domingo, 20 de dezembro de 2015

~ explicações em proporção com os conhecimentos ao tempo ~


A história da origem de quase todos os povos antigos confunde-se com a da sua religião: é por isso que os seus primeiros livros foram livros religiosos; e, como todas as religiões que se ligam ao princípio das coisas, que é também o da humanidade, deram sobre a formação e organização do Universo explicações em proporção com o estado dos conhecimentos do tempo e dos seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados fossem ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, assim como foram durante muito tempo o único código das leis civis.

Nos tempos primitivos, sendo os meios de observação necessariamente muito imperfeitos, as primeiras teorias sobre o sistema do mundo deviam estar manchadas de erros grosseiros; mas se esses meios tivessem sido completos tal como o são hoje, os homens não teriam sabido servir-se deles; não podiam ser aliás mais do que o produto do desenvolvimento da inteligência e do conhecimento sucessivo das leis da natureza. À medida que o homem foi evoluindo no conhecimento dessas leis, penetrou nos mistérios da Criação e corrigiu as ideias que fazia sobre as coisas.

O homem foi impotente para resolver o problema da Criação até ao momento em que a chave lhe foi dada pela ciência. Foi preciso que a astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar nele o seu olhar; que pela força do cálculo, pudesse determinar com rigorosa precisão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a física lhe revelasse as leis da gravidade, do calor, da luz e da electricidade; que a química lhe ensinasse as transformações da matéria e a mineralogia os materiais que formam a crosta do globo; que a geologia lhe ensinasse a ler nas camadas terrestres a formação gradual desse mesmo globo. A botânica, a zoologia, a paleontologia, a antropologia, iriam iniciá-lo na filiação e na sucessão dos seres organizados; com a arqueologia, foi-lhe possível seguir os traços da humanidade através dos tempos; todas as ciências, numa palavra, completando-se umas às outras, iriam dar o seu contributo indispensável ao conhecimento da História do mundo; na sua falta, o homem só tinha por guia as suas primeiras hipóteses.

Também, antes de o homem estar na posse destes elementos de apreciação, todos os comentadores da Génese, cuja razão embatia em impossibilidades materiais, giravam num mesmo círculo sem dele poderem sair; só o puderam fazer quando a ciência abriu o caminho, cavando uma brecha no edifício das crenças, e então tudo mudou de aspecto; uma vez encontrado o fio condutor, as dificuldades foram completamente reduzidas; em vez de uma Génese imaginária, obtivemos uma Génese positiva e, de certo modo, experimental; o campo do Universo estendeu-se ao infinito; viu-se a Terra e os astros a formarem-se gradualmente segundo as leis eternas e imutáveis que testemunham bem melhor a grandeza e a sabedoria de Deus que uma criação miraculosa saída subitamente do nada, como uma alteração à vista graças a uma ideia súbita da Divindade após uma eternidade de inacção.

Uma vez que é impossível conceber a Génese sem os dados fornecidos pela ciência, podemos dizer na verdade que: a ciência é chamada a formar a verdadeira Génese segundo as leis da natureza.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE 1, 2 e 3, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem de contextualização: A Criação de Adão, detalhe do tecto da Capela Sistina, por Michelangelo)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Segundo

KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (II)

"Quando tratarmos destas questões fá-lo-emos decididamente. Mas é que então teremos recolhido documentos bastante numerosos nos ensinos dados de todos os lados pelos Espíritos, a fim de poder falar afirmativamente e ter a certeza de estar de acordo com a maioria. É assim que temos feito, todas as vezes que se trata de formular um princípio capital. Dissemo-lo cem vezes, para nós a opinião de um Espírito, seja qual for o nome que traga, tem apenas o valor de uma opinião individual. O nosso critério está na concordância universal, corroborada por uma rigorosa lógica, para as coisas que não podemos controlar com os próprios olhos. De que nos serviria dar prematuramente uma doutrina como uma verdade absoluta se, mais tarde, devesse ser combatida pela generalidade dos Espíritas?

"Dissemos que o livro do Sr. Roustaing não se afasta dos princípios do Livro dos Espíritos e do dos Médiuns. As nossas observações são feitas sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos factos. É assim, por exemplo, que dá a Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico concretizado, com todas as aparências da materialidade é de facto um agénere. Aos olhos dos homens que não tivessem então podido compreender a sua natureza espiritual, deve ter passado em aparência, expressão incessantemente repetida no curso de toda a obra, para todas as vicissitudes da humanidade. Assim, seria explicado o mistério de seu nascimento: Maria teria tido apenas as aparências da gravidez. Posto como premissa e pedra angular, este ponto é a base em que se apoia para a explicação de todos os factos extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus.

"Nisso nada há de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do envoltório perispiritual. Sem nos pronunciarmos pró ou contra essa teoria, diremos que ela é, pelo menos, hipotética, e que se um dia fosse reconhecida errada, na falta de base todo o edifício desabaria. Esperemos, pois, os numerosos comentários que ela não deixará de provocar da parte dos Espíritos, e que contribuirão para elucidar a questão. Sem a prejulgar, diremos que já foram feitas objecções sérias a essa teoria e que, na nossa opinião, os factos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal.

"Estas observações, subordinadas à sanção do futuro, em nada diminuem a importância da obra que, ao lado de coisas duvidosas, do nosso ponto de vista, encerra outras incontestavelmente boas e verdadeiras, e será consultada com frutos pelos Espíritas sérios.

"Se o fundo de um livro é o principal, a forma não é para desdenhar e contribui com algo para o seu sucesso. Achamos que certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza. A nosso ver, limitando-se ao estritamente necessário, a obra poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume e teria ganho em popularidade."

Essa a análise de "Os Quatro Evangelhos" feita por Allan Kardec. Equilibrada e lógica, afirma que a obra tem "o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada pelo Livro dos Espíritos dos Médiuns". Essa afirmativa, para ser compreendida, precisa da complementação que ele mesmo fornece no quarto parágrafo: "As nossas observações são feitas sobre a aplicação desses mesmos princípios à interpretação de certos factos" e mais a primeira frase do quinto parágrafo, que diz: "Nisso nada há de materialmente impossível para quem quer que conheça as propriedades do envoltório perispiritual", referindo-se directamente ao corpo fluídico. Assim, ao atribuir a Jesus um corpo agénere, "Os Quatro Evangelhos" não ferem os princípios estabelecidos na codificação, porque a existência do agénere é um facto situado dentro das leis naturais. Isso, no entanto, não significa que Kardec concorde com o Cristo agénere. Mostra, apenas, a imparcialidade com que trata a questão. A prova disto está no facto de afirmar que a obra não contradiz a Doutrina Espírita e, mais à frente, esclarecer a razão da inexistência da contradição. A sua tendência inicial, porém, é não aceitar o corpo fluídico: "os factos podem perfeitamente ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal". Entretanto, deixa no futuro a responsabilidade de aprovar ou desaprovar: "quando tratarmos destas questões fá-lo-emos decididamente".

O Codificador mostra as diferenças entre o seu "Evangelho segundo o Espiritismo" e os "Quatro Evangelhos" de Roustaing, ao dizer que preferiu a parte moral dos ensinos de Cristo, porque contém lições que "jamais foram assunto para controvérsias religiosas", o que não aconteceu com Roustaing, que "julgou dever seguir um outro caminho". E o critica: "Em vez de proceder por gradação, quis atingir o fim de um salto". Para ele, Roustaing e os Espíritos que ditaram a obra poderiam estar enganados com relação ao corpo de Jesus, pois agiam de forma precipitada ao defini-lo como um agénere perfeito e - excepcionalmente - de longa duração, sem atentar para o facto da comprovação pela universalidade dos ensinos. Já Kardec preferia se manter "consequente com o nosso princípio, que consiste em regular a nossa marcha pelo desenvolvimento da opinião" e deixar "ao tempo o trabalho de as sancionar ou as contraditar", as teorias roustainguistas do corpo fluídico de Jesus, da falsa concepção por Maria, etc. Estas teorias na obra roustainguista formam "a base em que se apoia para a explicação de todos os factos extraordinários ou miraculosos da vida de Jesus" e se fossem consideradas erradas, "em falta de base todo o edifício desabaria".

Kardec não se importa, em absoluto, com o nome deste ou daquele Espírito que assina "Os Quatro Evangelhos",porque "a opinião de um Espírito, seja qual for o nome que traga, tem apenas o valor de uma opinião individual", uma vez que o critério que sempre foi de Kardec "está na concordância universal, corroborada por uma rigorosa lógica". Vai além, dizendo que já haviam sido feitas "objecções sérias a essa teoria" do corpo de Jesus.

Por fim, Kardec condena a estrutura do livro, afirmando que "certas partes são desenvolvidas muito extensamente, sem proveito para a clareza". Roustaing deveria ter-se preocupado com este aspecto, "que não é para desdenhar e contribui com algo para o sucesso", porque "limitando-se ao estritamente necessário a obra poderia ter sido reduzida a dois ou mesmo a um só volume e teria ganho em popularidade".

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Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO FLUÍDICO 2 de 5, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Sem título, pintura de Josefina Robirosa)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Inquietações Primaveris ~


a extinção | da Vida

A insistência do homem na negação de sua própria imortalidade não decorre, como geralmente se pensa, das dificuldades para prová-la cientificamente, nem da visão caótica do mundo em que se perdem os espíritos cépticos, que vivem como aturdidos entre as certezas e incertezas do conhecimento humano.

Decorre apenas do sentimento da fragilidade humana, considerado tão importante pelos existencialistas.

O instinto de morte da tese freudiana, num mundo em que tudo morre, nada permanece, como notava Protágoras desolado, supera e esmaga na sensibilidade humana o instinto de vida, os anseios existentes geralmente confundidos com o elã vital de Bergson.

Sentindo-se frustrado e desolado ante a fatalidade irremovível da morte, e levado ao desespero ante a irracionalidade das proposições religiosas, o homem vê secarem as suas esperanças no inverno único e irremissível da vida material.

A sua impotência revela-se como absoluta, apagando em seu espírito as esperanças e a confiança na vida que o sustentavam na mocidade. A vida se extingue em si mesma e a seus olhos por toda a parte, em todos os reinos da Natureza, e ninguém jamais conseguiu barrar o fluxo arrasador do tempo, que leva de roldão as coisas e os seres, envelhecendo-os e desgastando-os, por maiores, mais fortes e brilhantes que possam parecer. A passagem inexorável dos anos marca minuto a minuto, com uma segurança fatal e uma pontualidade exasperante, o fim inevitável de todas as coisas e todos os seres.

Ao contrário do que se diz popularmente, não são os velhos que sonham com a imortalidade, mas os jovens. Porque estes, na segurança ilusória de sua vitalidade, são mais propícios a aceitar e cultivar esperanças de renovação. Por mais geniais que sejam, por mais realistas que se mostrem, os jovens – com excepção dos que sofrem de desequilíbrios orgânicos e psíquicos – crêem na vida que usufruem sem preocupações. 

Alega-se que são os velhos e não os jovens que se interessam pelas religiões, acreditando-se que esse interesse da velhice pela ilusão da sobrevivência é o desespero do náufrago que se apega à tábua de salvação. Imagem aparentemente apropriada, mas na verdade falsa. O velho religioso, não raro fanático, sabe muito bem que os seus dias estão contados e teme a possibilidade de seu encontro com os julgadores implacáveis com que as religiões os ameaçaram, desde a infância remota. Querem geralmente prevenir-se do que lhes pode acontecer ao passarem para outra vida carregados de pecados que as religiões prometem aliviar. 

O medo da morte é tão generalizado entre as pessoas que entram na recta final da existência, que Heideggerd acentuou, com certa ironia, a importância da partícula se nas expressões sobre a morte. A maioria das pessoas dizem morre-se ao invés de morremos, porque se refere aos outros e não a si mesmo.

A figura jurídica da legítima defesa, nos casos de assassinato, institucionalizou racionalmente o direito de matar que, se por um lado reconhece a validade social do instinto de conservação, por outro lado legitima nos códigos do mundo o sentido oculto da partícula se nas fraudes inconscientes da linguagem. Por outro lado, essa partícula confirma o desejo individual de que os outros morram, e não nós, mostrando a inocuidade dos mandamentos religiosos. Por sinal, essa inocuidade, como se sabe, revelou-se no próprio Sinai, quando Moisés, ainda com a Tábua das Leis em mãos, ordenou a matança imediata de dois mil israelitas que adoravam o Bezerro de Ouro.

Chegamos assim à conclusão de que a posição do homem diante da morte é ambivalente, colocando-o num dilema sem saída, perdido no labirinto das suas próprias contradições. Desse desespero resulta a loucura das matanças colectivas, das guerras, do apelo humano aos processos de genocídio, tão espantosamente evidenciados na História Humana. Os arsenais atómicos do presente, e particularmente o recurso novíssimo das bombas de neutrões, revelam no homem o desejo inconsciente, mas racionalizado pelas justificativas de segurança, de extinção total da vida no planeta. Os versos consagrados do poeta: “Antes morrer do que um viver de escravos”, valem por uma catarse colectiva. A extinção da vida é o supremo desejo da Humanidade, que só não se realiza graças à impotência do homem ante a rigidez das leis naturais. Por isso a Ciência acelera sem cessar a descoberta de novos meios de matança massiva. Os escravos da vida preferem a morte.

Esse panorama apocalíptico só pode modificar-se através da Educação para a Morte. Não se trata de uma educação especial nem supletiva, mas de uma para-educação sugerida e até mesmo exigida pela situação actual do mundo. O problema da chamada explosão demográfica, com o acelerado desenvolvimento da população mundial, impossível de se deter por todos os meios propostos, mostra-nos a necessidade de uma revisão profunda dos processos educacionais, de maneira a reajustá-los às novas condições de vida, cada vez mais intoleráveis. 

Como assinalou Kardec, somente a Educação poderá levar-nos às soluções desejadas. Os recursos que, em ocasiões como esta, são sempre produzidos pela própria Natureza, já nos foram dados através da também chamada explosão psíquica dos fenómenos paranormais. O conhecimento mais profundo da natureza humana, levado pelas pesquisas psicológicas e parapsicológicas até às profundezas da alma, revelam que o novo processo educacional deve atingir os mecanismos da consciência subliminar da teoria de Frederic Myers, de maneira a substituir as introjecções negativas e desordenadas do inconsciente por introjecções positivas e racionais. A teoria dos arquétipos de Jung, bem como a sua teoria parapsicológica das coincidências significativas, podem ajudar-nos em dois planos: o da transcendência e o da dinâmica mental consciente. 

A Educação para a Morte socorrerá a vida, restabelecendo-lhe a esperança e o entusiasmo das novas gerações pelas novas perspectivas da vida terrena. Uma nova cultura, já esboçada nos nossos dias, logo se definirá como a saída natural que até agora buscamos inutilmente para o impasse.

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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 4 A Extinção da Vida 1 de 2, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

há no universo duas imensas correntes de vida. Uma sobe do abismo pela animalidade; a outra desce das alturas divinas ~


Alma humana...

A lei do progresso não se aplica somente ao homem; é universal. Há, em todos os reinos da Natureza, uma evolução que foi reconhecida pelos pensadores de todos os tempos. Desde a célula verde, desde o embrião errante, boiando à flor das águas, a cadeia das espécies tem-se desenrolado através de séries variadas, até nós. |*

Cada elo dessa cadeia representa uma forma da existência que conduz a uma forma superior, a um organismo mais rico, mais bem adaptado às necessidades, às manifestações crescentes da vida; mas, na escala da evolução, o pensamento, a consciência e a liberdade só aparecem passados muitos graus. Na planta a inteligência dormita; no animal ela sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente; a partir daí o progresso, de alguma sorte fatal nas formas inferiores da Natureza, só se pode realizar pelo acordo da vontade humana com as leis Eternas.

É pelo acordo, pela união da razão humana com a razão divina que se edificam as obras preparatórias do reino de Deus, isto é, do reino da sabedoria, da justiça, da bondade, de que todo o ser racional e consciente tem em si a intuição.

Assim, o estudo das leis da evolução, em vez de anular a espiritualidade do homem, vem, pelo contrário, dar-lhe uma nova sanção; ensina-nos como o corpo do homem pode derivar de uma forma inferior pela selecção natural, mas nos mostra também que possuímos faculdades intelectuais e morais de origem diferente e encontramos essa origem no universo invisível, no mundo sublime do Espírito.

A teoria da evolução deve ser completada pela da percussão, isto é, pela acção das potências invisíveis, que activa e dirige essa lenta e prodigiosa marcha ascensional da vida do Globo. O mundo oculto intervém, em certas épocas, no desenvolvimento físico da humanidade, como intervém no domínio intelectual e moral, pela revelação medianímica. Quando uma raça que chegou ao apogeu é seguida de uma nova raça, é racional acreditar que uma família superior de almas encarna entre os representantes da raça exausta para fazê-la subir um grau, renovando-a e moldando-a à sua imagem. É o eterno himeneu entre o céu e a Terra, a infinita penetração da matéria pelo espírito, a efusão crescente da vida psíquica na forma em evolução.

O aparecimento do homem na escala dos seres pode explicar-se dessa forma. O homem, demonstra-nos a embriogenia, é a síntese de todas as formas vivas que o precederam, o último elo da longa cadeia de vidas inferiores que se desenrola através dos tempos. Mas isso é apenas o aspecto exterior do problema das origens, ao passo que amplo e imponente é o aspecto interior. Assim como cada nascimento se explica pela descida à carne de uma alma que vem do espaço, assim também o primeiro aparecimento do homem no Planeta, deve ser atribuído a uma intervenção das Potências invisíveis que geram a vida. A essência psíquica vem comunicar às formas animais evoluídas o sopro de uma nova vida; vai criar, para a manifestação da inteligência, um órgão até então desconhecido: a palavra. Elemento poderoso de toda a vida social, o verbo aparecerá e, ao mesmo tempo, a alma encarnada conservará, mediante o seu invólucro fluídico, a possibilidade de entrar em relação com o meio |** donde saiu.

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|* Os seres monocelulares encontram-se ainda hoje aos biliões, em cada organismo humano. Não foi de uma única célula que saiu a série das espécies; foi, antes, a multidão das células que se agrupou para formar seres mais perfeitos e, de degrau em degrau, convergir para a unidade.
|** Qualquer que seja a teoria a que se dê preferência nessas matérias, adoptem-se as vistas de Darwin, de Spencer ou de Haeckel, não é possível crer-se que a Natureza, que Deus apenas tenha um só e único meio de produzir e desenvolver a vida. O cérebro humano é limitado; as possibilidades da vida são infinitas. Os pobres teóricos, que querem enclausurar toda a ciência biológica dentro dos estreitos limites de um sistema, fazem-nos sempre lembrar o menino da lenda, que queria meter toda a água do oceano num buraco feito na areia da praia.
O próprio professor Charles Richet declarou, na sua resposta a Sully-Prudhomme: “As teorias da selecção são insuficientes.” E nós acrescentaremos: “Se há unidade de plano, deve haver diversidade nos meios de execução. Deus é o grande artista que, dos contrastes sabe fazer resultar a harmonia. Parece que há no universo duas imensas correntes de vida. Uma sobe do abismo pela animalidade; a outra desce das alturas divinas. Vão ambas ao encontro uma da outra para se unirem e se confundirem e mutuamente se atraírem. Não é essa a significação que tem a escada do sonho de Jacob?”



LÉON DENIS, O Problema do Ser, do Destino e da Dor,  IX – Evolução e finalidade da alma, fragmento.
(imagem de contextualização: Head of Divine Vengeance, pintura de Pierre-Paul Prud'hon)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria;
I Posição do Problema (II)

Há umas tantas questões profundas que, no curso da vida humana, nas horas de silêncio e solidão, se nos apresentam como outros tantos pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.

Tais os problemas da existência da alma, do seu destino futuro, da existência de Deus e das suas relações com a Criação.

Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e dominam na sua imensidade, pois sentimos que nos aguardam, e na ignorância deles não poderemos razoavelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.

Assim é que, já o dizia Pascal, um desses problemas – o da mortalidade da alma – é tão importante, que é preciso haver perdido toda a consciência para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo. O mesmo se poderá dizer quanto à existência de Deus. Quando meditamos essas verdades, ou apenas na possibilidade da sua existência, elas nos aparecem sob o aspecto tão grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas inteligentes, seres racionais, pensantes, entregar-se a uma vida inteira a interesses transitórios, sem se abstraírem uma por outra vez da sua apatia para atender a essas interrogativas preciosas.

Se é verdade, qual o temos observado, que há neste mundo homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses problemas, menos não é que eles nos inspiram verdadeira piedade. Aqueles que, no entanto, mais agravam a brutalidade da indiferença e, de caso pensado, desdenham alçar-se ao nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os doces gozos da vida material, esses, – declaramo-lo alto e a bom som – nós os deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerá-los fora da esfera intelectual.

O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem por outro motivo é que, contra ele, se apontam as principais, as mais possantes baterias do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a inexistência de Deus e que uma tal hipótese não passa de aberração da inteligência humana. Um grande número de homens sérios, convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos, enfileiraram-se à volta desses inovadores reincidentes, engrossando desmesuradamente as hostes materialistas, primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça e na própria Itália.

Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos se apoiam em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus não existe, cometem a mais grave inconsequência.

Acusando-os dessa errónea, haveremos de justificar-nos, ainda que os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que vimos combatê-los.

Deixamos de lado toda a ciência especulativa e colocamo-nos, exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.

Não pensamos como Demócrito que, vazar os olhos, para evitar as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar frutuosamente a Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos firmes na esfera da observação e da experiência.

Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos a aplicar ao problema os actuais conhecimentos científicos, longe de conduzirem à negativa, afirmam eles a inteligência e sabedoria das leis da Natureza.

A elevação para Deus, mediante o estudo científico da Natureza, nos mantém em situação equidistante dos dois extremos, isto é: – dos que negam e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como se houvessem sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas, combatemos duas potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.

Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus infantil, quanto negar uma causa primária.

Em vão se nos objectará não podermos afirmar a existência de uma entidade que não conhecemos. Acautelemo-nos de presunções que tais. Certo, não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tampouco, conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da Terra.

“Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann – que tenha uma exacta noção do Ser supremo. As minhas opiniões, faladas ou escritas, resumem-se nisto: Deus é incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e nós com ela, somos de tal modo penetrados pela Divindade que dela nos sustentamos, nela vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade com leis eternas, perante as quais representamos um papel activo e passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com o bolo, sem pensar em quem o fez, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como a esta se formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma, essa íntima intuição que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria infinitamente abaixo da verdade, tantos são os seus inumeráveis atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, se manifesta não só no homem como no âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a ideia que dele se faz é, evidentemente, exígua.”

A ideia que os antepassados formavam de Deus, em todas as épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente adquirido pela Humanidade. Tal como o saber humano, essa ideia é variável e deve, necessariamente, progredir, pois, seja como for, cada uma das noções que constituem o património da inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pena de ficar distanciada.
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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 2 de 6, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Diálogos de Kardec ~


Influência perniciosa das ideias materialistas |

SOBRE AS ARTES EM GERAL; A SUA REGENERAÇÃO POR MEIO DO ESPIRITISMO |



Lê-se na secção “correio de Paris”, do Mundo Ilustrado, de 19 de Dezembro de 1868:

Carmouche escreveu mais de duzentas comédias e ‘vaudevilles’ e, quando muito, o nosso tempo apenas lhe conhecerá o nome. É que a glória dramática, que tantas cobiças desperta, é terrivelmente fugaz. A menos que um autor haja produzido excepcionais obras-primas, está condenado a ver o seu nome cair no esquecimento, logo que ele deixe de estar na berra. Mesmo durante o palco, a maioria lhe ignora a existência. Com efeito, o público, quando lê o cartaz, apenas atenta ao título da peça; pouco lhe importa o nome de quem a escreveu. Tente o leitor lembrar-se de quem escreveu tal ou tal obra encantadora, cuja lembrança lhe ficou. Quase sempre se encontrará na impossibilidade de referir esse nome. E quanto mais avançarmos, tanto mais assim será, pois que as preocupações de ordem material cada vez mais se sobrepõem aos cuidados artísticos.

“Precisamente a esse propósito, Carmouche contava uma passagem típica. Conversando, dizia, com o meu alfarrabista, acerca do seu comerciozinho, ele se manifestava assim: ‘Isto não vai mal, meu senhor, mas modifica-se; os artigos que se vendem já não são os mesmos de antes. Outrora, quando me surgia um rapaz de 18 anos, nove vezes em dez, era à procura de um dicionário de rimas; hoje, é para me pedir um manual das operações da Bolsa’.”

As preocupações de ordem material se sobrepõem aos cuidados artísticos; mas, como não ser assim, quando os maiores esforços se fazem para concentrar todos os pensamentos do homem na vida carnal e para destruir nele toda a esperança, toda a aspiração que ultrapasse essa existência? É lógica, inevitável semelhante consequência para aquele que nada vê fora do círculo estreito da efémera vida presente. Quando a criatura nada percebe atrás de si, nada adiante de si, nada acima de si, em que pode ela concentrar os seus pensamentos senão no ponto onde se encontra? O que há de sublime na arte é a poesia do ideal, que nos transporta para fora da esfera acanhada das nossas actividades. Mas, o ideal paira exactamente nessa região extra material onde só se penetra pelo pensamento; que a vista corporal não pode varar, mas que a imaginação concebe. Ora, que inspiração pode o Espírito haurir da ideia do nada?

O pintor que unicamente houvesse visto o céu brumoso, as estepes áridas e monótonas da Sibéria e que julgasse estar ali todo o Universo, poderia conceber e descrever o brilho e a riqueza dos tons da natureza tropical? Como querereis que os vossos artistas e os vossos poetas vos transportem a regiões que eles não vêem com os olhos da alma, que não compreendem e nas quais nem mesmo acreditam?

O Espírito somente pode identificar-se com o que sabe ou crê ser a verdade e essa verdade, embora de ordem moral, se lhe torna uma realidade que tanto melhor ele exprime, quanto melhor a sente. Se à inteligência da coisa junta a flexibilidade do talento, faz que as suas próprias impressões se transmitam às almas dos outros. Mas, que impressões pode provocar nos outros aquele que não as tem?

Para o materialista, a realidade é a Terra; o seu corpo é tudo, pois que, além dele, nada mais há, visto que a sua própria mente se extingue com a desorganização da matéria, como o fogo com o combustível. Não pode, portanto, com a linguagem da arte, exprimir senão o que vê e sente. Ora, se ele só vê e sente a matéria tangível, unicamente isso lhe é possível exprimir. Nada pode haurir de onde apenas vê o vazio. Se se aventura por um mundo que desconhece, entra aí como cego e, malgrado os esforços que empregue para elevar-se ao diapasão do idealismo, fica no terra-a-terra, como um pássaro sem asas.

A decadência das artes, neste século, resultou inevitavelmente da concentração dos pensamentos sobre as coisas materiais, concentração essa que, a seu turno, é o resultado da ausência de toda crença, de toda a fé na espiritualidade do ser. O século apenas colhe o que semeou. Quem semeia pedras não pode colher frutos. As artes não sairão do torpor em que jazem, senão por meio de uma reacção no sentido das ideias espiritualistas.

Como poderiam o pintor, o poeta, o literato, o músico ligar os seus nomes a obras duráveis, quando, na sua maioria, eles próprios não crêem no futuro de seus trabalhos; quando não se apercebem de que a lei do progresso, força invencível que arrasta os Universos pela estrada do infinito, lhes pede mais do que descoradas cópias das criações magistrais dos artistas dos tempos idos! Toda a gente se lembra dos Fídias, dos Apeles, dos Rafael, dos Michelangelo, luminosos faróis que se destacam da obscuridade dos séculos transcorridos, como fúlgidas estrelas no meio de profundas trevas; mas, quem se lembrará de notar o claror de uma lâmpada a lutar contra o brilho do Sol de um dia de verão?

O mundo caminhou a passos gigantescos desde os tempos históricos; os filósofos dos povos primitivos gradualmente se transformaram. As artes que se apoiam nas filosofias que lhes são a consagração idealizada, também tiveram que se modificar e transformar. É matematicamente certo dizer-se que, sem crença, as artes carecem de vitalidade e que toda a transformação filosófica acarreta necessariamente uma transformação artística paralela.

Em todas as épocas de transformação, as artes periclitam, porque a crença em que se estribam não basta às aspirações engrandecidas da Humanidade e porque, não estando ainda adoptadas pela grande maioria dos homens os novos princípios, os artistas não ousam explorar, senão de modo hesitante, a mina desconhecida que se lhes abre aos pés.

Durante as épocas primitivas, em que os homens unicamente conheciam a vida material, em que a Filosofia divinizava a natureza, a Arte buscou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corporal era, então, a qualidade capital; a arte se aplicou em a reproduzir e idealizar. Mais tarde, a Filosofia enveredou por nova senda; os homens, progredindo, reconheceram que acima da matéria havia uma potência criadora e organizadora, que recompensava os bons, punia os maus e fazia da caridade uma lei. Um mundo novo, o mundo moral se edificou sobre as ruínas do mundo antigo. Dessa transformação nasceu uma arte nova que fez palpitasse a alma sob a forma e junto à percepção plástica a expressão de sentimentos que os antigos desconheceram.

A ideia viveu sob a matéria; mas revestiu as formas severas da Filosofia em que a arte se inspirava. Às tragédias de Ésquilo, aos mármores de Milo, sucederam as descrições e as pinturas das torturas físicas e morais dos réprobos. A arte se elevou; revestiu carácter grandioso e sublime, porém ainda sombrio. Ela está toda, com efeito, na pintura do inferno e do céu da Idade Média, na de sofrimentos eternos, ou de uma beatitude muito distante, colocada tão alto, que nos parece quase inacessível; é talvez por isso que ela nos toca tão pouco, quando a vemos reproduzida na tela ou no mármore.

Também hoje, ninguém ousaria contestá-lo, o mundo está num período de transição, solicitado violentamente por hábitos obsoletos, crenças precárias do passado e verdades novas, que lhe são progressivamente desvendadas.

Assim como a arte cristã sucedeu à arte pagã, transformando-a, a arte espírita será o complemento e a transformação da arte cristã. O Espiritismo, efectivamente, nos mostra o porvir sob uma luz nova e mais ao nosso alcance. Por ele, a felicidade está mais perto de nós, está ao nosso lado, nos Espíritos que nos cercam e que jamais deixaram de estar em relação connosco. A morada dos eleitos, a dos condenados já não se encontram insuladas; há incessante solidariedade entre o céu e a Terra, entre todos os mundos de todos os Universos; a ventura consiste no amor mútuo de todas as criaturas que chegam à perfeição e numa constante actividade, com o objectivo de instruir e conduzir àquela mesma perfeição os que se tornaram retardatários. O inferno está no próprio coração do culpado, que tem nos remorsos o seu castigo, não mais, todavia, eterno, e ao mau, que toma o caminho do arrependimento, se depara de novo a esperança, sublime consolação dos desgraçados.

Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Que obras-primas de todos os géneros as novas ideias suscitarão, pela reprodução das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita! Em vez de representar despojos frios e inanimados, ver-se-á uma mãe tendo ao lado a filha querida em sua forma radiosa e etérea; a vítima a perdoar ao seu algoz; o criminoso a fugir em vão ao espectáculo, de contínuo renascimento, de suas acções culposas! o insulamento do egoísta e do orgulhoso, no meio da multidão; a perturbação do Espírito que volve à vida espiritual, etc., etc. E, se o artista quiser elevar-se acima da esfera terrestre, aos mundos superiores, verdadeiros Edens onde os Espíritos adiantados gozam da felicidade que conquistaram, ou, se desejar reproduzir alguns aspectos dos mundos inferiores, verdadeiros infernos onde reinam soberanamente as paixões, que cenas emocionantes, que quadros palpitantes de interesse se lhe depararão!

Sem dúvida, o Espiritismo abre à arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações e o seu nome viverá nos séculos vindouros, porque, às preocupações de ordem material e efémeras da vida presente, sobreporá o estado da vida futura e eterna da alma.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Influência perniciosa das ideias materialistas, SOBRE AS ARTES EM GERAL; A SUA REGENERAÇÃO POR MEIO DO ESPIRITISMO, 5º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 4 de outubro de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~

princípios da Terapêutica Espírita

A terapêutica espírita funda-se na concepção do Universo como estrutura unitária e infinita.

Tudo se encadeia no Universo, como ensina Kardec. Dessa maneira, há uma constante relação de todas as coisas e todos os seres no Universo Infinito.

Essa estrutura inimaginável encerra tudo em si mesma e por isso todos os recursos de que necessita estão nela mesma.

Cada partícula do Universo reflecte o todo e é formada à semelhança do Todo. Esse princípio de similaridade universal supera as nossas concepções e as nossas percepções fragmentárias.

Foi da intuição natural da similaridade que surgiu a magia, como primeira tentativa de conquista e domínio, pelo homem, das energias da natureza. A magia das selvas, na sua simplicidade elementar, encerrava em potência toda a actualização futura. O homem primitivo percebeu a semelhança das coisas e dos seres nas suas experiências do mundo. O seu mundo era um fragmento do Universo e, para ele, não tinha limites. Na sua intuição globalizante (pois toda a intuição é uma percepção global) começou a conquista do real pela conquista progressiva das coisas e seres semelhantes. Para atingir o pássaro no ar precisava de um instrumento voador e fez a flecha. Para curar uma ferida produzida pelo espinho de uma planta, recorreu ao suco de suas folhas. Para saciar os seus impulsos sexuais devia conquistar a mulher. Dessa satisfação nascia um novo ser, semelhante a ambos.

A dialéctica da vida se insinuava naturalmente em sua consciência fragmentária, ligando os factos entre si e desenvolvendo-lhe o tirocínio. Este o levaria às conquistas subsequentes, infundindo-lhe o sentimento do mundona fusão da mente com a afectividade. Nessa fusão temos o homem ligado à terra pela similitude de seus interesses vitais, e ao mesmo tempo atraído ao céu pelo despertar de seus impulsos de transcendência. Por isso, desde as inscrições rupestres nas cavernas até às mais altas civilizações do Oriente e do Ocidente, o homem teve sempre a ideia de Deus no seu íntimo e nas suas manifestações em busca da sociabilidade. A magia simpatética das selvas impregnara as religiões nascidas dessa dupla fonte, marcadas até hoje pelo impulso da lei de adoração a Deus. Com os pés enraizados na terra do mundo, ele voltará sempre para a luz, o fogo e a chuva que o alimentam e estimulam em suas actividades criadoras. O sentimento do mundo é a confirmação sincrética de suas percepções sensoriais e de sua intuição extra-sensorial do todo como unidade.

O estranho episódio da cura pelo pó de múmia, na História da Medicina, quando as múmias se esgotaram nas escavações do Egipto e os terapeutas mágicos passaram a produzir múmias artificiais para os doentes, revela a que intensidade chegou a ligação do homem com a terra. A múmia representava ao mesmo tempo o homem e a terra, encerrando, portanto, os poderes curadores da natureza humana e os do solo, em cujas entranhas esses poderes se fundiam sob a acção misteriosa do tempo. Dessa mitologia aparentemente absurda nascera em tempos remotos, curtido pelo sentimento do mundo, o sentimento da fraternidade humana, da possibilidade das acções fluídicas entre os corpos dos homens vivosJesus empregaria então os seus poderes espirituais na transmissão das energias vitais do terapeuta ao doente, através do rito da imposição das mãos, que marcaria todo o período de desenvolvimento do Cristianismo até ao Século XIX, em que Kardec reavivaria essa prática antiquíssima em plena era científica. Tinham razão os que temiam o restabelecimento das superstições do passado remoto, sem o conhecer, e portanto sem levar em conta, os princípios renovadores da concepção espírita do mundo. Eram realmente as velhas superstições que renasciam, mas pelas mãos de um cientista que as depurava de sua ganga de milénios para extrair-lhes apenas a essência.

Kardec anunciou que, no seu tempo, com o advento da revelação espírita, divina, pelas manifestações espirituais, e humanas, pela elaboração científica dos homens, os erros do passado se transformariam em verdades. Esse é um exemplo das transformações previstas. Os erros de interpretação de um passado obscuro tornaram-se acertos ante as investigações do homem moderno. Assim podemos afirmar que o primeiro princípio da terapêutica espírita é de origem telúrica, fundado na realidade objectiva de um dos mais curiosos e intrigantes episódios da história da Medicina. A volta à Natureza, que Rousseau pregou na Educação, ironizado por Voltaire, Kardec efectivou, como pesquisador científico e médico, professor e director de estudos na Universidade de França. A seu lado, o Dr. Demeur, em sua clínica de Paris, dava a Kardec a sua assistência de observador e pesquisador dos efeitos curativos da nova terapêutica. Os médicos modernos tomaram o lugar de Voltaire no caso de Kardec, entendendo que Kardec desejava que o homem voltasse a andar de quatro, como dissera Voltaire sobre a revolução educacional de Rousseau. Não perceberam que essa volta à natureza não se referia às selvas, mas à natureza humana desfigurada pelos artificialismos da civilização. Se o objectivo pedagógico de Rousseau era psicológico e ético, principalmente ético, o de Kardec era também da mesma dupla natureza, abrangendo ao mesmo tempo a Psicologia e a Ética, duas coordenadas históricas e científicas a balizarem as transformações evolutivas dos tempos modernos.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Princípios da Terapêutica Espírita 1 de 2, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

pensamento e vontade ~

Sugestão hipnótica e pós-hipnótica |

A imagem mental, sugerida ao paciente em estado de hipnose, reveste objectivação tão acentuada, que chega a eclipsar objectos reais, ou ainda a fixar-se com tal firmeza sobre uma folha de papel, que, cessada a sugestão, o paciente continuará percebendo-a.

Se introduzirmos essa folha de papel num pacote com outras folhas, absolutamente idênticas, convidando o paciente a indicá-la, ele o fará sem hesitação nem equívoco.

Binet propôs, para explicar esta última particularidade, a hipótese do “ponto de referência”.

Supõe ele que, na folha de papel em que se criou a imagem, se apresente alguma singularidade como, por exemplo, uma insignificante granulação, que sirva para reconhecê-la e sobre ela projectar a imagem alucinatória sugerida.

Até certo ponto, esta ideia parece plausível.

Embora muito deixando a desejar, ela constituía, por assim dizer, a única hipótese mediante a qual podiam os factos ser julgados, enquanto não possuíamos as recentes e importantes premissas derivadas das experiências metapsíquicas.

Acredito, contudo, deva ela ser quase por completo abandonada, para reconhecermos que as diferentes modalidades com que se apresentam as imagens alucinatórias, no curso das experiências hipnóticas, tendem a evidenciar a sua natureza objectiva.

Nesse sentido, vamos rapidamente recensear as modalidades mais significativas.

Quando, à revelia do paciente, viramos o papel em que ele percebe a imagem alucinatória, apresentando-lho invertido, o paciente também a vê do mesmo modo invertida, infalivelmente.

Se o convidamos a olhar através de um prisma, dupla lhe parecerá a imagem, tal como sucede com as imagens reais.

Eis o que diz Binet:

“Quando, durante o sono hipnótico, sugiro à paciente que sobre a mesa de cor escura, diante dela colocado, está um retrato de perfil, ela assim o vê quando desperta.

Depois, colocando-lhe, sem a prevenir, um prisma diante dos olhos, logo se mostra admirada em divisar dois perfis.

E a imagem fictícia se localiza, infalivelmente, de acordo com as leis físicas...

Assim, se a base do prisma estiver voltada para cima, as duas imagens se colocarão super-postas; se estiver de lado, a visão será lateral.

Utilizando um binóculo, a imagem alucinatória aproxima-se ou afasta-se, conforme se coloque diante dos olhos da paciente a ocular, ou a objectiva.

O mesmo ocorre se tivermos a precaução de dissimular a extremidade do binóculo, evitando que os objectivos reais incidam no campo visual.

Se lhe dermos um espelho, ela aí verá reflectida a imagem alucinatória.

Assim, por exemplo: sugiro a existência de um objecto qualquer no canto da mesa, coloco, depois, um espelho por trás do referido canto e a paciente aí percebe imediatamente dois objectos análogos, parecendo-lhe o objecto reflectido tão real quanto o alucinatório, de que é apenas um reflexo.”

Podemos acrescentar que o Dr. Perinaud, chefe da clínica oftalmológica das enfermidades nervosas, na Salpetrière, demonstrou que:

“A alucinação de uma cor pode desenvolver fenómenos de contraste cromático, de maneira idêntica e mesmo mais intensa do que os produzidos na percepção real da mesma cor.”

Resta-nos, finalmente, assinalar uma prova fisiológica a favor da substancialidade real das imagens alucinatórias: a concernente às modificações da pupila dos alucinados.

Nesse sentido, observa o Dr. Féré:

“Eis o que notamos em duas histéricas com as quais nos foi possível entrar em comunicação verbal, durante o estado cataléptico.

Quando lhes ordenamos acompanhassem o voo de um pássaro, que pousara em uma cúpula, ou ainda de um outro em pleno espaço, as pupilas se lhe dilataram até ao dobro do diâmetro normal.

Mas, à proporção que fazíamos baixar o pássaro, elas se contraíam gradualmente.

Essa experiência pode reproduzir-se à vontade e o fenómeno se renova infalivelmente, sempre que sugerido às pacientes um novo objecto.

Ora, essas modificações das pupilas, provocadas nos catalépticos, e que não deixam de apresentar todos os fenómenos característicos da catalepsia, demonstram que, na alucinação, o objecto imaginário é visto exactamente como se fosse real, a provocar, pelo movimento, esforços de acomodação da pupila, de acordo com as leis que regulam a visão de um objecto real.”

Essas diversas e complexas modalidades pelas quais se manifestam as alucinações, por sugestão hipnótica, escapam totalmente à órbita explicativa dos pontos de referência.

Todavia, era inevitável e lógico que psicólogos e fisiologistas, despercebidos das hodiernas investigações metapsíquicas, considerassem os factos como de natureza puramente subjectiva, ainda que essa explicação fosse inconciliável com os mesmos factos.

Agora, é tempo de reconhecermos que, graças às modalidades características mediante as quais se operam as alucinações em apreço, devem elas ser consideradas em relação com as “formas do pensamento” entrevistas pelos sensitivoscom as gravadas em placas fotográficas ou, ainda, com as que se concretizam e materializam nas sessões mediúnicas.

Tudo contribui, assim, para demonstrar que as alucinações hipnóticas pertencem à classe das projecções objectivas pelo pensamento.

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Ernesto BozzanoPensamento e Vontade  Sugestão hipnótica e pós-hipnótica, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Female Saint_1941, pintura de Edgard Maxence)

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~

Milagres e a ciência moderna (II)

Para ilustrar o quão gradualmente o natural envolve o miraculoso e o quão facilmente as nossas crenças são determinadas por ideias preconcebidas, mais que por evidências, considerem-se alguns casos.

Há 40 anos apareceu no London Medical Times o relato de uma experiência sobre quatro russos que foram condenados à morte. Fizeram-nos dormir, sem que o soubessem, num leito onde pessoas morreram de cólera epidémica, mas nenhum deles ficou doente. Depois disso, foi-lhes dito que eles iam dormir em camas de pacientes de cólera, mas foram colocados em camas perfeitamente limpas e saudáveis. Então, três deles ficaram infectados com a doença na sua forma maligna e morreram num intervalo de quadro horas.

Cerca de 200 anos atrás, Valentine Greatrak curou pessoas de diversas doenças tocando-as com as suas mãos. O reverendo doutor R. Dean, num relato de suas observações pessoais, informa:

Estive três semanas junto com ele no meu Lord Conway (i) e o vi colocar as suas mãos sobre (estimo) mil pessoas: e realmente há algo nele mais que o comum, mas estou convencido de que não era miraculoso. Eu vi a surdez ser curada pelo seu toque, feridas dolorosas de muitos meses cicatrizarem-se em alguns dias, obstruções, e constipações serem removidas, e nódulos cancerosos no peito serem dissolvidos.

Esmagadoras são as evidências destas curas, detalhadas por testemunhas oculares de grande carácter e capacidade, mas não podem ser apresentadas aqui.

Destes dois casos, o primeiro será geralmente acreditado e o segundo, desacreditado. O primeiro é supostamente um efeito natural da "imaginação", o segundo é geralmente tomado como sendo de natureza milagrosa. Para se atribuir qualquer efeito físico atribuído à imaginação, basta apresentar os factos e ocultar a nossa completa ignorância das causas ou das leis que os governam. E, para sustentar que é possível não haver nenhum poder curativo no contacto repetido com um ser humano constituído de forma peculiar -, quando a analogia dos factos admitidos do mesmerismo prova quão poderosos e curiosos são os efeitos de um ser humano sobre o outro -, parece haver um grande grau de presunção na nossa actual e quase completa ignorância da relação da mente com o corpo.

Mas contrapomos que é apenas a classe menos importante dos milagres que pode ser possivelmente explicada desta maneira. Em muitos casos diz-se ter sido a matéria morta dotada com força e movimento, ou ter sido subitamente aumentada imensamente em peso e volume; diz-se que coisas não terrestres apareceram na terra e que o progresso ordenado dos grandes fenómenos da natureza foi subitamente interrompido. Uma característica da maioria dos milagres desta classe reputada é que eles pareceram implicar a acção de outro poder e inteligência que os dos indivíduos aos quais tal poder miraculoso é vulgarmente atribuído. Um dos mais comuns e bem atestados destes fenómenos é o movimento de vários corpos sólidos na presença de muitas testemunhas, sem qualquer causa descoberta. Ao lerem-se os relatos destas ocorrências por testemunhas oculares, um pequeno detalhe pontual frequentemente ocorre: um objecto parece ser atirado ou cair subitamente, ou ainda cai suavemente e sem barulho. Este ponto curioso é encontrado em antigos julgamentos de feitiçaria, assim como nos mais modernos fenómenos de casas assombradas ou do espiritualismo, e é notavelmente sugestivo que os objectos estão sendo carregados por um agente invisível. Para submeter tais coisas inteligíveis ou possíveis para o ponto de vista da ciência moderna, nós precisamos, contudo, poder valer-nos da suposição de que seres inteligentes possam existir, serem capazes de agir na matéria, embora eles mesmos sejam directamente incognoscíveis pelos nossos sentidos.

Que seres inteligentes possam existir à nossa volta, imperceptíveis, durante toda a nossa vida, e ainda serem capazes de fazer conhecida a sua presença actuando na matéria sob certas condições, será inconcebível para alguns e posto em dúvida por muitos mais. Mas nos aventuramos a dizer que nenhuma especulação da ciência moderna irá condenar a sua possibilidade. A dificuldade que esta concepção apresenta será de natureza completamente diversa daquela que ofusca a nossa crença na possibilidade dos milagres, quando definidos como uma contravenção daquelas grandes leis naturais que a moderna ciência tende a declarar imutáveis e absolutas. (ii) A existência de seres sencientes incognoscíveis pelos nossos sentidos não irá violar estas leis mais que a descoberta da natureza real dos Protozoa, aqueles organismos gelatinosos e sem estrutura que exibem muitos dos fenómenos superiores da vida animal sem qualquer diferenciação de partes ou especialização de órgãos que as funções necessárias a vida animal parecem requerer. A existência de tais intelectos que vão além do humano, se provada, iria apenas adicionar uma outra e mais notável ilustração de quão pequena é a porção do grande cosmos que os nossos sentidos nos permitem conhecer. Provavelmente, mesmo os cépticos sobre o assunto do sobrenatural, como Hume ou Strauss, não iriam condenar a concepção de tais inteligências ou a possibilidade abstracta de sua existência. Eles iriam talvez dizer: - Nós não temos suficientes provas do facto; a dificuldade de conceber o seu modo de existência é grande; o homem mais inteligente passa a sua vida inteira em total ignorância de qualquer dessas inteligências invisíveis: esta é a crença que prevalece entre os ignorantes e supersticiosos. Como filósofos, não podemos condenar a possibilidade do que se postula, mas precisamos ter a mais clara e satisfatória prova antes que possamos considerá-la como um facto.

Mas pode argumentar-se que, ainda que tais seres existam, eles podem ser constituídos apenas de formas mais difusas e subtis da matéria. Como, então, eles poderiam actuar sobre corpos ponderáveis, como produziriam efeitos em tudo comparáveis àqueles que constituem os milagres tão conhecidos? As pessoas que assim objectam devem ser lembradas de que todas as mais poderosas e universais forças da natureza são agora atribuídas a insignificantes vibrações de uma forma de matéria quase que infinitamente atenuada e que, por meio das maiores generalizações da ciência moderna, os mais variados fenómenos naturais foram trazidos para estas forças recônditas. Luz, calor, electricidade, magnetismo, e provavelmente vitalidade e gravitação, são considerados e são mais que "modos de movimento" de um espaço preenchido pelo éter; e não há uma simples manifestação de força ou desenvolvimento da beleza que não seja o derivado de um ou outro deles. Toda a superfície do globo foi modelada e remodelada, montanhas foram transformadas em planícies e planícies foram sulcadas e enrugadas em montanhas e vales, tudo isto por meio do poder das vibrações de calor etéreo colocadas em provimento pelo sol. Veios metálicos e cristais rutilantes incandesceram sob milhas de rocha e montanhas foram formadas por um conjunto distinto de forças desenvolvidas por vibrações do mesmo éter. Toda a erva e flor que resplandecem na superfície da terra devem o seu poder de crescimento e vida àquelas vibrações que chamamos de calor e luz, enquanto em animais e no homem os poderes daquele maravilhoso telégrafo, cuja bateria é o cérebro e cujos fios são os nervos, são provavelmente devidos à manifestação de um ainda totalmente distinto "modo de movimento" no mesmo éter difuso em todas as coisas. Em alguns casos podemos perceber os efeitos destas forças recônditas ainda mais directamente. Vemos um ímã, sem contacto ou impacto de qualquer matéria concebível pela nossa imaginação, como capaz de exercer força, superando a gravidade e a inércia, elevando e movendo corpos sólidos. Observamos a electricidade na forma de uma luz que passa pelas fendas do carvalho sólido, irradiando-se do alto de torres e campanários elevados ou destruindo homens e feras, algumas vezes sem um corte. E estas manifestações de força são produzidas por uma forma de matéria tão impalpável que apenas pelos seus efeitos ela nos é conhecida. Com tais fenómenos em todos os lugares à nossa volta, nós devemos admitir que, se inteligências feitas do que podemos denominar uma natureza etérea existem realmente, não temos razão para negar que elas utilizem essas forças etéreas que são a fonte inesgotável que origina toda a força, todo o movimento e toda a vida na Terra. Os nossos limitados sentidos e intelecto nos permitem receber impressões delas e traçar algumas das variadas manifestações do movimento etéreo sob fases tão distintas como a luz, o calor, a electricidade e a gravidade; mas nenhum pensador irá por um instante sequer, afirmar que não são factíveis outros possíveis modos de acção deste elemento primordial. Para uma raça de cegos, o quão completamente inconcebível seria a faculdade da visão, o quão absolutamente desconhecido é a existência da luz e a sua miríade de manifestações de forma, cor e beleza. Sem este único sentido, o nosso conhecimento da natureza e do universo não seria uma milésima parte do que é. Por sua ausência, o nosso intelecto se tornaria diminuto, nós não poderíamos dizer até onde se conhece; e nós deveríamos crer que a nossa natureza moral não poderia nunca ser amplamente desenvolvida sem ele e que dificilmente teríamos atingido a dignidade e a supremacia do ser humano. Ainda é possível, e talvez provável, que haja modos de sensação superiores aos nossos, como a visão o é ao toque e ao ouvido. No próximo capítulo, consideraremos o assunto das mais recentes descobertas do assim chamado sobrenaturalismo, baseados neste ponto de vista.

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(i) Nota do tradutor: jardim irlandês de interesse histórico.
(ii) Nota do Tradutor: Esta opinião acerca da ciência comum no século XIX não é mais partilhada no nosso século em função das descobertas da microfísica, que mostra limites às leis de Newton. Mesmo os epistemológos que argumentam em defesa da unicidade da ciência aceitam o argumento de que o conhecimento científico é falível ante a mostra de evidências contrárias.



Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico do Sobrenatural, II Milagres e a ciência moderna 2 de 2, 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt, detalhe | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, de Edgard Maxence)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

a pedra e o joio ~

a questão | metodológica 

Expostos, nos cinco pontos anteriores, os motivos históricos, espirituais e escriturísticos que nos asseguram a legitimidade da obra de Kardec, demonstrada a sua integração na cultura contemporânea, a confirmação científica, filosófica e religiosa dos seus princípios fundamentais na actualidade e as perspectivas que abre para a renovação cultural, parece-nos inegável a importância fundamental do Espiritismo nos nossos dias. Bastaria isso para exigir de todos nós o maior respeito por essa obra ainda tão mal conhecida e mal estudada. Em consequência, tentativas de reformulá-la não encontram justificativa e as pretensões de a superar chegam às raias (nos dois extremos do processo lógico) da ignorância e da irresponsabilidade.

Mas para que isso fique mais claro é conveniente tratarmos do problema do método em Kardec. A chamada questão metodológica, de importância basilar em todos os campos do pensamento, passa completamente despercebida entre os opositores, os críticos e os pretensos reformadores da obra de Kardec. É isto o suficiente para mostrar a insuficiência, a incapacidade e o empirismo (no mau sentido do termo) de todos os que defendem teorias e obras reformistas no campo do Espiritismo ou pretendem que certos ramos das Ciências actuais tenham superado a posição espírita, ou, ainda, supõem que as suas experiências pessoais, no geral corriqueiras e sem obediência às exigências metodológicas, estão em condições de abrir novos caminhos à pesquisa espírita.

É simplesmente assombrosa a leviandade com que espíritas e não espíritas, entre gente do povo e homens de cultura, formulam críticas a Kardec sem o conhecerem, sem haverem realmente estudado a sua obra e meditado sobre ela. O próprio Kardec já notara, no seu tempo, a estranha leviandade de homens de ciência que se propunham a opinar sobre questões espíritas sem nada saberem do assunto. A situação continua a mesma nos nossos dias. E é evidente que essa continuidade não desmerece a doutrina, mas sim os que se mostram incapazes de compreendê-la.

Em face dessa situação somos obrigados a tratar do assunto de maneira que muitas vezes parecerá primária a pessoas afeitas a estudos superiores. Somos forçados a lembrar conceitos já considerados vulgares nos meios culturais, a aplicar esquemas analíticos rudimentares (como fizemos em O Verbo e a Carne, no exame do roustainguismo) e a descer a explicações banais de problemas que na verdade não podiam nem deviam existir, mormente no meio espírita. Este problema de método é um deles. Do ponto de vista cultural, é simplesmente vergonhoso que o tenhamos de recolocar constantemente ante os olhos de dirigentes de grupos, de centros e de instituições representativas do movimento doutrinário.

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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A questão metodológica, 1 de 2, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 22 de agosto de 2015

O Espiritismo na Arte ~

Parte II

Arte: meio de elevação e renovação; Arte: meio de aviltamento; O pensamento de Deus; Fonte das altas e sãs inspirações ~

|Fevereiro de 1922|

A arte, sob as suas formas diversas, como dissemos no artigo anterior, é a expressão da beleza eterna, uma manifestação da poderosa harmonia que rege o Universo; é o raio de luz que vem do alto e que dissipa as brumas, as obscuridades da matéria, e nos faz entrever os planos da vida superior. A arte é, por si mesma, plena de ensinamentos, de revelações, de luz. Ela arrasta a alma em direcção às regiões da vida espiritual, que é a verdadeira vida, e que a alma anseia tornar a encontrar um dia.

A arte bem compreendida é um poderoso meio de elevação e de renovação. É a fonte dos mais puros prazeres da alma; ela embeleza a vida, sustenta e consola na provação e traça para o espírito, antecipadamente, as rotas para o céu. Quando a arte é sustentada, inspirada por uma fé sincera, por um nobre ideal, é sempre uma fonte fecunda de instrução, um meio incomparável de civilização e de aperfeiçoamento.

Porém, nos nossos dias, muito frequentemente ela é aviltada, desviada do seu objectivo, escravizada por mesquinhas teorias de escola e, principalmente, considerada como um meio de chegar à fortuna, às honras terrestres. Emprega-se a arte para adular as más paixões, para superexcitar os sentidos, e assim se faz da arte um meio de aviltamento.

Quase todos aqueles que receberam a sagrada missão de conduzir as almas para o alto se eximiram dessa tarefa. Eles se tornaram culpados de um crime, recusando-se a instruir e a esclarecer as sociedades, perpetuando a desordem moral e todos os males que se precipitam sobre a humanidade. Esse comportamento explica a decadência da arte na nossa época e a ausência de obras importantes.

O pensamento de Deus é a fonte das altas e sãs inspirações. Se os nossos artistas soubessem beber nessa fonte, nela encontrariam o segredo das obras imperecíveis e as maiores felicidades. O Espiritismo vem oferecer-lhes os recursos espirituais de que a nossa época tem necessidade para se regenerar. Ele nos faz compreender que a vida, na sua plenitude, é apenas a concepção e a realização da beleza eterna.

Viver é sempre subir, sempre crescer, sempre acrescentar em si o sentimento e a noção do belo.

As grandes obras só se elaboram no recolhimento e no silêncio, à custa de longas meditações e de uma comunhão mais ou menos consciente com o mundo superior. O alarido das cidades não é conveniente ao voo do pensamento; ao contrário, a calma da natureza, a paz profunda das montanhas, facilitam a inspiração e favorecem a eclosão do talento. Assim, confirma-se, uma vez mais, o provérbio árabe: “O barulho é para os homens, o silêncio é para Deus!”

O espírita sabe que imensa ajuda a comunhão com o Além, com os espíritos celestes, oferece ao artista, ao escritor, ao poeta. Quase todas as grandes obras tiveram colaboradores invisíveis. Essa associação se fortifica e se acentua pela  e pela prece, que permitem às forças do Alto penetrarem mais profundamente em nós e impregnarem todo o nosso ser. Mais do que qualquer outro, o espírita sente as correntes poderosas que passam sobre as frontes pensativas e inspiram as ideias, as formas, as harmonias, que são como os materiais dos quais o génio se utilizará para edificar a sua maravilhosa obra.

A consciência dessa colaboração dá a medida da nossa fraqueza; ela nos faz compreender qual parte cabe à influência de nossos irmãos mais velhos, dos nossos guias espirituais, daqueles que, do espaço, se inclinam sobre nós e nos assistem nos nossos trabalhos. Ela nos ensina a ficar humildes no sucesso. O orgulho do homem é que fez a fonte das altas inspirações secar. A vaidade, que é o defeito de muitos artistas, torna o seu espírito insensível e afasta as grandes almas que concordariam protegê-los. O orgulho forma uma espécie de barreira entre nós e as forças do Além.

O artista espírita conhece a sua própria indigência, mas sabe que acima dele, abre-se um mundo sem limites, pleno de riquezas, de tesouros incalculáveis, perto dos quais todos os recursos da Terra não são mais que pobreza e miséria. O espírita também sabe que esse mundo invisível – se ele souber tornar-se digno dele, purificando o seu pensamento e o seu coração – pode tornar mais intensa a acção do Alto, fazê-lo participar das suas riquezas pela inspiração e pela revelação e delas impregnar as obras que serão como um reflexo da vida superior e da glória divina.

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte II – Arte: meio de elevação e renovação; Arte: meio de aviltamento; O pensamento de Deus; Fonte das altas e sãs inspirações. 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)