domingo, 16 de abril de 2023

o grande desconhecido ~


O PROCESSO CULTURAL

No desenvolvimento da Cultura, no nosso mundo, podemos assinalar três fases bem definidas no processo histórico:

A – Culturas Empíricas.
B – Culturas Religiosas.
C – Culturas Científicas.

As Culturas Empíricas desenvolvem-se nas relações primárias do homem com a Natureza, através das experiências naturais. Nessas experiências o homem elabora os três elementos básicos de toda a cultura:

– a linguagem.
– o rito.
– o instrumento.

Não se trata de uma elaboração sucessiva, mas sincrónica, de uma reelaboração das experiências animais.

Tudo se encadeia no Universo, diz O Livro dos Espíritos.

Nesse encadeamento as vozes animais transformam-se na linguagem humana, os ritos em rituais da sociabilidade humana e dos cerimoniais religiosos, as garras dos animais projectam-se nos instrumentos de madeira e pedra de que o homem se serve para agir sabre a Natureza e adaptá-la às suas necessidades de sobrevivência.

As experiências que desenvolvem a Cultura Empírica excitam as potencialidades do espírito, desenvolvendo-as nas tribos e nas hordas. A lei de adoração, proveniente da ideia inata de Deus no homem, gera a reverência pelos poderes misteriosos da Natureza e institui os primeiros rituais de reverência aos pagés ou xamãs e feiticeiros, bem como ao cacique e aos chefes guerreiros. O culto às divindades da selva nasce desses rituais.

A Cultura Empírica gera a Cultura Religiosa das primeiras tribos sedentárias. A ideia de Deus define-se mais nítida com o desenvolvimento da Razão, sob a influência dos ritos da Natureza, nas primeiras civilizações agrárias e pastoris. O milagre das germinações, no ritmo regular das estações e, a proliferação dos rebanhos provam a existência de inteligências controladoras dos fenómenos naturais e protectoras do homem. O animismo, projecção da alma humana nas coisas, impregna a Natureza com uma vida factícia em que a pedra, a árvore, o rio, o bosque, a montanha, o mar, tudo fala e pensa em condições humanas. As manifestações espíritas provam a realidade anímica da Natureza. A figura de Deus, Ser Superior, criador e dominador do mundo, impõe-se ao homem na forma necessariamente humana. E como Deus não pode estar sozinho, multiplica-se em mitos que simbolizam as suas várias actividades, ligadas às actividades humanas. Ao mesmo tempo, as forças destruidoras e as manifestações de espíritos malignos geram os mitos da oposição a Deus. Nasce o Diabo desse contraste, estabelecendo a luta entre o Bem e o Mal, sujeitando o homem à esperança da protecção divina e ao temor dos poderes maléficos.

A Cultura Religiosa configura-se na síntese dessa dialéctica do invisível e do visível, do sentimento e da sensação, fazendo evoluírem as civilizações agrárias e pastoris para a fase das civilizações teocráticas que se desenvolvem no Oriente, nas regiões em que brilha a luz em cada alvorecer.

Os ritmos da Terra e do Céu: Do dia e da noite, as estações do ano, o Sol e a Lua, as constelações anunciadoras de cada mudança no tempo, a chuva e as Inundações, os terramotos, as erupções vulcânicas, as pestes, as pragas, o relâmpago, o raio, as tempestades exigem a disciplinação do caos e ao mesmo tempo a complexidade dos cultos.

Os soberanos das nações são filhos de Deus e possuem poderes divinos.

A Cultura desenvolve-se na argamassa dos sentimentos e das sensações.

A Fé define-se como sentimento e sensação em misturas condicionadas pela Razão, expressa nas formulações filosóficas.

A Teologia brota desse complexo de mistérios como a Ciência Suprema dos videntes e dos profetas, dos homens mais do que homens de que falaria Descartes, homens privilegiados pela sabedoria infusa que desce do Céu para iluminar a Terra.

A Cultura Religiosa é uma oferenda celeste que os homens simplesmente homens não podem tocar com as suas mãos indignas, não podem avaliar com as suas mentes entorpecidas pelos interesses materiais e as ambições inferiores da vida perecível.

O mundo divide-se em duas partes inconciliáveis: surgem os conceitos do Sagrado e do Profano.

As Culturas Religiosas desligam-se da tradição empírica, rejeitam a experiência natural, relegando-a ao campo do profano, do pecaminoso. Entregam-se à alienação do suposto, do imaginário.

O Cristianismo envolve-se nas contradições humanas:

cai na simonia, no comércio ambicioso de sacramentos e indulgências, pregando a renúncia ao mundo e a santidade da pobreza;

proclama a humildade como virtude e investe-se do poder político;

denuncia o paganismo e o judaísmo como heréticos e assimila os seus elementos rituais e a sua política gananciosa;

prega o Reino de Deus e apossa-se dos reinos terrenos;

impugna a sabedoria grega e constrói o seu saber com decalques de Platão e Aristóteles;

ensina a fraternidade e promove as guerras fratricidas em nome de Deus;

erige-se em religião do Deus Único e divide Deus em três pessoas distintas;

institui o celibato como virtude e faz comércio ambicioso do sacramento do matrimónio;

combate a magia e reveste o seu culto de poderes mágicos;

luta contra as heresias e comete a suprema heresia de submeter Deus ao poder do sacerdócio no acto eucarístico;

profliga a idolatria e enche os seus templos com ídolos copiados da idolatria mitológica, chega ao máximo da alienação estabelecendo o sistema fechado das clausuras e dos mosteiros segregados;

prega o Evangelho e nega ao povo o acesso aos textos que considera privativos do clero;

proclama a supremacia espiritual do amor e semeia o ódio aos que não aceitam os seus

princípios.

A alienação cristã faz da cultura um sincretismo de absurdos assimilados de dogmas e rituais bastardos de igrejas e ordens ocultas da mais alta Antiguidade, transformando o conhecimento em gigantesca manta de retalhos em que as próprias vestes sacerdotais e paramentos do culto são copiados de antigas e condenadas igrejas.

A cultura cristã desenvolve-se com pressupostos falaciosos e um fabulário ridículo enxameado de superstições erigidas em verdades absolutas, provindas de revelações divinas.

A verdade artificial da sabedoria eclesiástica encobre a realidade com o espesso véu das elucubrações dos teólogos, modelos de esquizofrenia catatónica e megalomania delirante.

A cultura em evolução nas fases anteriores cai na estagnação de um charco de mentiras sagradas, pílulas doiradas de um anestésico.

Interrompe-se o processo cultural.

Não se pode conhecer mais nada. Cada Igreja tem a sua verdade própria e inverificável, sendo a Igreja Cristã a mais poderosa barreira a qualquer tentativa de investigação da realidade. A morte cruel é o prémio dos que se atreverem a rasgar o Véu de Isis para mostrar o corpo da Verdade Nua.

O desenvolvimento da imaginação criadora levara a cultura a um solipsismo devorador.

Tudo estava esclarecido, a imaginação dos poetas (considerados profetas) resolvia todos os mistérios em termos de mitologia grega ou tradição romana, os teólogos solucionavam os problemas da vida e da morte com belas frases em latim, as Igrejas detinham a Verdade Absoluta, amaldiçoando-se entre si e, velavam pela ordem cultural perseguindo e matando em nome de Deus os atrevidos que tentassem profanar a Palavra de Deus, escrita na Bíblia por velhíssimos judeus que haviam, num complô com César e o seu legado Pilatos, condenado à flagelação e à cruz um jovem carpinteiro que tivera a audácia de se apresentar como o Messias de Israel.

A Cultura Científica teve de romper a golpes de atrevimento a selva selvaggia dessa cultura religiosa inconsequente, contraditória e arrogante, empalhada como um pássaro morto em velhos pergaminhos de uma sabedoria feita de suposições e elucubrações pretensiosas.

O mundo dos homens desligara-se totalmente da realidade, fechando-se num casulo de formulações abstractas.

Mais bizantina que Bizâncio, Roma sofismava sobre problemas que se recusava a conhecer. Só a ignorância total e a ingenuidade das populações bárbaras poderiam aceitar. Após a queda do Império do Ocidente, comprovava-se historicamente a afirmação evangélica de que o ensino de Jesus seria deturpado e necessitaria de tempo para que os homens pudessem compreendê-lo.

O milénio medieval teria a função de desenvolver a razão como guia do pensamento e freio da imaginação, ao fogo das tragédias e loucuras de um misticismo criminoso, para que, no Renascimento, os frutos de experiências dolorosas abrissem perspectivas para o desenvolvimento de uma cultura realista, apoiada em pesquisas metódicas da realidade.

Foi então que a esquizofrenia mundial se revelou em definitivo: o espírito humano estava dividido numa cultura fantasiosa, formada pela dogmática absurda das religiões e, numa cultura rebelde, atrevida e exigente, que arrancava os homens da ilusão de um saber confuso, para oferecer-lhes o saber legítimo que iniciara a fase das experiências empíricas e se negara a si mesma no desenvolvimento alucinado do fanatismo religioso.

O movimento da Reforma, desencadeado por Lutero, em consequência das lutas de Abelardo e das proposições de Erasmo de Roterdão, em conjugação aparentemente ocasional com as tentativas de pesquisas objectivas de GalileuCopérnicoGiordano Bruno e outros mártires da Ciência nascente, marcavam os rumos de uma nova concepção do mundo e do homem.

Abelardo foi o precursor medieval de Descartes, que por sua vez foi o precursor de Kardec.

Aos fundamentos emocionais da Fé absurda e cega, os pioneiros do retomo ao real ofereciam os fundamentos da Razão esclarecida e da pesquisa científica.

A Verdade ressurgia das cinzas das fogueiras criminosas e a Fé de olhos abertos substituía a ceguinha esclerótica das sacristias.

Mas a luta pela Verdade da concepção cristã restabelecida só atingiria o seu apogeu nos meados do Século XIX, com a Codificação do Espiritismo, através das pesquisas pioneiras de Kardec sobre os fenómenos mediúnicos, hoje admitidos pela Ciência com a denominação de paranormais.

Kardec provara que os médiuns não eram anormais, como pretendiam os investigadores da Medicina e da Psicologia, nem sobrenaturais, como pretendiam os defensores de dogmas obsoletos, mas naturais e normais.

A Mediunidade impunha-se à pesquisa dos cientistas exponenciais da época, que rasgavam ao mesmo tempo o Véu do Templo, revelando os seus mistérios, os Véus de Isis, para desvendar o sentido dos símbolos mitológicos.

Os homens começaram então a aprender que não sabiam nada e tinham de lutar para descobrir a Verdade escondida atrás da aparência enganosa das coisas dos seres.

A Ciência Espírita instalou-se no mundo, com as consequências necessárias da Filosofia Espírita e da Religião em Espírito e Verdade.

Espiritismo, nos seus três aspectos, está hoje confirmado pela Cultura Científica e o seu alcance cósmico confirma-se ao ritmo acelerado das conquistas culturais do século, restabelecendo o ensino deturpado pelas ambições humanas, que Jesus de Nazaré semeou em palavras de vida e imortalidade nas almas de todos os tempos.

/…


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, I – O PROCESSO CULTURAL, 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O monge estuda as Escrituras | 1877, lápis e giz-estudo ao painel “A Educação de São Luís” Panteão, Paris (a mesma imagem, do monge, aos pés de Branca de Castela e de São Luís, nesse painel, óleo sobre tela) ambos de Alexandre Cabanel

segunda-feira, 3 de abril de 2023

~~~ Párias em Redenção ~~~


FÚRIA ASSASSINA 
(III) 

Passados os primeiros dias, em que mergulhara fundo no fosso da libertinagem, com a alma em labéus hediondos, Girólamo acreditou chegado o momento de promover uma entrevista com a comparsa. 

Para tanto, solicitou o auxílio de um jovem servente da casa e pediu-lhe que, em seu nome, procurasse a jovem, convidando-a, em segredo, a vir à villa Angélico, com a maior brevidade. Acrescentou ao recado que ela explicasse, em casa, o impositivo que a reteria fora do lar por toda a tarde, sem entrar em maiores esclarecimentos. Como prova da autenticidade da mensagem, solicitou ao jovem que apresentasse a Assunta o anel que trazia no dedo mínimo e, que seria facilmente identificado. 

Girólamo sabia do local em que se refugiava a Dulcineia e não teve dificuldade em fazer-se compreendido pelo moço, acostumado a serviços dessa natureza. 

Assunta, quando soube que o amante se encontrava em Florença, prorrompeu em ruidosa alegria. Agradeceu ao mensageiro e o despediu festivamente, prometendo comparecer ao encontro na tarde do dia imediato, no local aprazado. Modificou-se, então, inteiramente, justificando em casa a necessidade de encontrar pessoa amiga que, recém-chegada de Siena, trazia notícias agradáveis e lhe impunha a necessidade do encontro. Foi com desregrada ansiedade que aguardou o momento de se dirigir à villa, o que fez sem maiores dificuldades. À entrada, Girólamo a aguardava. Saudou-a, aparentando discrição e, convidou-a a adentrar-se no bosque margeante ao rio, onde poderiam conversar sem testemunhas incómodas. 

A jovem, que se ressentia da ausência do mancebo dissoluto, atirou-se-lhe nos braços, logo pôde fazê-lo e, narrou-lhe os receios, as preocupações, o sonho atemorizante. O amásio fitava-a quase com desprezo. Temendo, porém, ser descoberto nos pensamentos íntimos que acalentava, aparentou, cortês, certo interesse, falando com natural cinismo: 

– Examinemos a nossa situação. Segundo sei, em Siena tudo transcorre conforme planeado. Durante este período de repouso que experimento aqui, pessoas da minha absoluta confiança organizam os meus direitos e os legalizam. Pouco tempo nos separa da ventura. É indispensável, todavia, prosseguir sem despertar suspeitas. Todos os factos ainda estão muito recentes na memória geral. Tão logo eu receba correios do palácio, o que será muito breve, retornaremos e, transcorrido algum tempo, anunciarei o nosso noivado, a nossa boda. De momento, ninguém, a qualquer pretexto, poderá saber dos nossos planos, pois poderia pô-los a perder. 

– Eu pressinto, amado – falou com receio –, que uma nova tragédia se abaterá sobre nós. Tenho a impressão de que a Senhora duquesa me segue, fitando-me com os olhos imensos e tristes… Conseguiste esquecê-la Girólamo? 

– Não me fales dos mortos, – retrucou o moço com enfado. – Os que para lá foram não voltam a perturbar os que aqui ficaram. O que está feito não se poderá refazer. Prefiro o céu na terra à terra do céu… 

E estrugiu ruidosa gargalhada, na qual extravasava as emoções, zombeteiro e cruel. Pela primeira vez, Assunta compreendeu que está diante de um homem totalmente destituído de sentimentos. Dominada por justificável receio, enfrentou-o, azeda: 

– Vê como te portas comigo. Estás amarrado a mim, não esqueças. Não te perdoaria jamais qualquer traição. Irei contigo à força, mas não te livrarás de mim tão facilmente, como fizeste a Lúcia e aos desditos rebentos do duque

– Cala-te, infeliz! Desejas que algum passado te escute? Ignoras como o vento conduz notícias dessa natureza? Não me afastarei de ti, pois que jamais te separarás de mim. Eu te amo e te desejo a meu lado… 

Rapidamente, queimado pelo fogo dos desejos em desalinho, envolveu a moça sufocou-a na paixão desregrada. 

Deambulante entre a violência dos instintos e os albores da razão, Assunta, fascinada pelo idílio criminoso, que se assentava em sangue e lágrimas, deixou-se arrastar cada dia a mais fundo engodo, terminando por entregar-se a Girólamo totalmente, de corpo e alma. Sonhadora e tresloucada trocou os sonhos da pureza pelo abastardamento dos sentidos, em devassidão sempre crescente e insaciável. É verdade que o enceguecimento da razão produz o vaguear nas sombras e o vilipêndio dos sentimentos tresmalha as manifestações da dignidade e do pudor. Cada vez mais embriagada de luxúria, repetia os encontros clandestinos com o moço irresponsável, permitindo-se consumir numa sofreguidão sem medidas. E como a febre dos sentidos somente se extingue com o apagar das próprias fontes do desejo, o amolentamento do carácter progredia na razão directa do devaneio sensual. O refocilar, em casa, que poderia abrir as comportas da mente a nobre inspiração superior, antes servia de pretexto para novas aventuras… O amante escolhera, precavido, local discreto para os sucessivos encontros, de modo a evitar ser identificado ao lado da irresponsável mulher. 

Girólamo, experimentado explorador da sentimentalidade mórbida, apesar da aparente vinculação com a doidivanas, apenas esperava, impaciente, o justo momento para libertar-se do seu jugo, que era penoso, encerrando esse desagradável capítulo da vida. Qual ave de rapina, enrodilhava a vítima na sua armadilha, sonhando com os alcantis mais elevados da ventura e do prazer, esperando o ensejo para despedaçá-la e romper os últimos laços que o retinham prisioneiro aos perigosos cipós com que manipulava e retinha a presa. 

Assim, logo chegaram as primeiras flores da Primavera e os dias se fizeram mais claros e róseos, com o canto das águas do Arno bordando as margens de mais sons e festa, o malfadado descendente dos Cherubini programou com a moça apaixonada uma excursão ao bosque das colinas de San Miniato, onde o dia lhes poderia proporcionar sonhos de prazeres fugidos, que tentariam alongar, quanto pudessem. 

Concertado o convescote para o domingo porvindouro, que lhe facultaria bastante tempo para organizar o hediondo delito, com cuidados especiais, inclusive visitando o local onde deveria consumar a tragédia, a moça, alucinada pela força dos desejos descabidos, esquecida de que somente o equilíbrio dispensa ordem de paz, aceitou o encontro para o dia programado, prometendo estar à frente do Palazzo Vecchio, onde se encontrariam, às primeiras horas, antes do despertar da cidade. 

Conseguido o cabriolé, mediante aluguer na estalagem para onde se transladara, Girólamo rumou em busca da enamorada e, encontrando-a, seguiu pressuroso por caminhos marginais, fora da cidade, vencendo o vale do Arno e dirigindo-se às verdes colinas, sob a pressão de crescente impaciência. Dissimulando com dificuldade os desencontrados sentimentos, tivera antes o cuidado de convencer a jovem de que se despedisse dos familiares, alegando chamado urgente para resolver a Siena e, a ela prometendo uma viagem de recreação, no dia imediato. Cauteloso, a fim de evitar possíveis e remotas suspeitas, Girólamo, despediu-se anteriormente dos amigos, em festa ruidosa, na villa, explicando quanto à necessidade de retornar, embora ainda se demorasse pelo caminho, em visitas a pessoas gradas ao seu coração, prometendo aos amigos uma retumbante recepção no Palácio di Bicci, quando das suas núpcias, em futuro não distante. Astuto e venal, mudou-se cautelosamente para uma hospedaria, à entrada da cidade, onde poderia passar como viajante ignorado, até a consumação do novo crime ardilosamente premeditado. 

Conduzindo matalotagem especial, vinho capitoso e frutos, o casal adentrou-se pelas vias húmidas e perfumadas do bosque em flor. Chilreavam os pássaros ao amanhecer e a Natureza, desabrochando claridade, parecia um convite ao júbilo puro e à emotividade superior, como se as vozes onomatopaicas da vida modulassem nobre pastoral. 

Mais relaxado, agora, quando o bosque era um festival de bênçãos naturais, o moço quase se deixou penetrar pelo bucolismo da paisagem, que tinha por moldura, mais abaixo, as águas do rio cantarolante entre seixos e pedras das bordas. 

Escolhido um lugar discreto, numa clareira natural entre árvores, os jovens saltaram no acume do outeiro, onde a visão era esplendente e, se entregaram ao primeiro repasto, entremeado de libações... 

Motivando a recordação dos dramas que os jungiam um ao outro em canga pesada, Girólamo perguntou à moça em deslumbramento: 

– Deixaste transparecer em casa ou a alguém os nossos objectivos futuros? Fizeste quanto te recomendei? Não ignoras que tudo organizo para o nosso próprio bem. 

– Tranquiliza-te, querido, – informou a companheira inexperiente. – Não seria eu a tonta que poria a perder a cornucópia da fortuna, que agora se volta recheada na minha direcção. Sempre ambicionei a glória e o fastígio. Como tu, eu também caminhava no chão, com gana de galgar a montanha. Se não fosse contigo… Mas, apareceste no meu caminho e não te pude resistir. Puxaste-me para a escalada e aqui estou. Se subo ou desço, ainda não sei… 

– E se, por acaso – aventou o moço, como se falasse imponderadamente –, um mau fado, em circunstância vil, te exigisse denunciar-me, fá-lo-ias? 

– Sabes que não. Eu te pertenço e nunca me permitia trair-te. Excepto… 

– Excepto?! Em que condições me arrojarias ao cárcere e à morte? 

– Se me abandonasses, – falou, com dura franqueza e esfogueada. – Uma mulher ferida nos seus sentimentos é pior do que um animal acossado. Nunca o intentes, porque não te cederei. A minha segurança é o nosso segredo e eu jurei – maledetta vita! – que não terias perdão se um dia te encorajasses a subestimar-me, a trair-me… 

A jovem pusera-se de pé. Todo o seu sangue ferveu, ante a possibilidade da traição do amado. Erguida, contrastava com o sol filtrado pelas árvores e, emocionada, o seu rosto jovem adquirira forte beleza carnal. 

Com o espírito túmido de ódio e trémulo, aguardando o ensejo de desferir certeiro golpe, Girólamo fitou-a e considerando-lhe a beleza, que sempre o fascinava. Mas os apetites, naquele momento, deveriam ceder lugar às ambições desmedidas para o futuro. Como se fora possuído por uma fúria assassina, ergueu-se de um salto e atacou violentamente a moça, que venceu nos braços de aço, dominando-a facilmente. A princípio, Assunta não compreendeu o que ocorria: num relance, porém, em que os seus olhos se cravaram nos do apaixonado, percebeu o que se passava, mas já era tarde. A expressão de horror que se lhe desenhou no rosto congestionado e o grito lancinante que proferiu de nada valeram. Tomando de um punhal que trazia sob a jaqueta de veludo carmesim, desferiu repetidos golpes, desvairado, automaticamente, até certificar-se da extinção da vida naquele corpo terrivelmente mutilado. Sangrando abundantemente, a jovem foi largada no solo, a estremecer, nos últimos reflexos e estertores… 

Com a cabeça a estourar, o moço olhou em derredor, como se sentisse terrível presença a espioná-lo e, nos sentidos aguçados, teve a impressão de que alguém se afastava em disparada sobre folhas e gravetos. Corça ou homem? Que importava! Agora era tarde demais! 

O crime não poderia deixar vestígios. A astúcia do criminoso é a sua arma e a sua perdição. 

Girólamo afastou-se, lépido, do local e, improvisou, numa vala distante, uma sepultura, onde atirou os despojos sangrentos da companheira, cobrindo-os com folhagens e ramos. Logo após, procurou apagar as manchas sanguinolentas na clareira, deixando transparecer que os sinais no solo fossem de feras em luta, que se rebolcassem feridas, pelo chão revolto. Desceu ao rio, para a necessária limpeza das mãos e da indumentária e, tornou a cidade, usando o veículo que deixara antes de galgar o morro. No dia imediato, muito cedo, retornou a Siena, em condução da carreira, anónima, discretamente. 

Girólamo, como todo o criminoso, acreditou que o novo delito passara despercebido e que a mão da Justiça jamais o alcançaria. Reflexionando convencia-se de que Assunta, afinal, não representava nada na vida. Agora, era novo dia que necessitava viver, esquecendo o passado, começando experiências novas… 

/… 


VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 4. FÚRIA ASSASSINA (3 de 3), 13º fragmento desta obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO. 
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)