O DUQUE DI BICCI DI M.
O catafalco ergue-se no meio do salão nobre do palácio senhorial e os
pesados crepes descem pelas paredes de pedras e argamassa, sob tecto de
cedros envernizados, sustentados por esguias colunas góticas. Flâmulas
em cor de ouro, com seis bolas vermelhas (palle) – emblema da
casa – arrancadas de muitas lanças, em seda fartalhante, descem dos capitéis e
guarnecem os fustes das colunas pardas e altaneiras. Na porta de entrada,
trabalhado em pedra lavrada, destaca-se o brasão com as armas da
família, que descende dos remanescentes M., dominadores até há pouco do grão
ducado da Toscana.
A noite sombreada de nuvens precursoras de tormenta, que logo desabará, tudo
envolve. Ventos fortes vergastam lá fora, ululantes…
Dos arredores, afluem agricultores humildes e senhores da terra, grandes
plantadores de vide e oliveiras; chegam, pressurosos, representantes das
autoridades governamentais da Casa de Lorena e as diversas ordens religiosas da
cidade fazem-se destacar com as roupas coloridas e os estandartes dispostos ao
lado dos tocheiros fumegantes.
Círios e archotes untados de óleo e breu ardem esfuziantes,
dando a coloração amarelo-avermelhada a se projectar por toda a parte, enquanto
servos diligentes, em pesados trajes, e senhores enlutados passam em ruidosa
movimentação por entre carpideiras profissionais adrede contratadas para
lamentarem o extinto, exaltando-lhe as qualidades e posses…
Fora, no pátio de pedras quadrangulares e largas, em volta
do importante chafariz que exibe gracioso cavalo marinho capturado por Vénus
levantando-se de concha ampla, os cocheiros arrumam os carros variados e
conduzem os animais relinchantes às cavalariças, para os defender da tempestade.
Sobre a essa, atapetada de vermelho e negro, ergue-se o
ataúde de madeira preciosa alcochoada de veludo, no qual repousam os despojos
carnais do duque Giovanni di Bicci di M., descendente de Cosme
III, em mortalha característica da Ordem de Santo Sepulcro, a que pertencia, e
que, desde a paz de Viena, se recolhera a singular abatimento…
Viúvo há três anos aproximadamente, fechara-se em áspera
reclusão no seu palácio situado nos arredores de Siena, entre bosques frondosos
e seculares, ao lado dos filhos do casal, cuja primogénita, Grazziella, que
contava apenas 7 anos, não conseguia afugentar da sua alma os fantasmas da dor
e da saudade.
Dona Ângela, a senhora duquesa, partira
subitamente, vítima de “febres” (i) estranhas que assolaram a região, situada
nos alagamentos das planuras, despedaçando o coração do nobre esposo, que ainda
não completara quarenta anos de idade. O sofrimento, que desde então o
enlutara, fez-se-lhe cruel verdugo, esmagando-o continuamente.
Com o matrimónio, Dona Ângela trouxera para o Solar di Bicci
um sobrinho órfão, de quem cuidava com extremada abnegação
desde antes que lhe houvessem chegado os próprios filhos, incluindo-o, logo
após; entre os “rebentos” da sua vida, graças à generosa aquiescência do
consorte.
De carácter fraco, o filho adoptivo do casal revelou, desde
cedo, tendências para a dissolução, a aventura, os prazeres violentos, como,
aliás, eram habituais na época em que se destacavam as ambições guerreiras, as
disputas pelo favoritismo artístico e as concessões religiosas no jogo para a
dominação dos homens.
Conquanto a austeridade dos senhores, que se dedicavam à
agricultura, proprietários que eram de extensas áreas próximas à cidade, havia
na herdade educadores que se encarregavam da preparação dos descendentes da
família e especialmente de Girólamo, o qual todavia, passara a residir em Siena
logo após a desencarnação da tia, a fim de prosseguir os estudos.
Alto e vigoroso, Girólamo possuía porte empertigado e
atraente, agraciado com os requisitos da beleza física, de que se utilizava
indevidamente para explorar moçoilas inexperientes e triunfar socialmente onde
se apresentava.
Como era natural, por impositivo das leis das afinidades, o
moço frequentava as reuniões alegres da cidade nas bisca e betolla (ii)
mal afamadas, nas quais aprimorava as inclinações negativas da personalidade
infeliz.
Não perdoava a arrogância do tio que o
expulsara, sob o ardiloso pretexto do programa de estudos, da villa impotente,
onde, conforme ambicionava, esperava dominar algum dia.
Rebelde e irascível, possuía temperamento voluntarioso e
apaixonado, insistindo até ao desvario, quando arquitectava possuir uma presa
para os aguçados instintos. Insinuante, sabia fazer-se estimar, e, ao
consegui-lo, golpeava os que dele se acercavam, com certeira e segura manobra.
Dessa forma conquistara Assunta, jovem aia da duquesa,
que lhe fascinara o apetite e que dele, a seu turno, se enamorara. Frívola e
irrequieta, a moça se lhe entregara à desgovernada paixão, constituindo-se
segura e fiel informante de quanto ali ocorria, quando ele se demorava em Siena.
/…
(i) Maremma toscana – impaludismo.
(ii) Bisca e betolla: tasca e
cabaré.
Victor Hugo, Espírito "PÁRIAS EM REDENÇÃO" – LIVRO
PRIMEIRO 1. O DUQUE DI BICCI DI M. 1 de 3, 1º fragmento da obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898,
tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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