segunda-feira, 30 de maio de 2022

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~~~ Natureza da Revelação Espírita 
(IX) 

~~~ A Terceira Revelação

A primeira revelação estava personificada em Moisés, a segunda em Cristo e a terceira não o está em nenhum indivíduo. As duas primeiras são individuais, a terceira é colectiva; reside nisso uma característica essencial de grande importância. É que ninguém, por consequência, se pode afirmar seu profeta exclusivo. Foi feita simultaneamente em toda a Terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e de todas as condições, desde o mais baixo ao mais elevado da escala, consoante a profecia relatada pelo autor dos Actos dos Apóstolos: «E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos mancebos terão visões e os vossos velhos sonharão sonhos; / E também do meu Espírito derramarei sobre o meu servo e minhas servas, naqueles dias, e profetizarão.» (Actos dos Apóstolos, 2: 17, 18.) Não saiu de nenhum culto especial para servir um dia de ponto de encontro a todos(*) 

(*) O nosso papel pessoal no grande movimento das ideias que se prepara através do Espiritismo e que começa a acontecer, é o de observador atento que estuda os factos para daí retirar as consequências. Confrontámos todos os que nos foi possível reunir; comparámos e comentámos as instruções dadas pelos Espíritos em todos os pontos do globo; depois, coordenámos tudo metodicamente; numa palavra, estudámos e demos a saber ao público o fruto das nossas investigações sem atribuir ao nosso trabalho outro valor que o de uma obra filosófica deduzida da observação e da experiência, sem nunca nos termos dado ares de chefe de doutrina, nem ter querido impor as nossas ideias a ninguém. Ao publicá-las, usámos de um direito comum e os que as aceitaram fizeram-no livremente. Se estas ideias encontraram numerosas simpatias, é por terem tido a vantagem de corresponder às aspirações de um grande número, com o que não nos podemos envaidecer, pois a sua origem não nos pertence. O nosso maior mérito é o da perseverança e devoção à causa que abraçamos. Em tudo isto fizemos o que outros podiam ter feito; é por isso que nunca tivemos a pretensão de nos julgarmos profetas ou messias e ainda menos apresentarmo-nos por tal. (N. do A.) 

Sendo as duas primeiras revelações produto de um ensinamento pessoal, foram forçosamente localizadas. Isso quer dizer que tiveram lugar num só ponto, à volta do qual a ideia se foi expandindo de uns para os outros; mas foram precisos muitos séculos para que atingissem os extremos do mundo, mesmo sem o invadirem por completo. A terceira tem isso de particular; não sendo personificada num indivíduo, produziu-se simultaneamente em milhares de pontos diferentes e todos se tornaram centros ou focos de irradiaçãoAo multiplicarem-se estes centros, a sua radiação une-se a pouco e pouco, como os círculos formados por uma quantidade de pedras atiradas à água; de tal maneira que, em determinada altura, acabarão por cobrir a superfície total do globo. 

É esta uma das causas da rápida propagação da doutrina. Se tivesse surgido num só ponto, se tivesse sido obra exclusiva de um homem, teria formado uma seita à sua volta; mas meio século teria talvez decorrido antes de ter atingido os limites do país onde tivesse nascido, enquanto que assim, dez anos depois, tem rebentos implantados de um pólo ao outro. 

Esta circunstância, espantosa na história das doutrinas, confere a esta uma força excepcional e uma força de acção irresistível; com efeito, se a comprimirmos num ponto, num país, é materialmente impossível comprimi-la em todos os pontos, em todos os países. Por cada sítio onde seja reprimida, haverá mil ao lado onde florescerá. Ainda mais, se a extinguirmos num indivíduo, não podemos extingui-la nos Espíritos, que são dela a fonte. Ora, como os Espíritos estão em todo o lado e porque sempre existirão, se, por impossível, se conseguisse abafá-la em todo o globo, ela reapareceria algum tempo depois, porque assenta sobre um factofacto esse que está na natureza, e não podemos suprimir as leis da natureza. É disto que se devem então convencer os que sonharam com a aniquilação do Espiritismo. (Revista Espírita, Fevereiro de 1865, p. 38: Perpetuidade do Espiritismo.) 

No entanto, estes centros disseminados deveriam permanecer ainda algum tempo isolados uns dos outros, confinados como alguns estão a países longínquos. Era necessário entre eles um traço de união que os colocasse em comunhão de pensamento com os seus irmãos de doutrina, ensinando-lhes o que se fazia noutros lugares. Este traço de união, que terá faltado ao Espiritismo na antiguidade, encontra-se nas publicações que chegam a todo o lado, que condensam numa forma única, concisa e metódica, os ensinamentos dados em todos os sítios sob múltiplas formas e em diversas línguas. 

/… 


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 45 a 48 (IX), 11º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida. 
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 16 de maio de 2022

as vidas sucessivas | os elementos ~


Experiências magnéticas – Regressão da memória e previsão – Caso nº 2, Joséphine ~ 

(II de III) 

Tendo interrompido durante alguns meses as minhas experiências com Joséphine, fiz uma viagem a Paris e tentei ver que resultados daria o meu modus operandi com a senhora Lambert, um dos meus antigos sujets. Ver-se-á mais adiante uma exposição do seu caso, de como fui conduzido a orientá-la para o futuro ao invés do passado. 

Tão logo retornei a Voiron, tentei com Joséphine esse método de premonição sem nada dizer-lhe sobre as minhas experiências em Paris. Eis o resumo dos resultados obtidos. 


Primeira sessão ~

Adormeço Joséphine através de passes longitudinais de maneira a levá-la aos primeiros anos de sua juventude e, em seguida, desperto-a através de passes transversais. Quando ela retorna o seu estado normal, retoma a sensibilidade; continuo os passes transversais com o pretexto de libertá-la mais completamente. 

Depois de um minuto ou dois, ela me diz que a adormeço ao contrário de despertá-la. Fase de letargia bastante longa. Desperta numa fase de sonambulismo. Pergunto-lhe se continua em casa do Sr. C. Ela responde que não: deixou-o há três anos para voltar à sua terra natal em Manziat. Está em casa de seus pais e tem vinte e cinco anos. 

Novos passes transversais, nova fase de letargia durante a qual ela primeiramente permanece bastante calma, porém, após alguns instantes, mostra todos os sinais de um grande sofrimento. Torce-se sobre a cadeira, em seguida vira a cabeça e esconde o rosto com as mãos, chora e o seu pesar parece tal que a Sra. C., emocionada, se retira para outro aposento. 

Quando chega à fase seguinte de sonambulismo, parece ainda muito triste. Pergunto-lhe o que tem. Ela não quer responder e vira novamente a cabeça como se tivesse vergonha de alguma coisa. Suspeito a causa de seu tormento e pergunto-lhe se está casada agora. Ela me responde: 

– Não, ele não quer. No entanto, havia-me prometido. 

– Diga-me o seu nome; encarregar-me-ei de agir sobre ele, de fazê-lo raciocinar. 

– Você não conseguirá nada, já fiz tudo o que podia. 

Terminei descobrindo que ela continua na sua terra natal, que tem trinta e dois anos e que a sua infelicidade aconteceu há dois anos. Impossível conseguir o nome do sedutor. 

Empenho-a a se deixar levar sem se inquietar com nada. 

Na presença de sua dor, que nos emociona a todos, de tão vivamente expressa que é, reconduzo-a ao seu estado normal através de passes longitudinais, passando pelas mesmas fases de letargia e de sonambulismo, com as mesmas expressões de dor. 


Segunda sessão ~

O mesmo processo experimental: primeiramente regressão da memória através de passes longitudinais, depois a caminhada em direcção ao futuro através de passes transversais. Após o estado normal, a letargia calma. Desperta com a idade de vinte e cinco anos na sua terra natal. Segunda letargia com sinais de dor e de vergonha; segundo despertar com trinta e dois anos. Recordo-lhe as nossas antigas relações em Voiron e termino por persuadi-la a confiar-se a mim. Ela murmura confusa o nome de seu sedutor. É um jovem lavrador do local, Eugène F., com quem teve um filho. (i) 

A continuação dos passes transversais: terceira letargia; terceiro despertar. Ela tem então quarenta anos, continua em Manziat e está muito triste. O seu filho morreu há pouco tempo e Eugène casou-se com outra. 

Continuação dos passes transversais: quarta letargia; quarto despertar. Ela tem quarenta e cinco anos e ganha a vida costurando calças para um alfaiate. Está muito triste, já não tem notícias dos seus antigos patrões. Louise, a sua melhor amiga de Voiron, escreveu-lhe três cartas, depois a correspondência cessou. 

Continuo os passes transversais e, já cansado, interrogo-a após alguns minutos de letargia aparente, sem me aperceber de que ela já havia avançado diversas fases. Está agora bastante velha, vive com esforço graças à sua costura, porém acabou por esquecer um pouco as tristezas. Falo-lhe então da morte. Pergunto-lhe se não deseja saber o que lhe acontecerá quando deixar esta vida. Ela diz que sim. “Para isso é necessário que eu a faça envelhecer ainda mais.” Ela hesita um pouco, mas acaba por aceitar quando lhe assegurei que a traria de volta ao seu estado actual. 

Novos passes transversais. Depois de dois ou três minutos ela volta-se para o encosto de sua cadeira com uma expressão de franco sofrimento, escorregando em seguida até ao chão. É a agonia e a morte. Continuo vivamente os passes para transpor esse mau momento e interrogo-a. Ela está morta; não sofre, porém não vê espíritos. Pôde seguir o seu enterro e ouvir o que diziam dela: “Foi bom para a pobre mulher; ela não tinha já razão para viver.” As preces do padre não lhe adiantaram grande coisa, porém a sua presença em torno do caixão afastou os maus espíritos. As ideias espíritas que ela havia adquirido em casa do seu antigo patrão foram-lhe muito úteis porque permitiram-lhe aperceber-se do seu estado. 

Não achei prudente desta vez levar mais longe a experiência. Trouxe o sujet ao seu estado normal através de passes longitudinais que provocaram, por ordem inversa, os mesmos gestos característicos da agonia e da sedução, durante as fases de letargia correspondentes. 


Terceira sessão ~

Um dos meus amigos, cujo genro havia recentemente desaparecido em circunstâncias misteriosas, havia-me enviado uma roupa que tinha pertencido ao desaparecido, suplicando-me que me esforçasse por obter alguns detalhes sobre o trágico acontecimento através de um dos meus sujets

Adormeci Joséphine, após haver colocado a tal roupa entre as suas mãos. Alguns minutos depois, determinei-lhe que procurasse alguma pista da pessoa a quem o objecto havia pertencido. Ela respondeu-me que não sentia nada. Imaginando que ela não estivesse suficientemente desligada do seu corpo físico, aprofundei-lhe o sono através de passes longitudinais. Constatei então, não sem admiração, que durante a fase de letargia que se seguiu à minha ordem ela se entregou à mesma mímica e à qual se abandonava logo que eu a impelia ao futuro, durante as sessões precedentes, através de passes transversais. (ii) Quando ela chegou à fase sonambúlica onde podia responder-me, tinha trinta e cinco anos. Continuei os passes longitudinais e cheguei assim progressivamente até à morte, passando pelo espectáculo da sua agonia e, em seguida, ao seu despertar na vida do espaço. Ela me confirmou o que já havia dito a respeito do seu estado: não sofria, mas encontrava-se numa obscuridade quase completa, iluminada de tempos em tempos por luzes frouxas. Percebia espíritos mais ou menos luminosos que flutuavam à sua volta, porém não podia comunicar-se com nenhum deles. As ideias espíritas que havia adquirido na casa dos seus antigos patrões permitiram-lhe suportar mais pacientemente o seu estado actual, apesar de serem bastante vagas, porque já fazia muito tempo que já não ouvia falar desse assunto. 

Enfim, continuando a magnetização, sentiu a necessidade de reencarnar; e foi durante uma fase de letargia que foi feita a sua entrada no ventre de sua mãe, caracterizada pela posição de feto que ela tomou. 

Agora ei-la menina; morre muito jovem ainda e não vê para que servem todas as reencarnações sucessivas. 

Retorna muito rapidamente ao estado normal sob a influência de passes transversais, auxiliados pela sugestão. 


Quarta sessão ~

Joséphine acaba de deixar a família C., onde achava o serviço penoso demais. Implorou-me que a tomasse provisoriamente ao meu serviço enquanto procurava outro emprego. 

Foi o que fiz. 

Essa quarta sessão teve sobretudo por finalidade provocar em Joséphine a revelação de factos bastante próximos para que eu pudesse controlá-los. 

Adormeço-a através de passes longitudinais conforme o habitual e levo-a ao estado que precede o seu nascimento na vida actual e, onde ela ainda é Jean-Claude. Confirma-me então tudo o que disse nas outras sessões. Pela pressão do meu dedo no meio de sua fronte, procuro saber exactamente em que época foi soldado em Besançon. Ele não me pode dar a data, mas, a meu pedido, diz-me que a grande festa dos soldados não era a 14 de julho, porém em 1º de maio. Era efectivamente no 1º de maio que era festejado o Dia de São Filipe, de 1830 a 1848 e, parece-me muito difícil explicar naturalmente esta recordação. 

Em seguida, trago Joséphine rapidamente à sua idade actual através de passes transversais e continuo esses passes envelhecedores que, como nas sessões precedentes, determinam primeiramente uma longa fase de letargia ao longo da qual se produz a mímica das dores do parto. (A fase de sonambulismo, onde nas sessões precedentes ela tinha vinte e cinco anos, passa-me despercebida, provavelmente porque eu havia dado um passo mais rápido que a sua progressão no tempo.) 

Ela tem agora trinta e cinco anos, o seu pai morreu, a sua mãe e o seu filho vivem ainda. Pergunto-lhe o que fez desde que deixou o casal C., em casa de quem ela havia trabalhado durante longo tempo em Voiron. Responde-me que primeiro trabalhou como doméstica na casa do coronel de Rochas, enquanto esperava uma vaga nas Galerias Modernas de Grenoble, a qual obteve depois de um mês e meio; mas que permaneceu apenas três meses como vendedora nessa grande loja, retornando então à casa dos seus pais aproximadamente no Dia de Todos os Santos (1904). Depois recebeu uma carta do coronel que a convidava a ir a Voiron para experiências. Dispunha-se a partir, quando a sua mãe faleceu. Desde então já não obteve notícias dele. (iii) 


Quinta sessão ~

Começo por pressionar a fronte de Joséphine e ela desperta. Ela recorda-se pouco a pouco da sua vida passada, que eu apenas faço aflorar rapidamente. Diz-me que, quando era pequena, antes de ser Philomène, se chamava Alice e que, antes de ser o homem que matou, tinha tido diversas encarnações, entre as quais uma de macaco, mas que não se recorda delas. Tudo de que se lembra é que sofria nos intervalos. Confirma-nos que há animais bons e maus. 

Digo-lhe em seguida que a adormecerei através de passes longitudinais e que desejo que caminhe para o futuro. Conta-me então que está empregada como vendedora nas Galerias Modernas, recebendo um franco e meio por dia, alimentada e alojada num quartinho que dá para uma rua de fundos (facto que, como eu já disse, não ocorreu). Faço-a passar rapidamente pela fase dolorosa que corresponde à sedução e na qual ela ainda se torce de dor. Quando pode responder-me, tem trinta e cinco anos. (iv) Falo-lhe de sua vida em Voiron; ela já não obteve mais notícias dos seus antigos patrões, excepto através da sua amiga Louise, (v) que lhe escreveu apenas três vezes. Recebeu, há sete ou oito anos, (vi) uma carta do coronel de Rochas convidando-a a ir à sua casa em Agnèles para experiências. Estava pronta para partir quando a sua mãe adoeceu, precisando então ficar perto dela. A mãe curou-se e morreu somente há dois anos (isto é, em 1919). 

/…  
(i) Tirei informações no local. Eugène F. lá vive actualmente, pertence a uma família de lavradores abastados e nasceu em 1885. Eugène e Joséphine moravam em casas vizinhas, têm a mesma idade e fizeram juntos a primeira comunhão. (A.R.
(ii) Disso parece resultar que o método de magnetização, ou seja, a direcção dos passes, não tem importância de maior. O essencial parece ser o relaxamento dos laços que unem ao corpo físico o corpo astral para permitir a este último retomar a direcção já por ele seguida ou a que se lhe sugere e, sem dúvida, para também lhe permitir retomar mais facilmente as formas diversas das épocas evocadas. (A.R.) 
(iii) Ela realmente veio a minha casa como camareira, onde permaneceu um mês; porém não pôde obter a vaga que desejava nas Galerias Modernas, partindo directamente de minha casa para a sua cidade. Ainda não lhe escrevi, pedindo-lhe que regressasse a Voiron para novas experiências. (A.R.) 
(iv) Ela tinha dezoito anos em 1904; estará com trinta e cinco anos em 1921. (A.R.) 
(v) Encontrar-se-á explicação mais adiante sobre o caso de Louise (caso nº 5). (A.R.) 
(vi) Consequentemente, 1921 menos oito, isto é, em 1913, ela teria então cerca de 27 / 28 anos. (A.R.) 


Albertde RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas, Capítulo II – Regressão da memória e previsão / Caso nº 2 – Joséphine, 1904 (II de III) 10º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites

segunda-feira, 2 de maio de 2022

o grande desconhecido ~


O GRANDE DESCONHECIDO | 

Todos falam de Espiritismo, bem ou mal. Mas poucos o conhecem. Geralmente o consideram como uma seita religiosa comum, carregada de superstições. Muitos o vêem como uma tentativa de sistematização de crendices populares, onde todos os absurdos podem ser encontrados. Há os que o aceitam como nova Goécia, magia negra da Antiguidade disfarçada de Cristianismo milagreiro. Grandes cientistas se deixaram envolver nos seus problemas e se desmoralizaram. Outros entendem que podem encontrar nele a solução para todos os seus problemas, conseguir filtros de amor e os 13 pontos da Lotaria Desportiva. E na verdade os seus próprios adeptos não o conhecem. Quem se diz espírita arrisca-se a ser procurado para fazer macumba, despachos contra inimigos ou curas milagrosas de doenças incuráveis. Grandes instituições espíritas, geralmente fundadas por pessoas sérias, tornam-se às vezes verdadeiras fontes de confusão a respeito do sentido e da natureza da doutrina. O Espiritismo, nascido ontem, nos meados do século passado, é hoje o Grande Desconhecido dos que o aprovam e o louvam e dos que o atacam e criticam. 

Durante muito tempo ele foi encarado com pavor pelos religiosos, que viam nele uma criação diabólica para a perdição das almas. Falar em fenómenos espíritas era provocar votos de esconjuro. Ler um livro espírita era pecado mortal, comprar passagem directa para o Caldeirão de Belzebu. Médicos ilustres chegaram a classificar o Espiritismo como uma fábrica de loucos. Quando começaram a surgir os hospitais espíritas para doenças mentais, alegaram que os espíritas procuravam curar loucos que eles mesmos faziam para aliviar as suas consciências pesadas. E quando viram que o Espiritismo realmente curava loucos incuráveis, diziam que os demónios se entendiam entre si para lograr o povo. 

Hoje a situação mudou. Existem sociedades de médicos espíritas e as pesquisas de fenómenos mediúnicos invadiu as maiores Universidades do Mundo. Não se pode negar que a coisa é séria, mas definir o Espiritismo não é fácil. Porque ninguém o conhece, ninguém acredita que se precisa estudá-lo, pensam quase todos que se aprende a doutrina ouvindo espíritos. Os intelectuais espíritas são confundidos com médiuns. Quem escreve sobre Espiritismo não escreve, faz psicografia. Acham que para estudar a doutrina é preciso desenvolver a mediunidade e receber maravilhosas lições de Espíritos Superiores. 

Não obstante, o Espiritismo é uma doutrina moderna, perfeitamente estruturada por um grande pensador, escritor e pedagogo francês, homem de letras e ciências, famoso por sua cultura e os seus trabalhos científicos e que assinou as suas obras espíritas com o pseudónimo de Allan Kardec. Saber isto já é saber alguma coisa a respeito, mas está muito longe de ser tudo a Doutrina complexa, que abrange todo o campo do Conhecimento, apresenta-se enquadrada na sequência epistemológica de: 

a) Ciência – como pesquisa dos chamados fenómenos paranormais, dotada de métodos próprios, específicos e adequados ao objecto que investiga, tendo dado origem a todas as ciências do paranormal, até à Parapsicologia actual e ao seu ramo romeno, que se disfarça sob o nome pouco conhecido de Psicotrónica, para não assustar os materialistas. 

b) Filosofia – como interpretação da natureza dos fenómenos e reformulação da concepção do mundo e de toda a realidade segundo as novas descobertas científicas; aceite Oficialmente no plano filosófico, consta do Dicionário Filosófico do Instituto de França; no Brasil, reconhecida pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, constando do volume Panorama da Filosofia em São Pauto, edição conjunta do Instituto e da Universidade de São Paulo, coordenação do Prof. Luiz Washington Vitta. 

c) Religião – como consequência das conclusões filosóficas, baseadas nas provas da sobrevivência humana após a morte e nas ligações históricas e genésicas do Cristianismo com o Espiritismo; considerado como a Religião em Espírito e Verdade, anunciada por Jesus, segundo os Evangelhos; religião espiritual, sem aparatos formais, dogmas de fé ou instituição igrejeira, sem sacramentos. 

d) Essa sequência – obedece as leis da Gnosiologia, pelas quais o conhecimento começa nas experiências do homem com o mundo e se desenvolve nas ilações do pensamento, na cogitação filosófica e determina o comportamento humano dentro do quadro da realidade conhecida; como no Espiritismo essa realidade supera os limites da vida física, a moral se projecta no plano das relações do homem com a Divindade, adquirindo sentido religioso. 

Colocado assim o problema, a complexidade do Espiritismo se torna facilmente compreensível. Tudo no Universo se processa mediante a acção e o controlo de leis naturais, que correspondem à imanência de Deus no Mundo através de suas leis. Toda a realidade verificável é natural, de maneira que os espíritos e as suas manifestações não são sobrenaturais, mas factos naturais explicáveis, resultantes de leis que a pesquisa científica esclarece. O Sobrenatural só se refere a Deus, cuja natureza não é acessível ao homem neste estágio de sua evolução, mas será possivelmente, quando o homem atingir os graus superiores de sua evolução. Todas as possibilidades estão abertas e franqueadas ao homem em todo o Universo, desde que ele avance no desenvolvimento de suas potencialidades espirituais, segundo as leis da transcendência. 

Este volume procura dar uma visão geral do Espiritismo em forma de exposição livre, sem um esquematismo didáctico, mostrando as conotações da Doutrina com as posições culturais da actualidade. Não se trata da suposta actualização tentada por autores que desconhecem as dimensões do Espiritismo e não podem relacioná-la com os avanços científicos, tecnológicos, filosóficos e religiosos da actualidade. A actualização, no caso, é do método expositivo, que revela a plena actualidade da Doutrina e desenvolve alguns temas kardecianos em forma de exposição mais minuciosa, para melhor compreensão dos leitores. A actualização da linguagem e da terminologia doutrinárias nas obras de Kardec é uma pretensão descabida. Cada doutrina, científica ou filosófica, tem a sua própria terminologia, que só se transforma diante de novos factos ocorridos na pesquisa. Por outro lado, essas actualizações, como sabem os especialistas, geralmente se transformam em atentados à doutrina, pela falta de conhecimento dos que pretendem fazê-las. Uma doutrina actualiza-se na proporção em que evolui, com acréscimos reais de conhecimentos no desenvolvimento de seus princípios. Não existe, no mundo actual nenhum centro de pesquisas e estudos espíritas que tenha avançado legalmente além de Kardec, através da descoberta de novas leis da realidade espírita. O Espiritismo avança, pelos seus princípios e os seus conceitos, muito além da realidade actual. E mesmo que não avançasse, ninguém teria o direito de interferir na obra de Kardec, como na obra de qualquer outro cientista. É livre o direito de contestar através de outras obras, mas não há direito nenhum que permita a um pintamonos desfigurar as obras clássicas da cultura mundial. 

Os capítulos deste livro correspondem a exposições doutrinárias feitas pelo autor em várias ocasiões, em palestras feitas com debates, até mesmo em numerosas Faculdades de Teologia católicas e protestantes, bem como em debates de televisão. Por isso, são capítulos escritos em linguagem livre, dando ao leitor a possibilidade de discutir os problemas consigo mesmo, tentando refutar as teses expostas. Esperamos que os meios espíritas, particularmente aproveitem estes capítulos para uma incursão mais corajosa nas possibilidades de conhecimento que o Espiritismo nos oferece em todos os campos das actividades humanas e em face dos múltiplos problemas que nos desafiam nesta hora de transição da cultura humana. 

São anos de estudos, experiências, investigações e intuições espirituais que se acumulam nestas páginas, ao correr das teclas, mas sob rigoroso controlo da razão. Que no Espiritismo tudo deve ser rigorosamente submetido a apreciações e críticas racionais. 

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, O Grande Desconhecido 1º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: O monge estuda as Escrituras | 1877, lápis e giz-estudo ao painel “A Educação de São Luís” Panteão, Paris (a mesma imagem, do monge, aos pés de Branca de Castela e de São Luís, nesse painel, óleo sobre tela) ambos de Alexandre Cabanel