quarta-feira, 31 de maio de 2023

apóstolos de verdade ~


~ o menino ~ poeta 
(Herculano Pires por Jorge Rizzini) 

O ano de 1914 é um marco doloroso na história da humanidade. No dia 1º de agosto daquele ano a Alemanha declarou guerra à Rússia e dois dias depois à França. No dia seguinte invadiu a Bélgica. Vinte e quatro horas depois, exactamente à meia noite, a Inglaterra atacou a Alemanha. O rastilho de pólvora alastrou-se e antes de findar agosto o Japão investiu contra a China, tomando-lhe várias ilhas. A ânsia do poder enlouquecera a humanidade. A guerra espalhava-se rapidamente em todos os continentes, envolvendo também o Brasil. 

Primeira Guerra Mundial foi uma das provas mais estarrecedoras do atraso espiritual da humanidade. Durou exactamente quatro anos e três meses. Desencarnou e aleijou milhões de pessoas. Mas a Espiritualidade jamais deixara de enviar missionários à Terra e, na madrugada do dia 25 de setembro de 1914 (cerca de dois meses após eclodir a Primeira Grande Guerra) um Espírito Superior reencarnou na antiga Província do Rio Novo – hoje a bela cidade de Avaré no interior do Estado de São Paulo. Sua missão: defender a pureza doutrinária e consolidar a Doutrina Espírita em terras brasileiras. 

José Herculano Pires, filósofo, parapsicólogo, educador, romancista, poeta, jornalista, tradutor – esse legítimo apóstolo de Allan Kardec –, era filho primogénito de José Pires Correa (um farmacêutico que abandonaria a profissão para tornar-se um dos mais vibrantes jornalistas do interior paulista) e de Bonina Amaral Simonetti Pires, descendente de antiga família de Avaré e distinta pianista. O casal teve sete filhos: Herculano, Geraldo, Renê, Lourdes, Marília, Diógenes e Nancy, os dois últimos desencarnados com tenra idade. 

O nascimento de Herculano Pires se deu na residência de seus pais, uma ampla casa pintada de verde no meio do quarteirão da Rua Rio Grande do Sul, no Largo São João, onde José Pires Correa instalara também a sua farmácia. O parto não foi tranquilo... 

Em um diário íntimo escreveu Herculano Pires que ao nascer se viu em apuros: 

“Eram cinco horas de uma fria madrugada de setembro – fim de inverno e início da primavera –, quando abri os olhos para a visão caótica do mundo. Estávamos em 1914, ano da primeira guerra mundial. Nasci ameaçado pelo cordão umbilical que me apertava o pescoço. Mundo ingrato. Mal nascia e as próprias cordas da vida me agrediam na forma de tenazes da morte.” 

Nesse diário, em cujas páginas foram, infelizmente, registadas poucas reminiscências, ainda nos dá Herculano Pires informações sobre o seu nome e a sua infância: 

“Mamãe me contou que eu já trazia um nome. Não o trazia escrito na testa, mas na folhinha, pois o 25 de setembro é o dia de São Herculano. Tio Franco sugeriu que para reforçar a minha protecção – pois esse São Herculano não era muito conhecido – me dessem também o nome popular de São José. Assim, ao nome que eu trouxera, a família juntava outro.” 

E o menino, então reencarnado em família católica, ganhou o nome completo de José Herculano Pires. Não foi garoto robusto. 

“Tive uma infância com problemas de saúde que me acompanhariam por toda a vida. Mas a terra de Avaré e as águas do Rio Novo me fortaleceram. Na gripe de 1918, que completou no Brasil a matança da guerra na Europa, flutuei sobre as águas e continuei. O tifo era endémico na região e depois da gripe fez grandes devastações, mas dele também  me livrei.” 

Os problemas de saúde não impediram, no entanto, que a sua infância fosse feliz. Era Avaré uma cidade jovem por demais agradável. A paisagem era bucólica: as ruas de areia, a matriz, o Jardim São Paulo com a sua banda aos domingos e o coaxar dos sapos... O Rio Novo de águas cristalinas, onde homens e crianças pescavam, os carros de bois com as rodas rangendo alto no Largo da Estação e, naturalmente, o famoso trenzinho da Sorocabana soltando muita fumaça quando atingia 40 quilómetros por hora, a velocidade máxima... 

Avaré, embora pacata, uma vez por outra era sacudida por acontecimentos dramáticos. Quis a Espiritualidade que Herculano Pires presenciasse alguns, certamente para fazê-lo compreender, embora ainda criança, que a terra era um planeta de angústias e que muito havia por se fazer em prol da espiritualização do povo. 

Em seu diário escreveu ele: 

“Ainda criança, vi muita maldade fervendo em Avaré. Vi, à distância de um quarteirão, o velho João do Prado, grandalhão, sair de um cartório da Rua São Paulo, dar alguns passos e cair fulminado pelos tiros de revólver que um advogado lhe desfechara nas costas. Vi, no Largo do Mercado, um homem tombar esfaqueado por outro, esvaindo-se em sangue. Vi Rosinha casar-se por amor e por amor suicidar-se tomando formicida. Vi um homem com a cabeça arrebentada pela própria esposa. E vi crianças chorando na orfandade súbita, porque o pai e a mãe haviam sido mortos pela ferocidade de alguns parentes. E vi ainda – meu Deus, que horror! – um homem carregar pelas ruas da cidade, obrigado pela Polícia, o tronco carbonizado da vítima que tentara destruir pelo fogo.” 

Esses bárbaros crimes de morte, evidentemente, levaram Herculano Pires, menino ainda de cinco ou seis anos de idade, mas dotado de aguda inteligência, a pensar em Deus com frequência. A verdade é que já estava sendo preparado pelos Espíritos, a fim de, quando adulto, cumprir bem a sua missão. 

Notemos agora que desde menino tinha visões espirituais. Esse facto, que teria importância fundamental no decorrer de toda a sua vida, Herculano Pires revelou a Rizzini numa entrevista gravada. Ouçamos as suas palavras: 

“Não eram visões místicas. Eram visões reais. Eu via Espíritos andando pela casa, à noite. Ainda me lembro muito bem, eu era pequenino, me levantava, me firmava na guarda do berço e ficava olhando os Espíritos vagarem pela casa. Não eram apenas Espíritos de mortos. Eu via o Espírito de minha mãe, que estava viva, andar pela casa. Minha mãe dormia e o seu Espírito se desprendia. E isto eu via com bastante frequência. Esses factos provocaram alarme em casa porque, às vezes, via certos Espíritos que me assustavam e então eu gritava e acordava todo o mundo. Vinham saber de mim o que acontecera e meu pai dizia: “Ele está delirando, é preciso saber o que tem esse menino.” Mas, eu explicava o que tinha visto. Certa vez me aconteceu também um facto muito curioso. Eu já tinha uns sete ou oito anos e na casa do meu avô materno, em Avaré, havia um quintal muito grande (meu avô materno era italiano e minha avó materna brasileira). E eu, brincando com as crianças no fundo do quintal cheio de grandes mangueiras, de repente ouvi um estalo esquisito, estranho. Olhei para o lado. Vinha vindo uma velhinha, mais ou menos apressada, com um vestido que parecia estrangeiro e com meias listadas de vermelho e azul; listas circulares em torno da perna. E ainda me lembro também dos sapatões, para mim esquisitos... Ela não me deu satisfação, passou perto de mim e se dirigiu para uma espécie de depósito que havia no quintal, abriu a porta e entrou. A porta bateu e, com o estalo, voltei a mim. Quer dizer, saí daquele encantamento. Fui correndo desesperado para casa, gritando. Meu avô foi o primeiro a sair ao meu encontro: “O que há?”. Eu contei. “Repita isso!” Eu repeti. “Como era ela?” Eu contei. E dei dois detalhes de que hoje não me lembro. Então ele virou-se para minha avó e disse: “É minha mãe! É minha mãe!” Foi um fenómeno que ficou gravado na minha memória.” 

A família de Herculano Pires, já o dissemos, era, então, católica. É inegável que essas visões na infância tinham o objectivo maior de levá-lo, posteriormente, ao encontro do Espiritismo

Herculano Pires, quando criança, foi uma prova vigorosa da reencarnação. Ele trazia da Espiritualidade um lastro cultural vastíssimo adquirido em vidas anteriores e uma vocação perfeitamente definida. Menino notável, com nove anos de idade, calças curtas, ainda nos bancos de uma escola primária na cidade de Itaí, para onde a sua família se transferira em 1920, ele se revelou poeta. Já conhecedor das leis rígidas da arte poética (que prodígio!), o menino redigiu em versos decassílabos um soneto que é, ao contrário do que o vulgo pensa, a forma poética mais difícil de ser dominada. O tema escolhido pelo garoto foi o Largo São João, de Avaré; tema adulto e árido. 

Viveu Herculano Pires em Itaí dos seis aos dez anos de idade. No dia 7 de setembro de 1922 (relembraria ele cinquenta anos depois em uma crónica), “era então um menino de oito anos e formava numa tropa de escoteiros, orgulhoso do meu uniforme cáqui e do meu lenço vermelho tatalando ao pescoço. Meu comandante era o professor Victorino, gordinho e baixo, também vestido de uniforme. E quem proferiu o discurso mais bonito e mais retumbante, comemorando o primeiro centenário da Independência do Brasil, foi naturalmente o meu pai. Na festinha da escola, em dias feriados, éramos dois, eu e a menina Adélia, minha namorada (os primeiros das duas turmas: masculina e feminina), que ficávamos em pé ladeando o mastro, na hora do hasteamento”. 

Quatro anos depois o seu pai, buscando melhoria financeira, fixou residência na cidade de Cerqueira César. Mas por pouco tempo. Voltou a residir com a família em Avaré, onde matriculou o filho na Escola de Comércio, fundada e dirigida pelo Professor Jonas Alves de Almeida, de quem, ao longo da vida, guardaria Herculano Pires a mais grata recordação. Mas não pôde concluir o curso. 

A vida profissional de José Pires Correa não era fácil. E assim, buscando sempre melhores condições para o sustento da família, tornou a residir na cidade de Cerqueira César. Herculano tinha, então, doze anos de idade e... continuava a escrever poesias. 

/... 


Jorge RizziniJosé Herculano Pires o Apóstolo de Kardec o Homem, a Vida, a Obra, 1 – O menino poeta, 2º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: São Luís com a coroa de espinhos, desenho de Alexandre Cabanel)

sábado, 13 de maio de 2023

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~~~ Natureza da Revelação Espírita
(X) 

As duas primeiras revelações só poderiam ser o resultado de um ensino directo; deveriam impor-se à fé pela autoridade da palavra do mestre, não estando os homens suficientemente evoluídos para participarem na sua elaboração. 

Notemos, no entanto, entre elas uma variante muito sensível que diz respeito à evolução dos costumes e das ideias, apesar de terem sido feitas no mesmo povo e no mesmo meio, mas com cerca de dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta, despótica; não admite discussão e impõe-se a todo o povo pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente aceite e só se impõe pela persuasão; foi controversa mesmo em vida do seu fundador, que não desdenhou discutir com os seus adversários. 

A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e de maturidade intelectual, em que a inteligência desenvolvida não se pode resumir a um papel passivo, em que o homem não aceita nada às cegas e quer ver para onde é conduzido, saber o porquê e o como de cada coisa, devia ser simultaneamente produto de um ensinamento e fruto do trabalho, da pesquisa e da livre observação. Os Espíritos só ensinam o estritamente necessário para se entrar no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o que o homem pode encontrar por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, de controlar e submeter o todo ao cadinho da razão, deixando-o até por vezes adquirir experiência à sua custa. Fornecem-lhe o princípio, os materiais: compete-lhe a ele retirar daí benefícios e pô-los em acção (n.º 15). 

Tendo os elementos da revelação espírita sido dados em simultâneo, numa quantidade de pontos, a homens de todas as condições sociais e com diversos graus de instrução, é bem evidente que as observações não podiam ser feitas em todo o lado com os mesmos resultados; que as consequências a retirar daí, a dedução das leis que regem esta ordem de fenómenos, numa palavra, as conclusões a consolidar as ideias, só podiam sair do conjunto e da correlação dos factos. Ora, cada centro isolado, circunscrito a um círculo restrito, não vendo frequentemente mais do que uma só ordem de factos por vezes aparentemente contraditórios, não tendo geralmente a ver com uma mesma ordem particular de Espíritos e, além disso, entravados pelas experiências locais e pelo sectarismo, encontravam-se na impossibilidade material de abarcar o conjunto e, por isso mesmo, impotente para ligar as observações isoladas a um princípio comum. Apreciando cada um os factos sob o ponto de vista das suas convicções anteriores ou da opinião particular dos Espíritos que se manifestam, em breve teria havido tantas teorias e teses como centros, das quais nenhuma teria podido ser completada por falta de elementos de comparação e de controlo. Numa palavra, cada um deles se teria imobilizado na sua revelação parcial julgando possuir toda a verdade, por não saberem que em cem outros sítios se obtinha mais ou melhor. 

Por outro lado, é de notar que em sítio nenhum o ensino espírita foi dado de forma completa; este atinge um tão grande número de observações, em temas tão diversos que exigem quer conhecimentos quer aptidões mediúnicas especiais, que teria sido impossível reunir num mesmo ponto todas as condições necessárias. Devendo o ensino ser colectivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho disseminando os temas de estudo e de observação, como, em certas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objecto é repartida por diversos operários. 

A revelação foi-se assim fazendo parcialmente, em diversos lugares e por uma quantidade de intermediários e, é desta maneira que ainda prossegue neste momento, pois nem tudo foi ainda revelado. Cada centro encontra, nos outros centros, o complemento do que obtém e é o conjunto, a coordenação de todos os ensinamentos parciais que constituem a doutrina espírita

Era então necessário agrupar os factos esparsos para verificar a sua correlação, reunir documentos diversos, as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os temas, para os comparar, os analisar, estudar-lhes as analogias e as diferenças. Sendo as comunicações feitas por Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era necessário apreciar o grau de confiança que a razão permitia conceder-lhes, distinguir as ideias sistemáticas individuais e isoladas das que tinham a sanção do ensino geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas; eliminar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica sã, utilizar os erros de forma igualitária, os ensinamentos fornecidos pelos Espíritos, mesmo os de mais baixo nível, para conhecimento do mundo invisível, para formar com isso um todo homogéneo. Era preciso, numa palavra, um centro de elaboração independente de qualquer ideia preconcebida, de qualquer preconceito de seita, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente, fosse ela ou não contrária às suas opiniões pessoais. Este centro formou-se por si, por força das coisas e sem intuito premeditado (i)

Deste estado de coisas resultou uma dupla corrente de ideias: umas, indo das extremidades para o centro; outras, regressando do centro para a circunferência. Foi assim que a doutrina caminhou prontamente para a unidade, apesar da diversidade de fontes de onde emanou; as teses diferentes foram caindo a pouco e pouco, devido ao seu isolamento, perante o ascendente da opinião da maioria por não encontrarem aí ecos simpatizantes. De imediato se estabeleceu uma comunhão de ideias entre os diferentes centros parciais; falando a mesma língua espiritual, entendem-se e simpatizam de uma ponta à outra do mundo. 

Os Espíritos sentiram-se fortes, lutaram com mais coragem, caminharam com passo mais seguro, quando deixaram de se sentir isolados, quando sentiram um ponto de apoio, um elo que os ligava à grande família; os fenómenos de que eram testemunhas nunca mais lhes pareceram estranhos, anormais, contraditórios, quando conseguiram ligá-los a leis gerais de harmonia, abarcar com um olhar o edifício e ver em todo este conjunto um objectivo grande e humanitário (ii)

Mas como saber se um princípio está a ser ensinado em todo o lado ou se não passa do resultado de uma opinião individual? Não estando os grupos isolados em condições de saber o que se diz noutros sítios, era necessário que um centro reunisse todas as instruções para fazer uma espécie de despojamento das vozes e levar ao conhecimento de todos a opinião da maioria (iii).

/... 
(i) O Livro dos Espíritos, a primeira obra que fez entrar o Espiritismo na via filosófica, pela dedução das consequências morais dos factos, que abordou todas as partes da doutrina, tocando nas questões mais importantes que levanta, foi, desde a sua aparição, o ponto de encontro na direcção do qual, espontaneamente, convergiam os trabalhos individuais. É notório que a publicação deste livro data da era do Espiritismo filosófico, que permanecera até então no domínio das experiências de curiosidade. Se este livro conquistou as simpatias da maioria, foi por ser a expressão dos sentimentos dessa mesma maioria e porque correspondia às suas aspirações; foi também porque cada um podia encontrar ali a confirmação e uma explicação racional para o que obtinha em particular. Se tivesse estado em desacordo com os ensinamentos gerais dos Espíritos, não teria tido nenhum crédito e teria rapidamente caído no esquecimento. Ora, a quem se uniram? Não foi ao homem, que não é nada por si mesmo, cavilha obreira que morre e desaparece, mas sim à ideia, que não morre quando emana de uma fonte superior ao homem

Esta concentração espontânea das forças dispersas deu lugar a uma correspondência imensa, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde se reflectem simultaneamente os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações e as fraquezas; arquivos preciosos para a posteridade, onde será possível julgar os homens e as coisas com base em peças autênticas. Na presença destes testemunhos irrecusáveis, que acontecerá depois a todas as falsas alegações, às difamações da inveja e do ciúme? (N. do A.) 

(ii) Um testemunho significativo, tão notável como comovente, desta comunhão de ideias que se estabelece entre os Espíritos pela conformidade das convicções, são os pedidos de orações que nos chegam das regiões mais distantes, desde o Peru até aos extremos da Ásia, da parte de pessoas de religiões e de nacionalidades diversas que nunca vimos. Não será este o prelúdio de uma grande unificação em preparação? A prova das raízes sérias que o Espiritismo cria em todo o lado? 

É notável que, de todos os grupos que se formaram com a intenção premeditada de provocar uma cisão proclamando princípios divergentes, assim como os que, por razões de amor-próprio ou outras, não tendo o ar de estarem sujeitos à lei comum, se julgaram suficientemente fortes para caminharem sozinhos, suficientemente iluminados para não precisarem de conselhos, nenhum conseguiu constituir uma ideia preponderante e vital; todos se extinguiram ou vegetaram na sombra. Como poderia ser de outro modo, já que, para se evidenciarem, em vez de se esforçarem por dar um maior número de satisfações, rejeitaram dos princípios da doutrina precisamente o que lhe confere o maior atractivo, o que nela existe de mais consolador, de mais encorajador e de mais racional? Se tivessem compreendido o poder dos elementos morais que constituíram a unidade, não se teriam embalado numa ilusão quimérica; mas, tomando o seu pequeno círculo pelo Universo, só viram nos aderentes uma súcia que poderia facilmente ser derrubada por uma contra-súcia. Era enganar-se estranhamente sobre as características essenciais da doutrina e esse erro só poderia trazer decepções; em vez de quebrar a unidade, quebraram o único elo que lhes poderia dar força e vida. (Ver Revista Espírita, Abril 1866, pp. 106 e 111: O Espiritismo Sem os Espíritos; O Espiritismo Independente). (N. do A.) 

(iii) É este o objectivo das nossas publicações, que podem ser consideradas o resultado desse despojamento. Todas as opiniões são aí discutidas, mas as questões só são formuladas em princípios depois de terem sofrido a consagração de todos os controlos, porque só eles lhes podem conferir a força de lei e permitir que se façam afirmações. É por isso que não preconizamos com ligeireza nenhuma teoria e é nisso que a doutrina, procedendo do ensino geral, não é de modo nenhum o produto de uma tese preconcebida; é também o que lhe dá a força e garante o futuro. (N. do A.) 


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 49 a 53 (X), 12º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida. 
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 4 de maio de 2023

as vidas sucessivas | os elementos ~


Experiências magnéticas – Regressão da memória e previsão  Caso nº 2, Joséphine 
(III) 

Continuo os passes. Joséphine tem agora cerca de setenta anos. Em seguida, pouco a pouco, mostra-me o espectáculo de sua morte, revirando-se sobre a cadeira. 

Continuação dos passes; ela toma a posição do feto no ventre de sua mãe e, depois de algum tempo, pode responder às minhas perguntas; tem dois anos e chama-se Lili. Um pouco mais tarde tem três anos, chama-se Alice, o seu pai Claude e a sua mãe Françoise, porém não sabe nem o seu sobrenome, nem o nome do lugar onde mora. É muito feliz e mora numa linda casinha. Ela não está inteiramente no seu corpo e vê espíritos à sua volta: alguns bons, outros maus; quando estes últimos agem sobre ela, chora e faz manhas. 

Continuação dos passes. Ela entra numa fase de letargia durante a qual se revira sobre a cadeira e aperta o pescoço com a mão. A sua respiração está rouca e difícil. Quando sai dessa fase e pode falar, conta que morreu de uma angina; tinha quatro anos. Desprendeu-se rapidamente do seu corpo, continuou a ver os seus pais e a sua casa, mas ainda não compreende bem onde se encontra. 

Aprofundando o sono, ela se desprende mais completamente sem fase de letargia, vaga no espaço, está feliz, já não vê a Terra, mas vê espíritos luminosos; estes não lhe falam e ela não reconhece entre eles nem parentes nem amigos. Retoma pouco a pouco a lembrança das suas existências passadas, mas não se dá conta da razão de sua sucessão e de sua diversidade. 

Desperta através de passes transversais, passando rapidamente por todas as fases já assinaladas. Enfim, ei-la novamente Joséphine, com a idade de vinte e cinco anos. Pergunto-lhe brincando se deseja que eu a rejuvenesça mais. Responde-me que sim e a levo aos quinze anos. A sua sensibilidade está ainda exteriorizada, como ocorre durante todo o tempo em que dorme magneticamente. Sente tudo o que sinto, mesmo quando mordo a minha língua, o que ela não pode ver. 

Eu estava bastante embaraçado, querendo reconduzi-la ao seu estado normal e, desejava terminar a sessão, que já durava mais de duas horas. Mostrei-lhe a minha ansiedade. Ela tomou-me então as mãos e disse-me que ia fazer o necessário. Com efeito, após alguns minutos, sem passes de nenhuma espécie, ela abria os olhos, tinha retomado a sensibilidade normal e perdeu, seguindo a regra, toda a lembrança do que se tinha passado

Sexta sessão 

Adormeço Joséphine segurando-lhe as mãos e pergunto-lhe o que é preciso fazer para que ela vá ao passado ou ao futuroResponde-me que é suficiente desprender o seu corpo fluídico e que, em seguida, ela irá para onde eu quiser. Entretanto os passes transversais tendem a conduzi-la ao futuro. 

Continuo a aprofundar o seu sono simplesmente segurando-lhe as mãos, projectando fluido por minha vontade e dizendo-lhe para ver o que ela se tornará. 

Passa pela fase do nascimento. Quando a interrogo, tem quarenta anos; conta-me que a sua mãe faleceu há quinze anos. 

Continuo a magnetização. Ela morre. A sua sensibilidade já não é então exteriorizada à sua volta como anteriormente. Encontro-a aturdida. Não sofre e encontra-se numa semi-obscuridade. Recorda-se vagamente das suas vidas precedentes; a recordação é avivada pela pressão exercida sobre o meio da fronte. Ela tem o sentimento de que a sedução da qual foi vítima é a punição do que fez na existência de Jean-Claude. Crê que se o Sr. de Rochas a tivesse advertido do que devia acontecer, nada teria mudado na sua existência. 

Reencarna como menina, chama-se Élise e, morre aos três anos, de uma angina. Nesse momento leva a mão ao pescoço e parece sofrer muito. Morre; a sensibilidade que tinha voltado em torno do seu corpo desaparece novamente. 

Morta, ela pensa na sua mãe e quer muito revê-la. Não sofre e encontra-se numa atmosfera bastante luminosa. 

Reencarna como menina, Marie, cujo pai, Edmond Baudin, é comerciante de sapatos em Saint-Germain-du-Mont-d’Or. A sua mãe chama-se Rosalie. Interrogo-a com dois, seis e doze anos; com esta idade pergunto-lhe em que ano nos encontramos, mas ela não sabe responder-me e encontra pretextos: não tem calendário, o seu pai também não, etc. Com dezasseis anos responde-me que estamos em 1970 e escreve o seu nome. (i) É uma sexta-feira, mas ela não sabe de que mês. Estamos na República. (ii) 

Trago-a de volta por sugestão, ainda segurando-lhe as mãos, mas esforçando-me para retirar o fluido. Ela passa pelas mesmas fases, na mesma ordem, mas em sentido inverso: erraticidade com insensibilidade periférica, morte com os sintomas da angina, erraticidade, nascimento com contorções apropriadas. 

Sétima sessão 

Nesta sessão propus-me descobrir o que adviria se, após a haver estimulado através de passes a caminhada para trás ou para adiante com Joséphine, eu deixasse a natureza dela agir sozinha

Adormeço-a através de passes longitudinais e, quando a interrogo, ela tem quinze anos. Pergunto-lhe se me vê; responde-me que não; no entanto, ouve a minha voz e pensa que é o diabo quem fala; porém não sente medo. Ela não conhece o Sr. de Rochas. 

Abandono-a então a si mesma. São 1:30. 

1:40 – Interrogo-a novamente. Ela permanece bastante tempo sem me responder. Quando me responde tem dez anos, não me vê, mas ouve-me. Encontra-se com jovens companheiros que não me ouvem e que lhe dizem que ela é louca. A sua sensibilidade é exteriorizada. 

2:10 – Ela tem cinco anos

2:25 – Ela não sabe a sua idade. Mama em sua mãe e mexe os lábios como que sugando. Chupa o meu dedo quando o apresento à sua boca. 

2:35 – Agita-se e parece sofrer. Ela é Jean-Claude morto. Desperto-a então através de passes transversais e abandono-a a si mesma quando atinge a idade de dois anos, na sua vida actual. 

2:50 – Ela continuou sozinha o movimento dado ao tempo. Tem agora quatro anos

Levou quinze minutos para envelhecer dois anos. Se continuasse da mesma forma ser-lhe-iam necessários para envelhecer quatorze anos (de quatro a dezoito anos) 1 hora e 45 minutos. Ela despertaria, portanto, naturalmente às 4:30

3:10 – Tem nove anos. Ouve-me e não me vê. Supõe que a minha voz é a do anjo da guarda. 

De 2:50 às 3:10 – Ela envelheceu cinco anos em vinte minutos. A rapidez do despertar acelera-se. 

3:25 – Ela tem doze anos

3:40 – Tem quatorze anos

Construindo a curva correspondente a esses dados, vê-se que ela chegará à sua idade actual (entre dezoito e dezanove anos) em torno de 4:00

4:08 – Despertar espontâneo. 

Oitava e última sessão 

Joséphine, não tendo podido obter a vaga que desejava nas Galerias Modernas, decidiu juntar-se de novo à sua mãe em Manziat. Adormeço-a uma última vez antes da sua partida, a fim de tentar pô-la em guarda contra a sedução que previu. 

Impulsiono-a em direcção ao futuro. Ela não me fala mais da sua vaga numa loja de Grenoble, porém o restante das suas previsões é exactamente conforme ao que me havia dito anteriormente. Passa pelas mesmas dores no momento do parto, a mesma vergonha, os mesmos desgostos quando dá à luz o seu filho sem que o pai tenha querido reconhecê-lo. 

No momento em que foi despertada, relembrei-lhe todos esses acontecimentos, todas essas emoções, através da pressão no meio da fronte. Fiz-lhe observar que ela não havia sido aceite como vendedora nas Galerias Modernas, como havia predito e, que, consequentemente, tudo o que ela anunciava, adormecida, podia ser apenas um sonho; entretanto, o que poderia tornar-se realidade seriam as consequências da sua falta se ela a cometesse. 

Sugeri-lhe recordar-se de todos os tormentos que tinha experimentado durante o seu sono quando fosse tentada a abandonar-se. 

No dia seguinte, tendo havido ocasião de retornar a este assunto, ela me diz sorrindo que um bem advertido vale por dois. 

Desde a sua partida para a província de Ain não mais obtive notícias suas. 

/… 
(i) Esse nome é escrito com a mesma letra que a sua normal. (A.R.) 
(ii) Nota de Hermínio C. Miranda – Resolvi testar a informação. Em 15 de maio de 1972, enderecei uma carta a M. Edmond Baudin, marchand de chaussures, Saint-Germain-du-Mont-d’Or, Puy-de-Dôme, França. Explicava ao hipotético destinatário – em francês que o amigo e confrade Newton Boechat revisou para mim – das razões que me levavam a escrever-lhe. Segundo pesquisas feitas em 1904, pelo seu compatriota coronel e engenheiro Albert de Rochas, ele, Baudin, e a sua esposa, Rosalie, deveriam ter uma filha, por nome Marie, já com cerca de dezoito anos de idade em 1972. Como estávamos interessados em confirmar ou negar a previsão, contávamos com a sua amável cooperação. O correio francês foi maravilhoso. Tentou todos os endereços possíveis. Vejo, pelos carimbos – a carta foi-me devolvida em 22 de junho de 1972 – que ela esteve a 20 de maio, em St. Germain-au-Mont-d’Or, no Rhône (nosso St. Germain era du-Mont-d’Or, e não au); no dia 23, em St. Germain-Lembron, no Puy de Dôme, e a 24, em St. Germain-l’Herm, também no Puy-de-Dôme. Em seguida, há uma nota Revoir 1er Adresse (tornar a ver o primeiro endereço). Depois disso, Retour a l’envoyeur (Devolução ao remetente). Não há, pois, um lugar por nome Saint-Germain-du-Mont-d’Or na França moderna. Depreende-se que não há, portanto, Edmond, Rosalie e Marie Baudin e, obviamente, Joséphine falhou na sua profecia a longo termo. Ou então o coronel enganou-se nas suas anotações, pois em 1904 não havia gravadores. Ou a família Baudin estaria vivendo alhures. 


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas, Capítulo II – Regressão da memória e previsão / Caso nº 2 – Joséphine, 1904 (3 de 3) 11º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites)