segunda-feira, 3 de julho de 2017

Giovanna ~

V

Giovanna e Maurice haviam trocado os anéis benzidos pelo padre; a data de sua união estava marcada. Os dias passaram para eles, vertiginosamente, entregues que estavam à sua felicidade. Eles desconheciam que um espantoso flagelo avançava para eles, que a sua devastação já havia despovoado as planícies lombardas e que o ar puro das montanhas seria impotente para o deter. Mas que lhes importava, com efeito, as novidades de fora, os barulhos do mundo. O mundo para eles resumia-se em um só ser, o ser amado ! O seu pensamento, já não ia a não ser às regiões supra-terrestres.

Não sonhavam senão com o seu amor, com a vida que se abria diante deles tão bela, tão rica de promessas. Mas a Vontade Suprema iria reverter todas essas esperanças. Depois de haver entrevisto a felicidade ideal, Maurice devia voltar à sombria e desesperante realidade.

O tifo, violento, abatera-se sobre as margens do lago de Gravedona e o vale de Domaso foram sucessivamente atingidos. Alguns dias tinham penosamente passado e já muitas das moradas estavam vazias. A fumaça azulada já não se elevava acima dos telhados. O silêncio, esse silêncio cruel da morte e da perda, substituía o barulho do trabalho e das canções; grandes cruzes brancas apareciam sobre as portas das casas desertas. A foice da morte ceifava muitas existências entre estas famílias de pescadores e artesãos, mal vestidos, mal nutridos, de higiene duvidosa que ofereciam uma presa fácil ao flagelo. Durante quase todo o dia o sino da igreja tocava o dobre fúnebre e numerosos cortejos se encaminhavam para o cemitério.

A epidemia não poupou os Menoni. Marta foi atingida primeiro, depois a sua menina tombou doente. Todas as famílias, todas as moradas atingidas pelo flagelo foram abandonadas. Os médicos eram pouco numerosos. Nenhum cuidado em atender os parentes, os amigos; o isolamento, o sofrimento e a morte, eis o que podiam esperar aqueles que fossem contagiados. As lamúrias que ressoavam de todos os lados, a desolação geral, arrancaram Giovanna de sua quietude, de sua felicidade. A voz imperiosa do dever se elevava nela e dominava a voz do amor. Desdenhando o perigo, surda às súplicas de Maurice, partilhava de agora em diante o seu tempo entre os infelizes abandonados. O seu noivo, não podendo desviá-la do risco, imita-lhe o exemplo. Giovanna passa um mês inteiro na cabeceira dos moribundos; vários expiram debaixo dos seus olhos. Marta e a sua menina, morreram malgrado os seus cuidados. Até aos derradeiros momentos ela os assistiu, suportando com uma calma aparente o espectáculo das suas convulsões, respirando o sopro envenenado que exalavam dos seus lábios. Tanta fadiga e emoções acabaram com a jovem moça. Uma tarde em que, extenuada, voltava da vila com Maurice, teria caído no chão, desmaiada, se o seu noivo não a tivesse amparado nos braços.

Ela voltou para casa e, acamou-se e, os assustadores sintomas manifestaram-se em seguida. Um círculo de fogo apertava as suas têmporas; zumbidos insólitos faziam barulho nos seus ouvidos; os calafrios a tomaram, uma cor arroxeada se estendeu em volta dos olhos. O mal fazia progressos rápidos; a vida de Giovanna fundia como cera macia sob o sopro do flagelo. A partir do dia seguinte, a sombra da morte flutuava-lhe na face. Maurice, pálido, desesperado, permanecia sempre perto dela, apertando-lhe as mãos geladas. Aproximando os seus lábios de sua boca descolorada, pedia a Deus que lhe permitisse aspirar a morte em um beijo.

Giovanna respondia docemente ao seu abraço. Os seus olhos, já brilhantes das luzes do lado de lá, fixavam-se sobre ele com uma expressão de calma, de doçura serena. Mesmo nesse momento solene, malgrado o sofrimento que despedaçava os seus membros, um sorriso resignado aclarava a sua face. À tarde, a agonia começou. Giovanna agitava-se convulsivamente, debatia-se sob uma opressão dolorosa, implorando a Deus aos gritos. A essas crises terríveis sucedia um abatimento profundo, uma imobilidade semelhante à morte. Somente, os lábios da jovem menina mexiam. Parecia conversar com os seres invisíveis. Por vezes, também, se lhe escutava murmurar o nome de Maurice. Um ligeiro aperto da mão, um último estremecimento e, Giovanna expira. A alma desse anjo retornava para Ele que a havia criado.

Maurice, esmagado pela dor, estava como um homem ébrio. As suas lágrimas, não podendo sair, recaiam sobre o seu coração e o afogava em ondas de um cruel desespero. A noite veio, colocaram-se velas acesas próximo do leito; um crucifixo repousava sobre o peito da morta cujos cabelos louros esparsos formavam uma coroa de ouro em volta de sua cabeça pálida. Soluços meio comprimidos elevaram-se dos cantos da sala. A tia, a velha ama de leite de Giovanna, algumas pobres pessoas a quem a morta havia socorrido, oravam e choravam. Maurice aproxima-se da janela amplamente aberta. Ironia da natureza! O disco brilhante da lua aclarava planícies e montes; aromas balsâmicos flutuavam no ar; a torrente, correndo sobre as pedras, fazia ouvir o seu alegre murmúrio ao qual respondia um rouxinol pousado sobre o alto dos galhos. No seio da noite tépida e perfumada, tudo eram luzes e cantos, tudo celebrava a felicidade de viver e, lá, sobre o seu virginal leito, a doce criança dormia já o sono eterno. Assim pensava Maurice; mil ideias sombrias, tumultuadas, cresciam no seu cérebro como vento de tempestade.

Qual é então o Deus cruel que brinca assim com o nosso coração! Haver-lhe mostrado a felicidade, ter-lhe tocado, para logo a furtar. Esses sonhos dourados, esses sonhos formados a dois, estariam para sempre desvanecidos! Esse cadáver que pernoitava ali era tudo o que restava de Giovanna?

Não a veria mais, não ouviria mais a sua voz, não veria mais nos seus olhos aqueles clarões de ternura que o inebriavam, que o reaqueciam deliciosamente. Mais algumas horas e já não teria nada dela, nada senão a lembrança, uma lembrança dilacerada, penetrante como que uma espada na alma ulcerada. Já não haveria mais as caminhadas a dois no vale, já não teria os passeios sobre o lago, na brilhante luminosidade do dia, já não usufruiria das conversas sobre o terraço na suave claridade das noites. Ele era triste, deprimido, até que a conheceu; como um raio, o seu olhar havia clareado a sua vida e, eis que, subitamente, tudo se extinguia. Estava acabado agora; a sua vida tinha-se detido; já não teria os sonhos alegres, já não respirava a esperança, agora o vazio, a solidão terrível, as trevas formar-se-iam à sua volta. Como o seu coração batia a golpes precipitados no seu peito, como a sua cabeça queimava! Um peso esmagador lhe fazia curvar a fronte, mergulhando-a nos seus joelhos. E chamava a morte, desejava-a ardentemente. - “Vem, dizia, leva-me com ela, envolva-nos no mesmo sudário, deite-nos na mesma cova; que a mesma pedra nos cubra !” Mas não, ela estava morta e ele falava-lhe, vivo. Que abismo se abria debaixo dos seus pés! E a revolta esmagava esta alma contra o implacável destino.

Evocando as lembranças de sua vida, depois os seus tristes anos de infância, Maurice via passar como um turbilhão as ilusões dissipadas, as alegrias tão curtas, tão vazias, evanescentes, as felicidades efémeras de sua juventude. Todas as sombras, todas as preocupações do passado, subiam como uma onda amarga do fundo de sua memória, submergindo nele as últimas esperanças. Em seu lugar, uma profunda sensação de isolamento, de abandono, permanecia. Todos aqueles que tinha amado haviam partido. A sua mãe, que morrera quando ele era apenas uma criança, depois o seu pai e, agora, aí estava Giovanna. Tudo o que havia alegrado a sua existência, tudo o que havia feito bater o seu coração iria resumir-se em três, sepulcros. - “Oh! – murmurava –, Ser invisível que se ri das nossas lágrimas, faz-nos então viver apenas para nos torturar? Entretanto não pedi para nascer. Por que me tiraste do nada, lá onde se dorme, onde se repousa, onde não se sofre! ”A alvorada veio aclarar com as suas pálidas luzes a triste cena da morte, Giovanna depositada no caixão, a chegada do padre, a partida para o cemitério. Semelhante a um autómato, Maurice seguiu o féretro, coberto de ramalhetes de rosas brancas, levadas pelas jovens meninas de Gravedona. Afundado na sua dor, ele não via nada do cerimonial fúnebre na igreja, não escutava certamente as salmodias lúgubres. O barulho surdo da terra caindo sobre as tábuas do caixão chamou-o então a si.

Os assistentes foram-se, a cova tapada, ele encontrava-se só, diante da sepultura de sua noiva. Então, de coração dilacerado em desalinho; lança-se sobre o solo, estendendo os braços por cima da morta; um soluço ergue-se-lhe no peito e um rio de lágrimas escorre-lhe dos olhos.

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Léon Denis, Giovanna_1880, V 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

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