Giovanna e Maurice haviam trocado os anéis benzidos pelo
padre; a data de sua união estava marcada. Os dias passaram para eles,
vertiginosamente, entregues que estavam à sua felicidade. Eles desconheciam que
um espantoso flagelo avançava para eles, que a sua devastação já havia
despovoado as planícies lombardas e que o ar puro das montanhas seria impotente
para o deter. Mas que lhes importava, com efeito, as novidades de fora, os
barulhos do mundo. O mundo para eles resumia-se em um só ser,
o ser amado ! O seu pensamento, já não ia a não ser às
regiões supra-terrestres.
Não sonhavam senão com o seu amor, com a vida que se abria
diante deles tão bela, tão rica de promessas. Mas a Vontade Suprema iria
reverter todas essas esperanças. Depois de haver entrevisto a felicidade ideal,
Maurice devia voltar à sombria e desesperante realidade.
O tifo, violento, abatera-se sobre as margens do lago de Gravedona e o
vale de Domaso foram
sucessivamente atingidos. Alguns dias tinham penosamente passado e já muitas
das moradas estavam vazias. A fumaça azulada já não se elevava acima dos
telhados. O silêncio, esse silêncio cruel da morte e da perda, substituía o
barulho do trabalho e das canções; grandes cruzes brancas apareciam sobre as
portas das casas desertas. A foice da morte ceifava muitas existências entre
estas famílias de pescadores e artesãos, mal vestidos, mal nutridos, de higiene
duvidosa que ofereciam uma presa fácil ao flagelo. Durante quase todo o dia o
sino da igreja tocava o dobre fúnebre e numerosos cortejos se encaminhavam para
o cemitério.
A epidemia não poupou os Menoni. Marta foi atingida
primeiro, depois a sua menina tombou doente. Todas as famílias, todas as
moradas atingidas pelo flagelo foram abandonadas. Os médicos eram pouco
numerosos. Nenhum cuidado em atender os parentes, os amigos; o isolamento, o
sofrimento e a morte, eis o que podiam esperar aqueles que fossem contagiados.
As lamúrias que ressoavam de todos os lados, a desolação geral, arrancaram Giovanna
de sua quietude, de sua felicidade. A voz imperiosa do dever se elevava nela e
dominava a voz do amor. Desdenhando o perigo, surda às súplicas de Maurice,
partilhava de agora em diante o seu tempo entre os infelizes abandonados. O seu
noivo, não podendo desviá-la do risco, imita-lhe o exemplo. Giovanna passa um
mês inteiro na cabeceira dos moribundos; vários expiram debaixo dos seus olhos.
Marta e a sua menina, morreram malgrado os seus cuidados. Até aos derradeiros
momentos ela os assistiu, suportando com uma calma aparente o espectáculo das
suas convulsões, respirando o sopro envenenado que exalavam dos seus lábios.
Tanta fadiga e emoções acabaram com a jovem moça. Uma tarde em que, extenuada,
voltava da vila com Maurice, teria caído no chão, desmaiada, se o seu noivo não
a tivesse amparado nos braços.
Ela voltou para casa e, acamou-se e, os assustadores
sintomas manifestaram-se em seguida. Um círculo de fogo apertava as suas
têmporas; zumbidos insólitos faziam barulho nos seus ouvidos; os calafrios a
tomaram, uma cor arroxeada se estendeu em volta dos olhos. O mal fazia
progressos rápidos; a vida de Giovanna fundia como cera macia sob o sopro do
flagelo. A partir do dia seguinte, a sombra da morte flutuava-lhe na face.
Maurice, pálido, desesperado, permanecia sempre perto dela, apertando-lhe as
mãos geladas. Aproximando os seus lábios de sua boca descolorada, pedia a Deus
que lhe permitisse aspirar a morte em um beijo.
Giovanna respondia docemente ao seu abraço. Os seus olhos,
já brilhantes das luzes do lado de lá, fixavam-se sobre ele com uma expressão
de calma, de doçura serena. Mesmo nesse momento solene, malgrado o sofrimento
que despedaçava os seus membros, um sorriso resignado aclarava a sua face. À
tarde, a agonia começou. Giovanna agitava-se convulsivamente, debatia-se sob
uma opressão dolorosa, implorando a Deus aos gritos. A essas crises terríveis
sucedia um abatimento profundo, uma imobilidade semelhante à morte. Somente, os
lábios da jovem menina mexiam. Parecia conversar com os seres invisíveis. Por
vezes, também, se lhe escutava murmurar o nome de Maurice. Um ligeiro aperto da
mão, um último estremecimento e, Giovanna expira. A alma desse anjo retornava
para Ele que a havia criado.
Maurice, esmagado pela dor, estava como um homem ébrio. As
suas lágrimas, não podendo sair, recaiam sobre o seu coração e o afogava em
ondas de um cruel desespero. A noite veio, colocaram-se velas acesas próximo do
leito; um crucifixo repousava sobre o peito da morta cujos cabelos louros
esparsos formavam uma coroa de ouro em volta de sua cabeça pálida. Soluços meio
comprimidos elevaram-se dos cantos da sala. A tia, a velha ama de leite de
Giovanna, algumas pobres pessoas a quem a morta havia socorrido, oravam e
choravam. Maurice aproxima-se da janela amplamente aberta. Ironia da natureza!
O disco brilhante da lua aclarava planícies e montes; aromas balsâmicos
flutuavam no ar; a torrente, correndo sobre as pedras, fazia ouvir o seu alegre
murmúrio ao qual respondia um rouxinol pousado sobre o alto dos galhos. No seio
da noite tépida e perfumada, tudo eram luzes e cantos, tudo celebrava a
felicidade de viver e, lá, sobre o seu virginal leito, a doce criança dormia já
o sono eterno. Assim pensava Maurice; mil ideias sombrias, tumultuadas,
cresciam no seu cérebro como vento de tempestade.
Qual é então o Deus cruel que brinca assim com o nosso
coração! Haver-lhe mostrado a felicidade, ter-lhe tocado, para logo a furtar.
Esses sonhos dourados, esses sonhos formados a dois, estariam para sempre
desvanecidos! Esse cadáver que pernoitava ali era tudo o que restava de
Giovanna?
Não a veria mais, não ouviria mais a sua voz, não veria mais
nos seus olhos aqueles clarões de ternura que o inebriavam, que o reaqueciam
deliciosamente. Mais algumas horas e já não teria nada dela, nada senão a
lembrança, uma lembrança dilacerada, penetrante como que uma espada na alma
ulcerada. Já não haveria mais as caminhadas a dois no vale, já não teria os
passeios sobre o lago, na brilhante luminosidade do dia, já não usufruiria das
conversas sobre o terraço na suave claridade das noites. Ele era triste,
deprimido, até que a conheceu; como um raio, o seu olhar havia clareado a sua
vida e, eis que, subitamente, tudo se extinguia. Estava acabado agora; a sua
vida tinha-se detido; já não teria os sonhos alegres, já não respirava a
esperança, agora o vazio, a solidão terrível, as trevas formar-se-iam à sua
volta. Como o seu coração batia a golpes precipitados no seu peito, como a sua
cabeça queimava! Um peso esmagador lhe fazia curvar a fronte, mergulhando-a nos
seus joelhos. E chamava a morte, desejava-a ardentemente. - “Vem, dizia,
leva-me com ela, envolva-nos no mesmo sudário, deite-nos na mesma cova; que a
mesma pedra nos cubra !” Mas não, ela estava morta e ele falava-lhe, vivo.
Que abismo se abria debaixo dos seus pés! E a revolta esmagava esta alma contra
o implacável destino.
Evocando as lembranças de sua vida, depois os seus tristes
anos de infância, Maurice via passar como um turbilhão as ilusões dissipadas,
as alegrias tão curtas, tão vazias, evanescentes, as felicidades efémeras de
sua juventude. Todas as sombras, todas as preocupações do passado, subiam como
uma onda amarga do fundo de sua memória, submergindo nele as últimas
esperanças. Em seu lugar, uma profunda sensação de isolamento, de abandono,
permanecia. Todos aqueles que tinha amado haviam partido. A sua mãe, que
morrera quando ele era apenas uma criança, depois o seu pai e, agora, aí estava
Giovanna. Tudo o que havia alegrado a sua existência, tudo o que havia feito
bater o seu coração iria resumir-se em três, sepulcros. - “Oh! – murmurava –,
Ser invisível que se ri das nossas lágrimas, faz-nos então viver apenas para
nos torturar? Entretanto não pedi para nascer. Por que me tiraste do nada, lá
onde se dorme, onde se repousa, onde não se sofre! ”A alvorada veio aclarar com
as suas pálidas luzes a triste cena da morte, Giovanna depositada no caixão, a
chegada do padre, a partida para o cemitério. Semelhante a um autómato, Maurice
seguiu o féretro, coberto de ramalhetes de rosas brancas,
levadas pelas jovens meninas de Gravedona. Afundado na sua dor, ele não via
nada do cerimonial fúnebre na igreja, não escutava certamente as salmodias
lúgubres. O barulho surdo da terra caindo sobre as tábuas do caixão chamou-o
então a si.
Os assistentes foram-se, a cova tapada, ele encontrava-se
só, diante da sepultura de sua noiva. Então, de coração dilacerado em
desalinho; lança-se sobre o solo, estendendo os braços por cima da morta; um
soluço ergue-se-lhe no peito e um rio de lágrimas escorre-lhe dos olhos.
/...
Léon Denis, Giovanna_1880, V 7º fragmento desta
obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena
pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)
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