sábado, 13 de fevereiro de 2021

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Natureza Moral da Terapia Espírita ~ 
(III de III) 

A natureza moral da terapêutica espírita decorre da moral de Jesus, pura e natural, desprovida dos aparatos, rituais e ordenações antinaturais forjadas pelos teólogos. Por isso a terapia espírita, como a de Jesus, não se funda em práticas sacrificiais, em exorcismos demoníacos, em condenações da função genésica do homem e da mulher, mas na liberdade regida pelos princípios básicos da consciência humana, onde – e somente nela – estão inscritas as verdadeiras leis morais da humanidade. 

Os actos naturais, exigidos pela própria continuidade da espécie humana, capitulados como pecados veniais e capitais nas tabelas de preços das indulgências, que provocaram a revolta de Lutero, não são considerados como crimes contra a Divindade. Crimes são os abusos e as perversões desses actos, que nivelam o homem aos animais. Mas a educação é o antídoto desses desvios – a educação natural de Rousseau, desenvolvida nas suas técnicas por Pestalozzi e pelo seu discípulo e sucessor Allan Kardec. Pestalozzi era deísta e universalista, educador por excelência, o homo faber da educação nos séculos XVIII e XIX, mas faltava-lhe a vocação pedagógica, que sobrava a Kardec. Em Kardec havia o doublé de filósofo e cientista, as duas vocações necessárias ao fazer pedagógico, que implica a reflexão global sobre a educação e a complementação experimental da pesquisa científica. Mergulhado nesses dois planos da realidade educativa, Kardec ansiava pela descoberta da essência do homem, da sua natureza última e do seu destino. Entendia, como declarou tantas vezes, que sem esse conhecimento não podíamos conhecer realmente o educando e dar-lhe, por uma educação adequada, o pleno desenvolvimento das suas potencialidades. 

Entregou-se primeiro às pesquisas do magnetismo (i), que lhe revelava um novo aspecto da natureza humana e, mais tarde, perante a insistência de amigos, ao estudo e à pesquisa dos fenómenos paranormais, que na época explodiam por toda a parte. Foi esse o caminho que o levou ao Espiritismo, num verdadeiro acto de amor, para usarmos a expressão de Hubert

Emparelhou-se casualmente com a revolução teológica de Kierkegaard, que fundava na Dinamarca, sem querer, a Filosofia Existencial. A sua tendência platónica levou-o a sonhar com a República de Platão em termos universais, através da educação integral do homem, no desenvolvimento de toda a sua perfectibilidade possível, como queria Kant e como querem ainda hoje os neokantianos do realismo crítico. Essa a relação sensível existente entre a pedagogia de Hubert e Kerchensteiner com a Pedagogia Espírita entranhada na obra kardeciana. O princípio grego da unidade orgânica do Universo decorre de uma visão lógica superior. A Psicologia Infantil mostra-nos que a percepção da criança nas suas primeiras fases do desenvolvimento é fragmentária. O mesmo acontece com os povos primitivos que se isolam no seu torrão e na tribo com a arrogância de únicos habitantes do mundo. Essa incapacidade natural de uma concepção ampla gera o orgulho do exclusivismo racista, da xenofobia, das cidades e das civilizações muradas do geocentrismo e do antropocentrismo. Só o desenvolvimento da civilização, à maneira do desenvolvimento orgânico e da sociabilidade na criança, abre perspectivas para a mente fechada. Os gregos passaram também por esse processo, mas, auxiliados pela sua posição geográfica e por uma capacidade de abstracção mental superior, mostraram-se mais avançados, conseguindo imaginar o mundo como uma unidade orgânica e viva, como vemos na sua teoria do ilosoísmo (ii)

Do outro lado do mundo estavam os celtas, que foram capazes de imaginar o universo hipostásico dos círculos superpostos de Anunf, o círculo infernal; Abred, o círculo das reencarnações; Gwinfid, o círculo divino ou Morada de Deus. Bastaria esses dois exemplos para mostrar a necessidade das migrações entre os mundos habitados no cosmos segundo o princípio espírita. 

O aparecimento do indivíduo em Atenas não decorreu do comércio do Mar Egeu, mas do único milagre grego que se pode admitir: a avançada capacidade grega de abstracção. 

Sócrates, que partilhou da leviandade dos sofistas, abandonou-os ao perceber o vazio das suas teorias e fundou a Filosofia Moral. O moralismo socrático preparou, à distância da corriola rabínica dos sofistas judeus o advento do Cristianismo. Kardec reconheceu essa função precursora de Sócrates e Platão e comparou o estágio evolutivo dos gregos ao dos celtas, que Aristóteles considerou o único povo filósofo do mundo. Note-se bem: um povo filósofo, que os romanos conquistaram para se apoderarem da sua sabedoria. Esse apanhado sucinto e fragmentário dos mundos grego e celta mostra a razão da superioridade da moral espírita, que Kardec desenvolveu na França do iluminismo e da liberdade. 

Curar e educar são funções conjugadas do homem na luta pela sua transcendência. Por isso, Allan Kardec as reuniu nas suas primeiras actividades em Paris, tendo exercido medicina, como assinala André Moreil, confirmando as informações de Henry Sausse, primeiro biógrafo de Kardec e contemporâneo do mestre. Moreil menciona o período em que Kardec exerceu medicina em Paris. Ficou assim anulada a dúvida que se levantou sobre as suas actividades médicas. Por outro lado, é pacífico que ele leccionou ciências médicas em Paris. Era uma inteligência omnímoda e se empenhava com afinco na decifração dos mistérios do homem. A sua maior realização foi a criação da Ciência Espírita. Ela lhe custou muito caro, pois teve de enfrentar sozinho uma batalha sem tréguas com todas as forças culturais, religiosas, políticas e sociais do seu tempo. O seu senso e a sua moralidade comprovam-se actualmente na volumosa obra que deixou como o alicerce inabalável da Ciência e da Filosofia Espírita. 

/… 

(i) mais tarde chamado, hipnotismo... 
(ii) pré socrática, materialista ou ilosoísta... 


José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações terapêuticas, 3 Natureza Moral da Terapia Espírita (III deIII), 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)