segunda-feira, 17 de julho de 2017

o sentido da vida ~

Novo Panteísmo "Realista"

Ao procurarmos situar o Espiritismo, no terreno filosófico, acima das duas correntes clássicas de espiritualismo e materialismo, demos-lhe a designação de realista. Esse realismo, porém, nada tem a ver com o realismo medieval e a sua luta contra o nominalismo. Pode ser antes comparado ao realismo literário de Flaubert, pois o que o caracteriza é a preocupação de ver a vida e o mundo através de uma visão real, a mais real possível, sem o desprezo ou o descuido de qualquer dos aspectos da realidade objectiva e subjectiva, se é assim que podemos dividir, impunemente, a realidade.

Devemos lembrar, entretanto, nesse ponto, que a recusa sistemática em aceitar a teoria espírita e o desinteresse manifesto pela mesma, da parte da maioria dos cientistas modernos e dos modernos filósofos, que torcem o nariz diante dos livros de Kardec e os trabalhos de CrookesMyersRichetAksakof e Oliver Lodge, por sentirem o cheiro de uma grosseira superstição empalhada no museu da culturaconduziram-nos fatalmente a um renascimento forçado do realismo medieval, conjugado com o panteísmo na sua forma mais primitiva. E o dizemos primitiva porque é a forma que poderíamos chamar de panteísmo inconsciente, muito distanciada da forma superior de panteísmo de Espinoza, por exemplo, que, segundo o seu próprio autor, podia confundir-se com o pensamento de Paulo, de que tudo vive e se move em Deus.

Os novos corifeus da cultura, apegando-se a um racionalismo de superfície, que contradiz as maiores virtudes da própria razão, negam todas as possibilidades da sobrevivência individual, para aceitarem, em troca, uma visão infinitamente mais improvável e absurda, da sobrevivência de uma realidade dotada de percepção consciente. Não importa que uma cerebração como a de Oliver Lodge tenha reunido as suas experiências e as suas conclusões, ainda recentemente, em pleno mar da cultura moderna, num trabalho como a monografia Por que creio na imortalidade pessoal. Os grandes sábios da era atómica, embora um cientista de grande evidência no terreno das pesquisas atómicas, como Artur Campton, confirme, em A posição do homem no Universo, as assertivas de Lodge, preferem fugir espavoridos da superstição da imortalidade para se refugiarem no panteísmo científico, que é, na realidade, a mais anti-científica de todas as teorias.

De facto, não negam os nossos homens da ciência, e os possíveis filósofos desta era de pesquisas, a imortalidade da alma. Entretanto, envolvendo essa imortalidade no conceito de eternidade das coisas, confundem o resultado das suas observações parciais com as linhas mais amplas da realidade universal e oferecem à humanidade exausta um imenso borrão, como perspectiva do seu próprio futuro. Apegados ao método científico de indução e dedução, esquecem-se da regra fundamental da convergência das provas, para a qual Ernesto Bozzano nos chama incessantemente a atenção, nos seus trabalhos. Generalizam sobre meia dúzia de conceitos ou de casos, desprezando a maioria, por considerá-los sob o prejuízo da superstição, espécie de pecado original da teologia científica, fonte impura e sempre suspeita, que atemoriza e espanta os ortodoxos.

Não podendo negar a continuidade da vida, que se patenteia a própria continuidade do Universo, e não querendo aceitar a sobrevivência individual, que lhes quebraria o dogma científico do monismo psicofísico, levam de volta o pensamento moderno ao panteísmo primitivo. Deus, embora não o chamem por esse nome, que também cheira a superstição, é a própria natureza, de que tudo provém e a que tudo retorna. As individualidades, sejam humanas, animais, vegetais ou minerais, nada mais são do que ondas que surgem e se apagam, rápidas e efémeras, na superfície do mar infinito da matéria, sucedendo-se através dos tempos, como as próprias ondas do mar. O homem é uma crista de água espumosa que se levanta de súbito na superfície, percorre um certo espaço-tempo e desaparece de novo no líquido comum. O que sobrevive não é o homem, mas apenas os seus elementos constitutivos, a sua matéria e a sua energia. O deus-natureza, caprichoso, ilógico, absurdo, é um monstro universal, de mil tentáculos e de milhões de faces, a criar e a tragar incessantemente as próprias criaturas, a se revelar e se esconder, num torvelinho infernal e numa verdadeira autofagia, mais desoladora e mais horrenda do que tudo o que possa ter imaginado a mitologia pagã e a ingénua teologia católica, a respeito dos domínios satânicos.

Entretanto o homem existe. O homem pensa, vive, sente, pode filosofar. Gogito ergo sum da metade cartesiana. E diante disso, procuram, os sujet-pensant da moderna cultura científica, uma parte de saída através de novo retrocesso filosófico, na volta ao realismo medieval. Vejamos o que dizem H. G. WellsJulian Huxley e G. P. Wells, por exemplo, em A nossa vida mental, tradução e notas de Almir de Andrade, título inglês Science of life, volume oitavo, Man’s mind and behaviour.

Embora sejamos mortais como indivíduos, podemos ser imortais como fases e partes transitórias da evolução contínua e imorredoura de uma realidade dotada de percepção consciente. Quando filosofamos, nas horas de recolhimento e de silêncio, talvez essa filosofia não parta unicamente de nós, mas seja o próprio homem que se revela, na plenitude de si mesmo, através dos nossos pensamentos.”

Durante o século XI, como se sabe, desencadeou-se no mundo filosófico a tremenda luta entre nominalistas e realistas, os últimos afirmando a existência real, positiva, dos universais, que nada mais eram que figuras colectivas das coisas existentes de maneira separada do mundo físico, e os primeiros sustentando a existência apenas destas coisas. Assim, para os realistas, à maneira do que Sócrates e Platão afirmavam sobre os conceitos “gerais”, os homens não são mais do que projecções materiais do Homem universal, a entidade colectiva existente no mundo das ideias. A esse idealismo escolástico são forçados a regressar, como vemos, os corifeus do pensamento científico moderno, quando se negam a aceitar as últimas consequências do esforço humano para o conhecimento mais amplo da vida e do mundo.

A Religião, a Filosofia e a Ciência atingiram um estágio superior, graças à contínua e irrevogável evolução da humanidade e dos seus processos mentais. Nesse estágio não é mais possível manter-se o divisionismo irracional, gerador de antagonismos irreconciliáveis, em que esses ramos do conhecimento humano têm vivido até agora. Chegamos, pois, à era da síntese, ao momento do encontro e fusão dessas partes distintas, para a formação do todo, do corpo único e vitorioso da concepção geral do Universo, por que anseiam o coração e a mente do homem. As forças que se opõem a esse avanço natural não podem fazer outra coisa senão barrar o caminho, desviando o curso normal desses ramos do conhecimento. Esse desvio, uma vez que o avanço foi sustado, não pode tomar outro rumo senão o do regresso ao passado.

O Espiritismo se afirma como a larga estrada do progresso para o pensamento humano, quando pensamos em tais coisas. Ele nos mostra a sua verdadeira natureza do ponto culminante das conquistas mentais e espirituais da humanidade, ao verificarmos que, sem interromper o avanço de nenhum dos ramos do conhecimento e sem voltar para trás, ele pode reuni-los, naquela síntese que nos leva da multiplicidade dos fenómenos ao princípio único que os rege.

Nem foi por outro motivo que sir Oliver Lodge afirmou, em Por que creio na imortalidade pessoal, ser o Espiritismo uma nova revolução copérnicaEle rompe o círculo fechado do pensamento moderno, estilhaçando as esferas de vidro dos novos céus superpostos de Ptolomeu, para colocar o homem diante do espaço infinito, em que os mundos gravitam e a humanidade se expande, para além do organocentrismo ortodoxo da biologia moderna.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Novo Panteísmo “Realista”, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Giovanna ~

V

Giovanna e Maurice haviam trocado os anéis benzidos pelo padre; a data de sua união estava marcada. Os dias passaram para eles, vertiginosamente, entregues que estavam à sua felicidade. Eles desconheciam que um espantoso flagelo avançava para eles, que a sua devastação já havia despovoado as planícies lombardas e que o ar puro das montanhas seria impotente para o deter. Mas que lhes importava, com efeito, as novidades de fora, os barulhos do mundo. O mundo para eles resumia-se em um só ser, o ser amado ! O seu pensamento, já não ia a não ser às regiões supra-terrestres.

Não sonhavam senão com o seu amor, com a vida que se abria diante deles tão bela, tão rica de promessas. Mas a Vontade Suprema iria reverter todas essas esperanças. Depois de haver entrevisto a felicidade ideal, Maurice devia voltar à sombria e desesperante realidade.

O tifo, violento, abatera-se sobre as margens do lago de Gravedona e o vale de Domaso foram sucessivamente atingidos. Alguns dias tinham penosamente passado e já muitas das moradas estavam vazias. A fumaça azulada já não se elevava acima dos telhados. O silêncio, esse silêncio cruel da morte e da perda, substituía o barulho do trabalho e das canções; grandes cruzes brancas apareciam sobre as portas das casas desertas. A foice da morte ceifava muitas existências entre estas famílias de pescadores e artesãos, mal vestidos, mal nutridos, de higiene duvidosa que ofereciam uma presa fácil ao flagelo. Durante quase todo o dia o sino da igreja tocava o dobre fúnebre e numerosos cortejos se encaminhavam para o cemitério.

A epidemia não poupou os Menoni. Marta foi atingida primeiro, depois a sua menina tombou doente. Todas as famílias, todas as moradas atingidas pelo flagelo foram abandonadas. Os médicos eram pouco numerosos. Nenhum cuidado em atender os parentes, os amigos; o isolamento, o sofrimento e a morte, eis o que podiam esperar aqueles que fossem contagiados. As lamúrias que ressoavam de todos os lados, a desolação geral, arrancaram Giovanna de sua quietude, de sua felicidade. A voz imperiosa do dever se elevava nela e dominava a voz do amor. Desdenhando o perigo, surda às súplicas de Maurice, partilhava de agora em diante o seu tempo entre os infelizes abandonados. O seu noivo, não podendo desviá-la do risco, imita-lhe o exemplo. Giovanna passa um mês inteiro na cabeceira dos moribundos; vários expiram debaixo dos seus olhos. Marta e a sua menina, morreram malgrado os seus cuidados. Até aos derradeiros momentos ela os assistiu, suportando com uma calma aparente o espectáculo das suas convulsões, respirando o sopro envenenado que exalavam dos seus lábios. Tanta fadiga e emoções acabaram com a jovem moça. Uma tarde em que, extenuada, voltava da vila com Maurice, teria caído no chão, desmaiada, se o seu noivo não a tivesse amparado nos braços.

Ela voltou para casa e, acamou-se e, os assustadores sintomas manifestaram-se em seguida. Um círculo de fogo apertava as suas têmporas; zumbidos insólitos faziam barulho nos seus ouvidos; os calafrios a tomaram, uma cor arroxeada se estendeu em volta dos olhos. O mal fazia progressos rápidos; a vida de Giovanna fundia como cera macia sob o sopro do flagelo. A partir do dia seguinte, a sombra da morte flutuava-lhe na face. Maurice, pálido, desesperado, permanecia sempre perto dela, apertando-lhe as mãos geladas. Aproximando os seus lábios de sua boca descolorada, pedia a Deus que lhe permitisse aspirar a morte em um beijo.

Giovanna respondia docemente ao seu abraço. Os seus olhos, já brilhantes das luzes do lado de lá, fixavam-se sobre ele com uma expressão de calma, de doçura serena. Mesmo nesse momento solene, malgrado o sofrimento que despedaçava os seus membros, um sorriso resignado aclarava a sua face. À tarde, a agonia começou. Giovanna agitava-se convulsivamente, debatia-se sob uma opressão dolorosa, implorando a Deus aos gritos. A essas crises terríveis sucedia um abatimento profundo, uma imobilidade semelhante à morte. Somente, os lábios da jovem menina mexiam. Parecia conversar com os seres invisíveis. Por vezes, também, se lhe escutava murmurar o nome de Maurice. Um ligeiro aperto da mão, um último estremecimento e, Giovanna expira. A alma desse anjo retornava para Ele que a havia criado.

Maurice, esmagado pela dor, estava como um homem ébrio. As suas lágrimas, não podendo sair, recaiam sobre o seu coração e o afogava em ondas de um cruel desespero. A noite veio, colocaram-se velas acesas próximo do leito; um crucifixo repousava sobre o peito da morta cujos cabelos louros esparsos formavam uma coroa de ouro em volta de sua cabeça pálida. Soluços meio comprimidos elevaram-se dos cantos da sala. A tia, a velha ama de leite de Giovanna, algumas pobres pessoas a quem a morta havia socorrido, oravam e choravam. Maurice aproxima-se da janela amplamente aberta. Ironia da natureza! O disco brilhante da lua aclarava planícies e montes; aromas balsâmicos flutuavam no ar; a torrente, correndo sobre as pedras, fazia ouvir o seu alegre murmúrio ao qual respondia um rouxinol pousado sobre o alto dos galhos. No seio da noite tépida e perfumada, tudo eram luzes e cantos, tudo celebrava a felicidade de viver e, lá, sobre o seu virginal leito, a doce criança dormia já o sono eterno. Assim pensava Maurice; mil ideias sombrias, tumultuadas, cresciam no seu cérebro como vento de tempestade.

Qual é então o Deus cruel que brinca assim com o nosso coração! Haver-lhe mostrado a felicidade, ter-lhe tocado, para logo a furtar. Esses sonhos dourados, esses sonhos formados a dois, estariam para sempre desvanecidos! Esse cadáver que pernoitava ali era tudo o que restava de Giovanna?

Não a veria mais, não ouviria mais a sua voz, não veria mais nos seus olhos aqueles clarões de ternura que o inebriavam, que o reaqueciam deliciosamente. Mais algumas horas e já não teria nada dela, nada senão a lembrança, uma lembrança dilacerada, penetrante como que uma espada na alma ulcerada. Já não haveria mais as caminhadas a dois no vale, já não teria os passeios sobre o lago, na brilhante luminosidade do dia, já não usufruiria das conversas sobre o terraço na suave claridade das noites. Ele era triste, deprimido, até que a conheceu; como um raio, o seu olhar havia clareado a sua vida e, eis que, subitamente, tudo se extinguia. Estava acabado agora; a sua vida tinha-se detido; já não teria os sonhos alegres, já não respirava a esperança, agora o vazio, a solidão terrível, as trevas formar-se-iam à sua volta. Como o seu coração batia a golpes precipitados no seu peito, como a sua cabeça queimava! Um peso esmagador lhe fazia curvar a fronte, mergulhando-a nos seus joelhos. E chamava a morte, desejava-a ardentemente. - “Vem, dizia, leva-me com ela, envolva-nos no mesmo sudário, deite-nos na mesma cova; que a mesma pedra nos cubra !” Mas não, ela estava morta e ele falava-lhe, vivo. Que abismo se abria debaixo dos seus pés! E a revolta esmagava esta alma contra o implacável destino.

Evocando as lembranças de sua vida, depois os seus tristes anos de infância, Maurice via passar como um turbilhão as ilusões dissipadas, as alegrias tão curtas, tão vazias, evanescentes, as felicidades efémeras de sua juventude. Todas as sombras, todas as preocupações do passado, subiam como uma onda amarga do fundo de sua memória, submergindo nele as últimas esperanças. Em seu lugar, uma profunda sensação de isolamento, de abandono, permanecia. Todos aqueles que tinha amado haviam partido. A sua mãe, que morrera quando ele era apenas uma criança, depois o seu pai e, agora, aí estava Giovanna. Tudo o que havia alegrado a sua existência, tudo o que havia feito bater o seu coração iria resumir-se em três, sepulcros. - “Oh! – murmurava –, Ser invisível que se ri das nossas lágrimas, faz-nos então viver apenas para nos torturar? Entretanto não pedi para nascer. Por que me tiraste do nada, lá onde se dorme, onde se repousa, onde não se sofre! ”A alvorada veio aclarar com as suas pálidas luzes a triste cena da morte, Giovanna depositada no caixão, a chegada do padre, a partida para o cemitério. Semelhante a um autómato, Maurice seguiu o féretro, coberto de ramalhetes de rosas brancas, levadas pelas jovens meninas de Gravedona. Afundado na sua dor, ele não via nada do cerimonial fúnebre na igreja, não escutava certamente as salmodias lúgubres. O barulho surdo da terra caindo sobre as tábuas do caixão chamou-o então a si.

Os assistentes foram-se, a cova tapada, ele encontrava-se só, diante da sepultura de sua noiva. Então, de coração dilacerado em desalinho; lança-se sobre o solo, estendendo os braços por cima da morta; um soluço ergue-se-lhe no peito e um rio de lágrimas escorre-lhe dos olhos.

/...

Léon Denis, Giovanna_1880, V 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)