pólos às palpitações eléctricas despedidas dos leques de auroras boreais; geram, embalam e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as plantas fósseis, do passado, até ao homem que pensa e sonda o futuro. Todos esses mundos, todas essas moradas do espaço, departamentos da vida, nos apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do oceano celeste tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível, nem fome, nem tempestades. 

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(1) Assim se denomina a linha ideal que liga um planeta ao Sol. 


Camille Flammarion (i)Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu (1 de 3), 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Diálogos de Kardec

O PERISPÍRITO COMO PRINCÍPIO DAS MANIFESTAÇÕES ~


Os Espíritos, como já foi dito, têm um corpo 
fluídico, a que se dá o nome de perispírito. A sua substância é haurida do fluido universal ou cósmico, que o forma e alimenta, como o ar forma e alimenta o corpo material do homem. O perispírito é mais ou menos etéreo, conforme os mundos e o grau de depuração do Espírito. Nos mundos e nos Espíritos inferiores, ele é de natureza mais grosseira e se aproxima muito da matéria bruta. 

Durante a encarnação, o Espírito conserva o seu perispírito, sendo-lhe o corpo apenas um segundo envoltório mais grosseiro, mais resistente, apropriado aos fenómenos a que tem de prestar-se e do qual o Espírito se despoja por ocasião da morte. O perispírito serve de intermediário ao Espírito e ao corpo. É o órgão de transmissão de todas as sensações. Relativamente às que vêm do exterior, pode dizer-se que o corpo recebe a impressão; o perispírito a transmite e o Espírito, que é o ser sensível e inteligente, a recebe. Quando o acto é de iniciativa do Espírito, pode dizer-se que o Espírito quer, o perispírito transmite e o corpo executa. 

O perispírito não se encontra encerrado nos limites do corpo, como numa caixa. Pela sua natureza fluídica, ele é expansível, irradia para o exterior e forma, em torno do corpo, uma espécie de atmosfera que o pensamento e a força de vontade podem dilatar mais ou menos. Daí se segue que pessoas há que, sem estarem em contacto corporal, podem encontrar-se em contacto pelos seus perispíritos e permutar a seu mau grado impressões e, algumas vezes, pensamentos, por meio da intuição

Sendo um dos elementos constitutivos do homem, o perispírito desempenha importante papel em todos os fenómenos psicológicos e, até certo ponto, nos fenómenos fisiológicos e patológicos. Quando as ciências médicas tiverem na devida conta o elemento espiritual na economia do ser, terão dado um grande passo e horizontes inteiramente novos se lhes patentearão. As causas de muitas doenças serão a esse tempo descobertas e encontrados poderosos meios de combatê-las. 

Por meio do perispírito é que os Espíritos actuam sobre a matéria inerte e produzem os diversos fenómenos mediúnicos. A sua natureza etérea não é que a isso obstaria, pois se sabe que os mais poderosos motores se nos deparam nos fluidos mais rarefeitos e nos mais imponderáveis. Não há, pois, motivo de espanto quando, com esta alavanca, os Espíritos produzem certos efeitos físicos, tais como pancadas e ruídos de toda a espécie, levantamento, transporte ou lançamento de objectos. Para se explicarem estes factos, não há porque recorrer ao maravilhoso, nem ao sobrenatural. 

Actuando sobre a matéria, podem os Espíritos manifestar-se de muitas maneiras diferentes: por efeitos físicos, quais os ruídos e a movimentação de objectos; pela transmissão do pensamento, pela visão, pela audição, pela palavra, pelo tacto, pela escrita, pelo desenho, pela música, etc. Numa palavra, por todos os meios que sirvam a pô-los em comunicação com os homens. 

Podem ser espontâneas ou provocadas as manifestações dos Espíritos. As primeiras dão-se inopinadamente e de improviso. Produzem-se, muitas vezes, entre pessoas de todo estranhas às ideias espíritas. Nalguns casos e sob o império de certas circunstâncias, pode a vontade provocar as manifestações, sob a influência de pessoas dotadas, para tal efeito, de faculdades especiais. 

As manifestações espontâneas sempre se produziram, em todas as épocas e em todos os países. Sem dúvida, já na antiguidade se conhecia o meio de as provocar; mas, este meio constituía privilégio de certas castas que somente a raros iniciados o revelavam, sob condições rigorosas, escondendo-o ao vulgo, a fim de o dominar pelo prestígio de um poder oculto. Ele, contudo, se perpetuou, através das idades até aos nossos dias, entre alguns indivíduos, mas quase sempre desfigurado pela superstição, ou da mistura com as práticas ridículas da magia, o que contribuiu para o desacreditar. Nada mais foram até então senão gérmenes lançados aqui e ali. A Providência reservara para a nossa época o conhecimento completo e a vulgarização desses fenómenos, para os expurgar das ligas impuras e torná-los úteis ao melhoramento da Humanidade, madura agora para os compreender e lhes tirar as consequências. 

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos – I O PERISPÍRITO COMO PRINCÍPIO DAS MANIFESTAÇÕES, 10º fragmento solto desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)