(III)
Passados os primeiros dias, em que mergulhara fundo no
fosso da libertinagem, com a alma em labéus hediondos, Girólamo acreditou
chegado o momento de promover uma entrevista com a comparsa.
Para tanto, solicitou o auxílio de um jovem servente
da casa e pediu-lhe que, em seu nome, procurasse a jovem, convidando-a, em
segredo, a vir à villa Angélico, com a maior brevidade. Acrescentou
ao recado que ela explicasse, em casa, o impositivo que a reteria fora do lar
por toda a tarde, sem entrar em maiores esclarecimentos. Como prova da
autenticidade da mensagem, solicitou ao jovem que apresentasse a Assunta o anel
que trazia no dedo mínimo e, que seria facilmente identificado.
Girólamo sabia do local em que se refugiava a
Dulcineia e não teve dificuldade em fazer-se compreendido pelo moço, acostumado
a serviços dessa natureza.
Assunta, quando soube que o amante se encontrava em
Florença, prorrompeu em ruidosa alegria. Agradeceu ao mensageiro e o despediu
festivamente, prometendo comparecer ao encontro na tarde do dia imediato, no
local aprazado. Modificou-se, então, inteiramente, justificando em casa a
necessidade de encontrar pessoa amiga que, recém-chegada de Siena, trazia
notícias agradáveis e lhe impunha a necessidade do encontro. Foi com desregrada
ansiedade que aguardou o momento de se dirigir à villa, o que fez
sem maiores dificuldades. À entrada, Girólamo a aguardava. Saudou-a,
aparentando discrição e, convidou-a a adentrar-se no bosque margeante ao rio,
onde poderiam conversar sem testemunhas incómodas.
A jovem, que se ressentia da ausência do mancebo
dissoluto, atirou-se-lhe nos braços, logo pôde fazê-lo e, narrou-lhe os
receios, as preocupações, o sonho atemorizante. O amásio
fitava-a quase com desprezo. Temendo, porém, ser descoberto nos pensamentos
íntimos que acalentava, aparentou, cortês, certo interesse, falando com natural
cinismo:
– Examinemos a nossa situação. Segundo sei, em Siena
tudo transcorre conforme planeado. Durante este período de repouso que
experimento aqui, pessoas da minha absoluta confiança organizam os meus
direitos e os legalizam. Pouco tempo nos separa da ventura. É indispensável,
todavia, prosseguir sem despertar suspeitas. Todos os factos ainda estão muito
recentes na memória geral. Tão logo eu receba correios do palácio, o que será
muito breve, retornaremos e, transcorrido algum tempo, anunciarei o nosso
noivado, a nossa boda. De momento, ninguém, a qualquer pretexto, poderá saber
dos nossos planos, pois poderia pô-los a perder.
– Eu pressinto, amado – falou com receio –, que uma
nova tragédia se abaterá sobre nós. Tenho a impressão de que a Senhora duquesa me
segue, fitando-me com os olhos imensos e tristes… Conseguiste esquecê-la
Girólamo?
– Não me fales dos mortos, – retrucou o moço com
enfado. – Os que para lá foram não voltam a perturbar os que aqui ficaram. O
que está feito não se poderá refazer. Prefiro o céu na terra à terra do céu…
E estrugiu ruidosa gargalhada, na qual extravasava as
emoções, zombeteiro e cruel. Pela primeira vez, Assunta compreendeu que está
diante de um homem totalmente destituído de sentimentos.
Dominada por justificável receio, enfrentou-o, azeda:
– Vê como te portas comigo. Estás amarrado a mim, não
esqueças. Não te perdoaria jamais qualquer traição. Irei contigo à força, mas
não te livrarás de mim tão facilmente, como fizeste a Lúcia e aos desditos
rebentos do duque.
– Cala-te, infeliz! Desejas que algum passado te
escute? Ignoras como o vento conduz notícias dessa natureza?
Não me afastarei de ti, pois que jamais te separarás de mim. Eu te amo e te
desejo a meu lado…
Rapidamente, queimado pelo fogo dos
desejos em desalinho, envolveu a moça sufocou-a na paixão desregrada.
Deambulante entre a violência dos instintos e
os albores da razão, Assunta, fascinada pelo idílio criminoso, que
se assentava em sangue e lágrimas, deixou-se arrastar cada dia a mais fundo
engodo, terminando por entregar-se a Girólamo totalmente, de corpo e alma.
Sonhadora e tresloucada trocou os sonhos da pureza pelo abastardamento dos sentidos,
em devassidão sempre crescente e insaciável. É verdade que o
enceguecimento da razão produz o vaguear nas sombras e o
vilipêndio dos sentimentos tresmalha as manifestações da dignidade e
do pudor. Cada vez mais embriagada de luxúria, repetia os encontros
clandestinos com o moço irresponsável, permitindo-se consumir numa sofreguidão
sem medidas. E como a febre dos sentidos somente se extingue
com o apagar das próprias fontes do desejo, o amolentamento do
carácter progredia na razão directa do devaneio sensual. O
refocilar, em casa, que poderia abrir as comportas da mente a nobre inspiração
superior, antes servia de pretexto para novas aventuras… O amante escolhera,
precavido, local discreto para os sucessivos encontros, de modo a evitar ser
identificado ao lado da irresponsável mulher.
Girólamo, experimentado explorador da
sentimentalidade mórbida, apesar da aparente vinculação com a doidivanas,
apenas esperava, impaciente, o justo momento para libertar-se do seu jugo, que
era penoso, encerrando esse desagradável capítulo da vida. Qual ave de rapina,
enrodilhava a vítima na sua armadilha, sonhando com os alcantis mais elevados
da ventura e do prazer, esperando o ensejo para despedaçá-la e romper os
últimos laços que o retinham prisioneiro aos perigosos cipós com que manipulava
e retinha a presa.
Assim, logo chegaram as primeiras flores da Primavera
e os dias se fizeram mais claros e róseos, com o canto das águas do Arno
bordando as margens de mais sons e festa, o malfadado descendente dos Cherubini
programou com a moça apaixonada uma excursão ao bosque das colinas de San
Miniato, onde o dia lhes poderia proporcionar sonhos de prazeres fugidos, que
tentariam alongar, quanto pudessem.
Concertado o convescote para o domingo porvindouro,
que lhe facultaria bastante tempo para organizar o hediondo delito, com
cuidados especiais, inclusive visitando o local onde deveria consumar a
tragédia, a moça, alucinada pela força dos desejos descabidos, esquecida de que
somente o equilíbrio dispensa ordem de paz, aceitou o encontro
para o dia programado, prometendo estar à frente do Palazzo Vecchio,
onde se encontrariam, às primeiras horas, antes do despertar da cidade.
Conseguido o cabriolé, mediante aluguer na estalagem
para onde se transladara, Girólamo rumou em busca da enamorada e,
encontrando-a, seguiu pressuroso por caminhos marginais, fora da cidade,
vencendo o vale do Arno e dirigindo-se às verdes colinas, sob a pressão de
crescente impaciência. Dissimulando com dificuldade os desencontrados sentimentos,
tivera antes o cuidado de convencer a jovem de que se despedisse dos familiares,
alegando chamado urgente para resolver a Siena e, a ela prometendo uma viagem
de recreação, no dia imediato. Cauteloso, a fim de evitar possíveis e remotas
suspeitas, Girólamo, despediu-se anteriormente dos amigos, em festa ruidosa,
na villa, explicando quanto à necessidade de retornar, embora ainda
se demorasse pelo caminho, em visitas a pessoas gradas ao seu coração,
prometendo aos amigos uma retumbante recepção no Palácio di Bicci, quando das
suas núpcias, em futuro não distante. Astuto e venal, mudou-se cautelosamente
para uma hospedaria, à entrada da cidade, onde poderia passar como viajante
ignorado, até a consumação do novo crime ardilosamente premeditado.
Conduzindo matalotagem especial, vinho capitoso e
frutos, o casal adentrou-se pelas vias húmidas e perfumadas do bosque em
flor. Chilreavam os pássaros ao amanhecer e a Natureza, desabrochando
claridade, parecia um convite ao júbilo puro e à emotividade superior, como se
as vozes onomatopaicas da vida modulassem nobre pastoral.
Mais relaxado, agora, quando o bosque era um festival
de bênçãos naturais, o moço quase se deixou penetrar pelo bucolismo da
paisagem, que tinha por moldura, mais abaixo, as águas do rio cantarolante
entre seixos e pedras das bordas.
Escolhido um lugar discreto, numa clareira natural
entre árvores, os jovens saltaram no acume do outeiro, onde a visão era
esplendente e, se entregaram ao primeiro repasto, entremeado de libações...
Motivando a recordação dos dramas que os jungiam um
ao outro em canga pesada, Girólamo perguntou à moça em deslumbramento:
– Deixaste transparecer em casa ou a alguém os nossos
objectivos futuros? Fizeste quanto te recomendei? Não ignoras que tudo organizo
para o nosso próprio bem.
– Tranquiliza-te, querido, – informou a companheira
inexperiente. – Não seria eu a tonta que poria a perder a cornucópia da
fortuna, que agora se volta recheada na minha direcção. Sempre ambicionei a
glória e o fastígio. Como tu, eu também caminhava no chão, com gana de galgar a
montanha. Se não fosse contigo… Mas, apareceste no meu caminho e não te pude
resistir. Puxaste-me para a escalada e aqui estou. Se subo ou desço, ainda não
sei…
– E se, por acaso – aventou o moço, como se falasse
imponderadamente –, um mau fado, em circunstância vil, te exigisse
denunciar-me, fá-lo-ias?
– Sabes que não. Eu te pertenço e nunca me permitia
trair-te. Excepto…
– Excepto?! Em que condições me arrojarias ao cárcere
e à morte?
– Se me abandonasses, – falou, com dura
franqueza e esfogueada. – Uma mulher ferida nos seus sentimentos é pior do que
um animal acossado. Nunca o intentes, porque não te cederei. A minha segurança
é o nosso segredo e eu jurei – maledetta vita! – que não
terias perdão se um dia te encorajasses a subestimar-me, a trair-me…
A jovem pusera-se de pé. Todo o seu sangue ferveu,
ante a possibilidade da traição do amado. Erguida, contrastava com o sol
filtrado pelas árvores e, emocionada, o seu rosto jovem adquirira forte beleza
carnal.
Com o espírito túmido de ódio e trémulo, aguardando o
ensejo de desferir certeiro golpe, Girólamo fitou-a e considerando-lhe a
beleza, que sempre o fascinava. Mas os apetites, naquele momento, deveriam
ceder lugar às ambições desmedidas para o futuro. Como se fora possuído por uma
fúria assassina, ergueu-se de um salto e atacou violentamente a moça, que
venceu nos braços de aço, dominando-a facilmente. A princípio, Assunta não
compreendeu o que ocorria: num relance, porém, em que os seus olhos se cravaram
nos do apaixonado, percebeu o que se passava, mas já era tarde. A expressão de
horror que se lhe desenhou no rosto congestionado e o grito lancinante que
proferiu de nada valeram. Tomando de um punhal que trazia sob a jaqueta de
veludo carmesim, desferiu repetidos golpes, desvairado, automaticamente, até
certificar-se da extinção da vida naquele corpo terrivelmente mutilado.
Sangrando abundantemente, a jovem foi largada no solo, a estremecer, nos
últimos reflexos e estertores…
Com a cabeça a estourar, o moço olhou em derredor,
como se sentisse terrível presença a espioná-lo e, nos sentidos aguçados, teve
a impressão de que alguém se afastava em disparada sobre folhas e gravetos.
Corça ou homem? Que importava! Agora era tarde demais!
O crime não poderia deixar vestígios. A astúcia
do criminoso é a sua arma e a sua perdição.
Girólamo afastou-se, lépido, do local e, improvisou,
numa vala distante, uma sepultura, onde atirou os despojos sangrentos da
companheira, cobrindo-os com folhagens e ramos. Logo após, procurou apagar as
manchas sanguinolentas na clareira, deixando transparecer que os sinais no solo
fossem de feras em luta, que se rebolcassem feridas, pelo chão revolto. Desceu
ao rio, para a necessária limpeza das mãos e da indumentária e, tornou a
cidade, usando o veículo que deixara antes de galgar o morro. No dia imediato,
muito cedo, retornou a Siena, em condução da carreira, anónima, discretamente.
Girólamo, como todo o criminoso, acreditou que o novo
delito passara despercebido e que a mão da Justiça jamais o alcançaria. Reflexionando
convencia-se de que Assunta, afinal, não representava nada na vida. Agora, era
novo dia que necessitava viver, esquecendo o passado, começando experiências
novas…
/…
VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
4. FÚRIA ASSASSINA (3 de 3), 13º fragmento desta obra. Texto mediúnico ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard
Maxence)
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