quinta-feira, 21 de abril de 2022

~~~ Párias em Redenção ~~~


FÚRIA ASSASSINA 
(II de III) 

De retorno, na sege especial, Assunta meditava quanto ao próprio destino. 

As circunstâncias precipitaram-se e ela, repentinamente, se vira envolvida por densa treva interior, que a amargurava agora. 

É certo que não sentia o clamor do remorso convocando-a a outra atitude mental, por enquanto. Todavia, quando recordava as personagens assassinadas, um estranho arrepio a fazia gelar. As crianças se lhe entregaram confiantemente e aqueles haviam sido dias de dor no palácio. As suas mãos, sim, aquelas mãos bem talhadas e mimosas adicionaram o entorpecente ao chá, preparando o caminho para o malfeitor. Acontecia, porém, que o bandido era o homem amado. Que não faria por ele!? Amava-o até à loucura, apesar de saber que ele não a amava. Por estranho sortilégio, sabia-se apenas um meio de exploração para o prazer, utilizado por Girólamo. 

E reflectia, enquanto a carruagem vencia as estradas tortuosas, lamacentas e mal cuidadas: amava o rapaz há mais de um ano e a ele se entregara, desde então. Por que somente agora essa volúpia a desgraçara? Ele nunca lhe prometera fidelidade nem matrimónio e ela pouco se importara com as consequências. Ante o aceno de uma ventura, sim, impossível, ela fora capaz de trair aqueles aos quais muito devia e acumpliciar-se num hediondo assassínio, em que a sua amiga e as crianças pequeninas foram vítimas indefesas! 

Recordando os dias que precediam a trágica acção, as lágrimas lhe saltaram dos olhos, desmesuradamente, pôs a mão espalmada sobre o peito ofegante, comprimindo a efígie de delicada madona, uma desconhecida sensação de horror e culpa que lhe estrangulava a garganta, quase impedindo a respiração, que se tornou entrecortada e difícil. 

– Assassina! – pareceu escutar de momento. 

Seria a consciência atormentada? Era má, sem dúvida, no entanto, era também jovem e inexperiente, e se deixara vencer pela impiedade do rapaz cruel. Recordou-se do amante que lhe impunha essa fuga, exactamente a ela que também era vítima e, num relance, veio-lhe a ideia fuzilante de que o companheiro desejava libertar-se dela, para, então, gozar. Por que Girólamo a desposaria, havendo tantas mulheres ricas, formosas e, sendo ele contumaz explorador? Sacudida por essa lembrança violenta, a mágoa e o receio foram substituídos pelo ódio, que lhe irrompeu em catadupa. Desejou retornar, enfrentar o verdugo da sua paz e intimidá-lo, fazendo-o compreender devidamente, repetindo-lhe na face e demonstrando com todo o vigor do seu espírito desesperado a intrepidez com que o enfrentaria, indo até aos últimos lances, na tentativa de o não perder. Contraiu os lábios e sentiu o amargor da situação em que se enleara. Dominou-se, porém, recobrando um pouco a serenidade. 

Longas horas se passaram e o cansaço, o relaxamento repentino substituíram a tensão e a ansiedade dos últimos dias, fazendo-a mergulhar em pesado e incómodo sono. 

Com o espírito atribulado, a moça, logo adormeceu, experimentou a lucidez do despertamento espiritual e viu-se diante da Senhora duquesa, cujo olhar a penetrava dolorosamente. Sentia-se no corpo e fora dele: cansada e consciente. A tez pálida e os grandes olhos nublados pelas lágrimas, na senhora, falavam, sem palavras, duras recriminações. Aquele olhar desnudava-a inteiramente. A veneranda Entidade, que a recebera no seu solar anos antes e que lhe dera a mão de auxílio, quando a adversidade obrigara os seus pais a situar as filhas nos burgos florescentes da Toscana, vítimas que haviam sido das surpresas do destino, parecia perguntar-lhe em silêncio: “Que fora feito do sentimento de gratidão, na tua alma infeliz?” Fitando a protectora, parecia rever as crianças alegres, que brincavam nos seus braços e que dias antes estiveram sob a sua guarda, quando do velório e do sepultamento do Senhor duque. O sorriso inocente e cristalino dos pequeninos percutia nos seus ouvidos, como se os despedaçasse por dentro e, as suas vozes infantis brincavam melodias na acústica do seu espírito atormentado. Revia Lúcia, confiante, deixando-se tranquilizar ante a sua assistência fingida, – Lúcia, que se fizera cão devotado e zeloso dos pequenos rebentos dos di Bicci. Vencida pela tristeza infinita daquela face marmórea, desfigurada e silenciosa, a sequaz de Girólamo ajoelhou-se, visivelmente infeliz e, rogou perdão… 

– Como pudeste, Assunta – indagou, com inexcedível expressão de voz, a Senhora di Bicci –, transformar em veneno o licor da amizade que eu depus na taça do teu coração? Como te foi possível adicionar às minhas dores as brasas do desconforto e da amargura, para que eu acompanhe o duque, hoje esmagado de angústia, transformado em fera impiedosa e irracional, que persegue o seu caçador e terminará por destruí-lo? Os meus filhinhos não morreram: libertaram-se de dura canga; Lúcia não desapareceu nem se consumiu, apenas dorme sob os meus cuidados. Hoje, sou-lhe a servidora devotada e reconhecida. Tenho-a como filha do meu coração, sacrificada pela sanha criminosa de alguém a quem nutri com o leite da misericórdia e da compaixão… Ela resgata e ele se infelicita. Ela sublima a vida e ele aniquila a esperança. Onde colocaste o sentimento, Assunta? Não te comoveu o sono inocente e confiante dos meus filhos? Acreditas em felicidade sobre cadáveres? Crês que o assassino da infância não será, também, oportunamente, o destruidor da viciada? Confias a vida a quem destrói vidas? Apiedo-me de ti e, venho em teu socorro. 

Emocionada, compungida, a matrona pôs a mão muito delicada sobre a atormentada mulher e prosseguiu: 

– Foge de Girólamo, enquanto é tempo. Evade-te da Toscana. És jovem e bela. O futuro diminuirá a chama do presente e poderás carpir e resgatar os teus crimes sem te afundares noutros. Utiliza a vida e aprende a amar como Jesus nos amou. Só o amor verdadeiro, fundamentado na compaixão, na misericórdia, na consciência tranquila e na devoção até ao sacrifício, redime a criatura. O teu crime, nascido na insensatez e na lubricidade, exigirá de ti um tributo pesado de dores que poderás pagar se fugires, evitando a hiena que virá, logo mais, despedaçar o cadáver das suas esperanças, tripudiar sobre a vã loucura dos teus desejos, já desprezados por ele… Girólamo está louco e, a sua é uma enfermidade sem remédio, no momento; sem esperança, por enquanto. Evita ficar em Florença… 

– Perdoai-me, senhora! Desgraçada que sou, – bradou a infortunada. 

– Perdão, minha filha, só o do Nosso Pai e, depois, o da nossa consciência. Quando sentires a isenção da culpa, estarás, então, perdoada. Eu não te culpo, nem te exprobro a conduta leviana, cujas consequências, imprevisíveis de momento, não me cabe ajuizar. Distendo-te mãos de socorro, conforme a recomendação do Senhor: “Fazer todo o bem a quem nos faz todo o mal.” O coração materno, fundamente lanhado, vem beber contigo a taça da amargura desmedida. De certo modo, contribuíste para a felicidade e a libertação dos meus amados – lamento profundamente o esposo inditoso, que continua dormindo no desespero! –, liberdade essa que os redime de pesadas culpas, esquecidas, todavia não resgatadas, que clamavam há muito por regularização… Não seria, porém, necessário que fosse o adverso instrumento da Justiça, pois que a Divina Providência possui recursos para cobrança sem criar novos devedores… Não te compliques ainda mais… Foge, portanto, enquanto é tempo e urge a oportunidade. 

– Para onde, senhora, deverei fugir, se atei, inexoravelmente, o meu ao destino do bandido, que amo como obsessão sem lucidez nem raciocínio?! A simples memória de Girólamo me entontece, como licor cujo aroma anuncia a madureza do vinho no barril de carvalho… Agora irei até à destruição total com ele e, se me trair… 

– Nada poderás, minha filha, nada. És fraca e ignorante. Como pode a humilde rolinha, presa no olhar da serpente que prepara o bote, fugir ao esmagamento, ao veneno traiçoeiro, à morte horrível? Não conheces Girólamo, quanto eu conheço. Foge, Assunta e, que Deus tenha piedade da tua alma! 

Aos sacolejos, a carruagem, derrapando e batendo nas pedras da estrada real, foi sacudida com maior violência e a moça, fortemente arrojada do assento veludoso, acordou banhada por álgido e pegajoso suor… Abriu os olhos, fitou a paisagem sombreada por nuvens carregadas e, accionando pequena campainha, que soava ao lado do cocheiro, fê-lo parar o veículo. Muito pálida, abriu a porta e semicambaliante ensaiou alguns passos, para cair… 

O cocheiro saltou pressuroso e carregou-a para dentro do veículo, com receio de algo mau. Após aspergir água fria sobre o seu rosto, despertou-a, indagando quanto ao seu estado de saúde. 

– Sofri um pesadelo, – asseverou. Assunta, preocupada. – Não há de ser nada, pois logo passará. Façamos uma pausa, para um pouco de repouso. O ar frio me fará melhor. 

O restante da viagem transcorreu normalmente, não obstante a preocupação continuasse crescente, no cérebro da jovem. 

Chegando a Florença, onde moravam a genitora e diversos outros parentes, que residiam em sítio próximo à cidade, fronteiriço ao rio, a sege, por indicação sua, seguiu directamente para a casa que a acolheria. 

Recebida com alacridade e júbilo natural pela mãe e demais familiares, relatou em sucintas palavras o ocorrido no Palácio di Bicci e a orientação que lhe dera Dom Girólamo, quanto à necessidade de um repouso, enquanto ele reorganizaria o solar, mandando buscá-la mais tarde. Perfeitamente aceita a explicação – embora todos lamentassem as desgraças que desabaram sobre aquela mansão –, Assunta foi acolhida com carinho e contentamento geral. Novamente no lar, refez-se um pouco dos acontecimentos, apesar de não esquecer o estranho sonho que a acometera na viagem, como se fora pressaga anunciação de novas dores. Mesmo desejando demonstrar alegria, sentia-se interiormente conturbada. As paisagens queridas da infância, conquanto nascida em Chiusi, o clima em renovação, embora frio e húmido, a natureza despertando ainda encharcada do Inverno torrencial, não lhe podiam apagar os sinais da preocupação duramente suportada. Os familiares atribuíam que fossem as consequências do drama horripilante, as saudades da companheira e das crianças, evitando atormentá-la com perguntas inoportunas e descabidas… 

/… 
Párias (i). Nota desta publicação. 


VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 4. FÚRIA ASSASSINA (II de III), 12º fragmento desta obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO. 
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

terça-feira, 12 de abril de 2022

o Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~


Capítulo V 

O SIGNIFICADO ESPÍRITA do Materialismo Dialéctico ~

(III de III) 

O que os materialistas dialécticos não deveriam ignorar é que o conceito de movimento traz como consequência um conceito idealista da natureza, quando se reconhece o movimento como a origem das formas. 

O movimento levará sempre a um espiritualismo dinâmico, o que nos faz reconhecer que o materialismo histórico, para permanecer como um verdadeiro materialismo, não devia adoptar a dialéctica de Hegel, já que ela, queira-se ou não, desembocará numa concepção idealista do homem e da vida. A filosofia espírita apresenta ao materialismo dialéctico uma interpretação nova do espírito, baseada na teoria do perispírito, mediante a qual demonstra a substancialidade do Ser e da Ideia, antes considerados como puras abstracções. Por isso, disse Gustave Geley: “A noção do perispírito suprime a grave objecção, feita continuamente ao espiritualismo, quanto à dificuldade de conceber a própria alma sem nenhuma forma definida.” 

Com a teoria do perispírito, o movimento, como as formas materiais, resultam numa consequência da vida Universal. Com ela aparece uma teleologia do Ser, sendo a dialéctica a causa da expansão psíquica dos seres, e o perispírito o receptor da força e da inteligência. O materialismo dialéctico não conseguiu nunca explicar como se produz na mente do indivíduo a pantomnésia, isto é, a conservação da individualidade e das recordações. Porque, se o processo dialéctico é também mental, em virtude de que princípios a memória regista as impressões do mundo exterior e permanece inalterável à consciência do indivíduo? Além disso, que essência misteriosa protege o pensamento, se o movimento o renova totalmente e tudo é e não é ao mesmo tempo? Por que, se ninguém se banhará duas vezes no mesmo rio, a inteligência continua sendo a mesma, sem esquecer as suas aquisições e conhecimentos? Numa palavra, quem preserva a coesão individual e a memória, se tudo está exposto ao processo dialéctico? 

Eis aqui, pois, os pontos capitais a que o materialismo histórico deverá responder. 

O espiritismo pode solucionar o problema, dizendo que o Ser espiritual se mantém inalterável no meio ao processo dialéctico, devido ao perispírito, no qual se resumem toda a sua inteligência e a sua individualidade. O Ser, com efeito, sustenta-se no perispírito, órgão que não pode ser alterado pelas leis do movimento dialéctico. Como veremos, esta interpretação do homem sobrepuja completamente a interpretação materialista da história. Assim, já não é somente o factor económico que determina as condições políticas, artísticas, religiosas e, outras da sociedade, pois nelas intervêm também os elementos espirituais. Porque, se a vida espiritual do homem dependesse exclusivamente dos modos de produção, não existiriam espíritos com sentido de justiça: a inteligência estaria ao nível das formas imperfeitas da sociedade. 

Não obstante, as formas capitalista e socialista são a consequência de estados de consciência, respondendo a dois graus de evolução intelectual e mental do indivíduo. Estes dois graus de evolução deveriam explicar-se pelo estado moral do perispírito, base de todas as sensações do Ser e, pelo maior desenvolvimento palingenésico do homem. Se é certo que os modos de produção aperfeiçoam e ampliam a técnica, vemos, entretanto, que os referidos factores são incapazes de criar no organismo humano novos membros, que o indivíduo pudesse utilizar em seu proveito. Esta impotência dos modos de produção permite à filosofia espírita estabelecer a seguinte conclusão: 

Se a mão foi o primeiro instrumento do qual se valeu o homem, na sua luta pela existência, este mesmo facto nos indica que é sempre a Ideia, ou o Espírito, que rege a realidade objectiva, por intermédio de um órgão material. 

E a isto, para sermos mais explícitos, devemos acrescentar que não foram as forças produtivas da economia que desenvolveram as mãos no indivíduo, mas o próprio poder de materialização do Ser, já que os modos de produção em nada alteraram as formas anatómicas do homem. Podemos dizer que as formas orgânicas do indivíduo não foram tocadas pelo processo dialéctico da economia, o que nos mostra a existência, na natureza humana, de um princípio psíquico que não poderá ser alterado por nenhuma espécie de influência exteriores. 

O desenvolvimento ou aparição de asas nas espécies voláteis não tem origem de carácter económico, mas corresponde apenas a uma finalidade do perispírito (i) desses seres. O aparecimento das faculdades metapsíquicas na espécie humana não se deve tampouco a qualquer tipo de determinismo económico. O seu desenvolvimento corresponde a factores espirituais que o homem traz em si mesmo, e que irão aumentando à medida que ele avance através do processo palingenésico. 

Entretanto, os factores económicos são elementos que podem influir indirectamente sobre o desenvolvimento metapsíquico do homem. Por isso, no seu aspecto social, a filosofia espírita revela um sentido nitidamente socialista. Um povo economicamente pobre não poderá desenvolver com facilidade o sentido psíquico da vida espiritual; não terá oportunidade para isso, visto que a pobreza sempre engendra o raquitismo. O desenvolvimento de qualquer faculdade metapsíquica nos homens e nos povos requer a organização de uma sociedade próspera, no sentido económico; as nações pacíficas e felizes são as que mais prontamente se aproximam das realidades do mundo invisível. 

materialismo dialéctico deverá reconhecer que a vida do homem tem uma finalidade transcendental. Desse modo poderia conter, como parece desejar, os erros do existencialismo. Porque, se o homem e o cidadão, a sociedade e a história, não possuem uma suprema teleologia espiritualde nada valerá o esforço para instituir na Terra uma sociedade sem classes. Se o homem, repetimos, é um Ser para a morte e para o nada, como o admite o existencialismo ateu, pouco importa que existam ou não classes exploradoras, pois tudo há de terminar na gélida noite do sepulcro. Em compensação, se o Ser é uma individualidade espiritual para a vida eterna, poderão justificar-se as diversas lutas em prol de uma sociedade justa e perfeita. (1) 

A filosofia espírita, que experimentalmente pode provar a existência imortal do Espírito, é uma vigorosa ideologia que poderá inspirar todo o homem que se sacrifique pelo bem e pela igualdade. Se o materialismo dialéctico quer enveredar por este novo caminho da filosofia e da ciência, deverá espiritualizar as suas conclusões e reconhecer que, nos diversos processos da evolução, todo o princípio material tem o seu espírito e, todo o princípio espiritual tem a sua matéria. Desta aproximação entre o material e o espiritual surgirá a mais extraordinária das revoluções, que dignificará o homem, como em nenhum outro período da história. 

 /… 

(1) Os materialistas lutam estoicamente por um futuro que nega o seu objectivismo e os coloca no plano do idealismo. Mariotti acentua essa contradição, dialecticamente resolvida pelo espiritismo. (Nota de José Herculano Pires). 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo V – O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico (III de III), 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali