terça-feira, 16 de agosto de 2022

a pedra e o joio ~


Conceitos mecanicistas ~ 

Ao tentar a elaboração da sua teoria corpuscular do espírito, o confrade Hernani Guimarães de Andrade (como vimos no nosso artigo último) partiu de uma premissa falsa: a de que o Espiritismo deve sujeitar-se às ciências materiais. O trecho de Allan Kardec, citado na página 16 do seu livro, para justificar essa premissa, pertence ao parágrafo 55, capítulo primeiro, de A Génese. Nesse parágrafo, Kardec esclarece que o Espiritismo, como doutrina progressiva, “assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer espécie, que tenham chegado ao estado de verdades práticas, deixando o domínio da utopia”. 

Para explicar melhor o seu pensamento, Kardec, entretanto, acrescenta que: “Deixando de ser o que é (o Espiritismo), mentiria à sua origem e ao seu fim providencial”. Como se vê, Kardec adverte, com o bom senso que o caracterizava, que o Espiritismo não podia converter-se num sistema estático, devendo acompanhar o desenvolvimento natural do conhecimento. Acompanhá-lo, porém, no plano da realidade, das verdades práticas e, não das utopias, das conjecturas. E acentuava, ao fazer isso, que o Espiritismo não podia trair-se a si mesmo. Quer dizer, ao acompanhar o progresso geral, devia, entretanto, manter a sua integridade doutrinária. 

Não compreendendo essa posição de Kardec, o confrade Guimarães Andrade pretende fazer com o Espiritismo o que Auguste Comte fez com a Filosofia, sujeitá-lo às ciências. Para isso, entretanto, vê-se obrigado a um malabarismo intelectual que o coloca em situações contraditórias. Porque, segundo o próprio Kardec já advertia, a Ciência Espírita é de natureza diversa da Ciência da Matéria. Tem objecto diverso e exige métodos especiais. Não compreendendo esse facto, o Sr. Guimarães Andrade procura amoldar, na retorta da sua teoria corpuscular, os dois elementos diversos, o que não é possível. Disso resultam as incongruências que podemos notar no seu livro. 

A pretensão reformista do autor chega às raias do extremismo. Vejamos este trecho, das páginas 16 e 17 de A Teoria Corpuscular do Espírito, em que ele define a sua posição: “Por conseguinte, a Ciência Espírita tem campo aberto à pesquisa e ao desenvolvimento dos seus princípios básicos, os quais podem e devem evoluir paralelamente à Ciência Oficial. E, tal como esta, precisa progredir, até mesmo, se necessário, à custa de reforma dos seus postulados”. Isto quer dizer que o Espiritismo deve modificar os seus princípios básicos, para sujeitar-se aos novos enunciados das ciências materiais. 

Allan Kardec, em A Génese, no mesmo trecho que citamos acima, lembra que as ciências materiais são apenas “a exposição das leis da natureza, com relação a certa ordem de factos”. E esclarece que se trata dos factos materiais. Estes interessam ao Espiritismo, pois estão na ordem geral das leis de Deus, mas não são o objecto da doutrina. Submeter a ciência espiritual aos enunciados de leis materiais é um simples absurdo. Aliás, na “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”, que abre O Livro dos Espíritos, Kardec observa: “Quando a ciência sai da observação material dos factos e, trata de apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas: cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer e, o sustenta encarniçadamente”. 

O confrade Guimarães Andrade refere-se ao perigo de um dogmatismo espírita, mas oferece-nos um perigo maior, que é o do dogmatismo científico, de natureza materialista. Amarrar o Espiritismo a esses “sistemazinhos”, referidos por Kardec, é muito mais perigoso do que sustentar os postulados doutrinários que têm na sua base a “autoridade dos factos” e não das conjecturas explicativas. Aliás, nenhum progresso das ciências afectou até agora os postulados doutrinários. Pelo contrário, só os tem confirmado. Como pretender-se então modificar esses postulados? No tocante aos conceitos da Física Nuclear, o que parece evidente é que eles se aproximam dos conceitos espíritas, como vemos no caso de negação da matéria, de transformação do mundo material em mundo energético, de redução dos fenómenos físicos a simples aparência e assim por diante. 

As próprias contradições do Sr. Guimarães Andrade provam isso. Condenando, por exemplo, a terminologia mecanicista de Kardec, vê-se ele obrigado, logo mais, a usá-la. É o que se verifica no seu capítulo intitulado “Das Bases da Teoria”, em que os conceitos de “vibração” e de “fluido vital” são empregados e, este último com a agravante de juntar-se ao conceito hinduísta de “prana”. Também o conceito de “matéria inerte”, nada corpuscular, ali aparece. Vemos, assim, que a reforma pretendida pelo autor é mais difícil do que ele mesmo supunha. Não chega a efectuar-se nem sequer no plano da terminologia, quanto mais no plano mental dos conceitos, propriamente ditos, que permanece inalterado. 

Por outro lado, o Sr. Guimarães Andrade, para poder misturar as ciências físicas e os princípios espíritas na sua retorta, foi obrigado a voltar vinte e cinco séculos atrás, adoptando o esquema de Demócrito para a explicação atómica do espírito. Os seus corpúsculos modernos, denominados “bion”, “mentalton” e “intelecton”, não são mais do que adaptações dos chamados “átomos de fogo”, do atomismo grego, que explicavam inclusive a percepção extra-sensorial. Demócrito admitia átomos especiais para a percepção sensorial e átomos mais subtis para a percepção intelectual. E considerava o espírito como um “arranjo atómico”, exactamente como o faz o Sr. Guimarães Andrade. Esse arranjo, naturalmente, podia desarranjar-se com a morte e, o espírito voltaria ao “todo universal”. O Sr. Guimarães Andrade não escapa a esse fatalismo lógico da teoria atómica do espírito, caindo numa posição materialista, como veremos mais tarde. 

Ao expor a natureza do “bion”, que seria “a partícula correspondente à vida em si mesma, independente de prévia organização, o agente vivificador da matéria”, o autor choca-se frontalmente com o princípio estabelecido no capítulo quarto do O Livro dos Espíritos, onde o fluido vital: “sem a matéria, não é vida, da mesma maneira que a matéria não pode viver sem ele”. Ainda aqui, o erro decorre da posição materialista, que não admite o espírito como agente não-físico. Embora o autor, nesse terreno, às vezes admita o conceito doutrinário de espírito, no geral permanece com o conceito mecanicista do atomismo grego. É uma das suas contradições, que procuraremos esclarecer nos próximos trabalhos. 

/… 


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Conceitos mecanicistas, 12º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Oliver Lodge, por que creio na imortalidade da alma ~


Capítulo II 

As sete proposições 

Tomemos as proposições do fim do capítulo anterior e procedamos à sua apreciação. 

(1) 

Primeira proposiçãoO espírito pode agir independentemente dos órgãos corporais. Fiquei certo disso desde 1883 em razão dos casos de telepatia experimental que Sir William Barrett já assinalara num relatório dirigido à British Association em 1876. 

A telepatia experimental, como já se sabe, é a transmissão de uma ideia, imagem ou sensação de um espírito encarnado a outro na mesma condição, sem necessidade dos órgãos materiais. Ela requer a participação de duas pessoas: o agente transmissor e o receptor. O receptor, ou o que recebe a transmissão, é posto ao abrigo de todas as sensações, ao passo que o transmissor pensa em algo, fixa um objecto ou, de uma forma qualquer, procura fixar no seu espírito o que deseja transmitir mentalmente. Já se verificou que, em certas condições bem definidas, algumas pessoas possuíam faculdade receptora, de modo que, após breve intervalo de silêncio, estavam aptas a perceber a ideia e mesmo a fazer um desenho, sem auxílio da visão, da audição ou do tacto. 

Esse facto, cuidadosamente estabelecido por numerosos observadores, serviu para explicar grande número de casos, outrora incompreensíveis, que pareciam causados pela utilização espontânea da faculdade telepática, consciente ou não, sob a influência de forte emoção. Assim, aplicando-se essa concepção – a mais aproximada da vera causa – esperava-se eliminar a superstição e explicar, de forma racional, numerosas lendas contemporâneas, onde se dizia que tal ou qual pessoa recebera de outra pessoa afastada impressão de doença, de perigo ou de morte. 

Sabemos que tais factos ocorreram muitas vezes sob a forma de visão ou aparição de fantasma e supomos que, em semelhantes casos, a impressão mental era de tal forma poderosa que provocava no espírito do percipiente uma alucinação de carácter visual ou auditivo, mentalmente e não fisicamente. Palavras eram ouvidas e uma visão percebida por vias anormais, como uma espécie de reconstrução mental. Nos casos melhores e mais importantes, a impressão era a que chamamos “verídica”, isto é, que corresponde realmente a acontecimentos que se produziram algures, de sorte que se podia provar a sua autenticidade. 

Tal foi a conclusão de um livro, em dois volumes, cuidadosamente escrito e editado em 1886 sob o título de Phantasms of the Living (Fantasmas dos Vivos), cujos autores foram Myers e Gurney, com a colaboração de Podmore. Grande número de acontecimentos misteriosos, devidamente atestados, ocorrendo, constantemente, em todas as partes do mundo, se explicam, assim, de modo racional, sobre a fase do facto observado da comunicação psíquica, facto esse descoberto por meio da telepatia experimental. A aparição ou o fantasma, visto pelo percipiente sensitivo e que, até aqui, tinha naturalmente sido considerado como efeito de uma presença real e misteriosa, podia ser assim atribuído a uma impressão viva produzida, telepaticamente e sem o seu conhecimento, por uma pessoa afastada, em angústia, perigo e mesmo prestes a falecer. 

Numerosos casos análogos foram reunidos pelos seguidores daqueles e examinados a fundo por investigadores sérios e hábeis num livro intitulado Census of Hallucinations (Censo de Alucinações). Foi uma tarefa trabalhosa, executada antes e durante o ano de 1894, tratando abertamente dos fantasmas dos vivos, bem como dos mortos. Depois da eliminação de todos os casos duvidosos, apresentados os pontos fracos e as explicações segundo as hipóteses normais, a conclusão dos investigadores foi resumida, nos Proceedings of the Society for Psychical Research, vol. X, pág. 394, da seguinte maneira: 

“Existe, entre os casos de morte e as aparições de moribundos, uma relação que não é consequência só do acaso. Consideramo-la como um facto certo. A discussão de tudo que ela implica não pode ser feita só nesta obra e, provavelmente, não será mesmo esgotada na nossa época.” 

Esse relatório, longo e extremamente consciencioso, estava assinado pelo professor Henry Sidgwick e a Sra. e trazia também outras assinaturas. Não pretendo impor dogmaticamente a ideia de que a hipótese de telepatia do agente transmissor ao receptor seja realmente a explicação completa dessas experiências. Creio que existem outras explicações suplementares assim como outras causas. Em todos os casos, porém, a hipótese telepática, entre as duas pessoas em relação, é a mais plausível e a mais racional. 

Interessante recordar que o grande filósofo Kant se ocupou, em certa época, dos estudos psíquicos e examinou mesmo dois ou três casos notáveis, referentes a Swedenborg. O falecido professor William Wallace fez notar, no seu ensaio sobre Kant, que é possível considerar as aparições sob um ponto de vista subjectivo e termina com uma citação de Kant, que estava certamente a par da explicação telepática sugerida muito mais tarde por Myers e Gurney em sua obra Phantasms of the Living

Eles se apoiam particularmente no facto de que tais visões, qualquer que seja a sua origem, são autênticas, podendo acontecer mesmo que tenham mais importância do que a que lhes queria Kant conferir. 

Eis a citação de Kant, feita por William Wallace: 

“A possibilidade da comunicação entre um espírito puro e um espírito revestido do seu invólucro carnal depende do estabelecimento de uma ligação entre ideias abstractas e espirituais e imagens da mesma espécie, revelando concepções sensoriais que são análogas e simbólicas. Tais associações se encontram em pessoas que têm uma constituição especial. Em dados momentos esses videntes são assaltados por aparições que não são (como supõem) entidades espirituais, mas apenas ilusão da imaginação, que submetem as suas próprias imagens a influências reais e espirituais imperceptíveis à grosseira alma humana. Assim, a alma dos mortos e os espíritos puros, ainda que não possam nunca produzir certa impressão aos nossos sentidos exteriores ou entrar em contacto com a matéria, são, todavia, susceptíveis de actuar sobre a alma humana, que pertence, como eles, à grande comunidade espiritual. Destarte, as ideias que imprimem na alma se vestem, segundo a lei da fantasia, nas imagens ligadas e criam, fora do vidente, a aparição de objectos correspondentes.” 

Dos milagres, o maior é este – que tu és tu 
Com poder sobre os teus próprios actos e o mundo 
Deste mundo real dentro do mundo que vemos 
Do qual o nosso é apenas uma zona limítrofe. 

                                            (De um poema de Tennyson

/… 


Oliver LodgePor que creio na imortalidade da Alma, Capítulo II As sete proposições, proposição primeira (1), 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Luz e Cor (Teoria de Goethe) - A manhã após o Dilúvio - Moisés escreve o livro Génese, pintura de Joseph Mallord William Turner)