segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

pensamento e vontade ~

Alucinações espontâneas e voluntárias |

Nos incidentes da vida ordinária e diuturna, todas as lembranças são constituídas por imagens atenuadas, mais ou menos vagas, cuja fraca vivacidade não permite distinguir-lhes a natureza.

Não obstante, a regra comporta numerosas excepções, e todos os homens geniais, cuja força imaginativa logrou criar obras-primas, foram dotados de intensa visão mental, que lhes permitia perceber interiormente as personagens e ambientes, engendrados pelo febricitante trabalho mental em gestação.

Sabido é que os grandes romancistas, entre eles Dickens e Balzac, ficavam às vezes obsidiados pela visão das personagens por eles idealizadas, a ponto de as verem, diante de si, como se fossem personalidades reais.

Outro tanto podemos dizer dos pintores, cujo poder de visualização pode chegar a substituir os modelos vivos.

Brierre de Boismont, no seu livro As alucinações, (págs. 26 e 451), relata o seguinte facto:

“Um pintor que herdara grande parte da clientela do célebre artista José Reynolds e considerado, aliás, retratista superior a este, declarou-me ter tantas encomendas, que chegou a pintar trezentos retratos, entre grandes e pequenos, no curso de um ano.

Tal rendimento de trabalho afigura-se-nos impossível; mas, o segredo da rapidez e do extraordinário êxito do artista consistia na circunstância de lhe não ser preciso mais que uma “pose do modelo original”.

Wigam conta: Vi-o pintar, eu mesmo, sob os meus olhos, em menos de oito horas, o retrato de uma pessoa das minhas relações, e posso assegurar que o trabalho era cuidadosamente feito, além de fiel à semelhança.

Pedi-lhe esclarecimento do seu método. Respondeu-me:

“Quando me apresentam um novo modelo, fito-o com muita atenção durante meia hora, ao mesmo tempo em que, de espaço a espaço, procuro fixar um detalhe da fisionomia, sobre a tela.

“Meia hora me basta para dispensar outras “poses”. Ponho, então, de lado a tela e ocupo-me de outro modelo.

“Quando volto ao primeiro retrato, penso na pessoa e sento-me no tamborete, de onde passo a percebê-la tão nitidamente como se presente de facto ela estivesse.

“Chego mesmo a distinguir-lhe a forma e a cor, mais nítidas e mais vivas, do que o faria se a pessoa ali estivesse realmente.

“Nessa altura, de tempos a tempos fito a outra, a figura imaginária, fixo-a facilmente sobre a tela e, quando necessário, interrompo o trabalho para observar com cuidado o modelo, na “pose” que tomara.

“E cada vez que volto o olhar para o tamborete, lá vejo, infalivelmente, a minha personagem.”

Registe-se, contudo, que essa excepcional faculdade para objectivar imagens acabou por ser fatal ao artista, pois que enlouqueceu no dia em que lhe não foi possível distinguir as alucinações voluntárias e representativas de algumas pessoas, das pessoas realmente vivas.”

Também nos casos dessa natureza e sempre graças às novas luzes projectadas pelas investigações metapsíquicas sobre a génese das alucinações, em geral, tudo concorre para demonstrar que nas formas alucinatórias, a que estão mais ou menos sujeitos romancistas e artistas, existe algo de objectivo e substancial.

É uma indução que, aliás, já ressalta mais nítida da análise das sugestões hipnóticas, tal como me proponho demonstrar.

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Ernesto BozzanoPensamento e Vontade  Alucinações espontâneas e voluntárias, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Female Saint_1941, pintura de Edgar Maxence)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~

milagres | e a ciência moderna ~

Um milagre é geralmente definido como uma violação ou suspensão de uma lei da natureza, e como as leis da natureza são a mais completa expressão das experiências acumuladas pela espécie humana, Hume era de opinião que nenhum testemunho humano poderia provar um milagre. Strauss baseia todo o argumento do seu elaborado trabalho sobre a mesma base, a de que nenhum testemunho que venha até nós por meio do conhecimento de séculos pode provar que estas leis foram alguma vez subvertidas, que a experiência unânime dos homens mostra agora ser invariável. A ciência moderna colocou este argumento numa base mais ampla, demonstrando a interdependência de todas estas leis e considerando inconcebível que a força e o movimento, ou nada mais do que a matéria, possam ser absolutamente criados ou destruídos o professor Tyndall no seu artigo sobre "A constituição do universo", publicado no Forthnighly Review, diz:

Um milagre é estritamente definido como uma invasão da lei da conservação da energia(i) Criar ou aniquilar a matéria pressupõe, de todas as formas, um milagre: a criação ou aniquilação da energia seria igualmente um milagre para aqueles que compreendem o princípio da conservação.

(i) - Esta suposta definição de um milagre é uma pura suposição. Milagres não implicam qualquer “invasão da lei de conservação de energia”, mas meramente na existência de seres inteligentes invisíveis a nós, capazes ainda de actuar sobre a matéria, como foi explicado anteriormente.

O senhor Lecky, no seu grande trabalho sobre o "Racionalismo", mostra-nos que durante os últimos dois ou três séculos houve uma disposição continuadamente maior para se adoptarem pontos de vista seculares mais que teológicos, em história, política e ciência. As grandes descobertas da física na última metade do século pressionaram esse movimento com ainda maior veemência e levaram a uma firme convicção, nas mentes da maioria dos homens instruídos, a de que o universo é governado por leis amplas e imutáveis, às quais se subordinam todos os fenómenos que possam ser classificados e contra as quais nenhum facto natural se pode opor. Se, contudo, definirmos milagre como uma contravenção a qualquer uma destas leis, deve ser admitido que a ciência moderna não tem lugar para ele; e nós não podemos ser surpreendidos com as muitas e variadas tentativas de escritores de opinião amplamente oposta, darem a razão de, ou explicarem todos os factos que, registados na história ou religião, só poderiam ter acontecido supondo um agente miraculoso ou sobrenatural. Esta tarefa não tem sido fácil, de forma alguma. A quantidade de testemunho directo era a favor dos milagres em todos os tempos e é muito grande. A crença em milagres foi, até à nossa época, quase universal, e de modo geral é seguro e possível certificar-se que, as pessoas que estão mais firmemente convencidas da impossibilidade dos eventos considerados miraculosos, poucas pesquisaram ampla e honestamente a natureza e quantidade das evidências de que aqueles eventos realmente aconteceram, se é que aconteceram. Sobre este tema, contudo, eu não desejo tratar agora. Parece-me que toda a base da questão foi de alguma forma mal colocada e mal compreendida, e que, em cada caso autêntico de um suposto milagre, pode ser encontrada uma solução que removerá muitas das nossas dificuldades.

Uma falácia comum parece-me presente em todos os argumentos contra os factos considerados miraculosos, quando se assegura que eles violam, ou invadem, ou subvertem as leis da natureza. Isto é realmente presumir mais do que pode ser decidido, já que, se o facto em discussão realmente aconteceu, ele só poderia estar de acordo com as leis da natureza, já que, por definição, ‘lei da natureza’ é aquela que regula todos os fenómenos. A própria palavra ‘sobrenatural’, quando aplicada a um facto, é um absurdo; e a palavra ‘milagre’, se assim mantida, exige uma definição mais precisa do que a que tem sido dada dele. Recusar-se a admitir o que em outras situações seria evidência conclusiva de um facto, porque não pode ser explicado por aquelas leis da natureza com as quais estamos familiarizados, é na verdade sustentar que temos um completo conhecimento destas leis e que podemos determinar de antemão o que é ou não possível. Toda a história do progresso do conhecimento humano nos mostra que o controverso prodígio de uma era se transforma em fenómeno natural aceite na seguinte e que muitos milagres aparentes eram decorrentes de leis da natureza subsequentes às descobertas.

Muitos fenómenos da mais simples feição pareceriam sobrenaturais aos homens que possuem conhecimento limitado. O gelo e a neve poderiam facilmente parecer como tais aos habitantes dos trópicos. A subida de um balão pareceria sobrenatural a pessoas que nada conhecessem sobre as causas do seu movimento de ascensão; e nós poderíamos bem aceitar que, não há gás inflamável senão o ar atmosférico como sempre foi entendido, e se nas mentes de todos (filósofos e químicos incluídos) o ar fosse indissoluvelmente ligado à ideia de uma forma mais leve da matéria terrestre, o testemunho daqueles que viram um balão ascender seria desacreditado, sob as bases de que a lei da natureza seria suspensa se qualquer coisa pudesse ascender livremente para a atmosfera, em directa contravenção à lei da gravidade.

Há um século, um telegrama a três milhas de distância ou uma foto tirada numa fracção de segundo não seriam considerados possíveis, e não se acreditaria em qualquer testemunho, excepto pelo ignorante e supersticioso que acreditasse em milagres. Há cinco séculos, os efeitos produzidos pelo moderno telescópio e pelo microscópio seriam considerados miraculosos e, se fossem apenas relatados por viajantes como existentes na China ou no Japão, seriam certamente desacreditados. O poder de mergulhar uma mão em metais derretidos sem amachucar-se é um caso notável do efeito de leis naturais que parece contrapor-se a uma outra lei natural; e é um caso que certamente deve ter sido, e provavelmente foi, considerado como um milagre, e o facto foi acreditado ou não, não importa a qualidade ou quantidade dos testemunhos sobre ele, mas de acordo com a credulidade ou o conhecimento supostamente superior do observador. Há cerca de 50 anos, o facto de operações cirúrgicas poderem ser realizadas em pacientes em transe mesmérico sem que eles tivessem consciência da dor foi extremamente condenado pela maioria dos cientistas e médicos, e os pacientes, e em algumas vezes os cirurgiões, foram denunciados como impostores. O fenómeno em questão foi considerado contrário às leis da natureza. Agora, provavelmente todo o homem inteligente acredita nesses factos, e que deve haver alguma coisa como uma lei desconhecida da qual eles são uma consequência. Quando Castellet  informou Réaumur de que havia cultivado bichos-da-seda a partir dos ovos postos por uma mariposa virgem, a resposta foi Ex nihilo nihil fit (ii) e o facto foi desacreditado. Era contrário a uma das mais amplas e mais bem estabelecidas leis da natureza; agora ele é universalmente considerado verdadeiro e a suposta lei deixou de ser universal. Estas poucas citações irão permitir-nos entender como milagres conhecidos devem ter acontecido em virtude de leis da natureza ainda desconhecidas. Nós sabemos tão pouco sobre o que as forças da vida realmente são, como elas agem ou podem agir e em que grau está a sua capacidade de transmissão de um ser para o outro, que seria realmente temerário afirmar que sob nenhuma condição excepcional poderiam acontecer fenómenos, tais como as curas aparentemente miraculosas de muitas doenças ou a percepção de outros canais além dos sentidos ordinários.

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(ii) - Nota do Tradutor: “Do nada, nada foi feito”




Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico do SobrenaturalII Milagres e a ciência moderna 1 de 2, 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alfred Russel Wallace, o homem)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

a pedra e o joio ~

Panorama desolador |

Foi tendo em vista todo esse panorama desolador que resolvemos lançar esta nova edição da Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, sob novo título capaz de abranger toda a área conflitual. Lançada a primeira edição há doze anos, em volumes de pequeno formato e composição em tipo miúdo, produziu ela os seus efeitos, mas já se encontra há muito esgotada. Muitas pessoas interessadas reclamam a reedição. Examinando o texto, vimos que ele ainda se apresenta como necessário no panorama actual. Foi a primeira crítica, rigorosamente crítica, oferecida ao meio doutrinário como um exemplo de como se deve desmontar uma doutrina absurda. Muitos dos seus tópicos se aplicam a outras formas de pretensa reformulação da doutrina. É um texto já clássico, modelo único de exame atento e minucioso de uma falsa teoria, não lhe faltando o exemplo de comedimento e de respeito humano ao responsável pela sua formulação e divulgação. Não teremos a falsa modéstia de negar o seu valor nesse sentido, mormente agora que o movimento da Educação Espírita atinge o plano universitário e exige a existência de textos dessa natureza, capazes de orientar os estudantes universitários no manejo da crítica espírita. Há momentos em que devemos ter a coragem de reconhecer e sustentar o valor das próprias obras elaboradas em favor da doutrina. Investimo-nos dessa coragem e lançamos o texto em nova edição, com endereço mais amplo e adaptado às exigências actuais. Não negaremos às novas gerações de estudantes universitários espíritas esse modelo ainda imperfeito, porque escrito sem o tempo necessário, mas valioso por o seu acerto no enfoque do problema e por sua eficácia indiscutivelmente provada.

Não buscamos nenhum efeito de interesse pessoal. A imprensa espírita ainda não está em condições de avaliar esforços desta natureza e a imprensa comum nem sequer tomará conhecimento desse trabalho. O que nos interessa é devolver à circulação um texto que tem a sua oportunidade e o seu valor relativo, atendendo a uma necessidade evidente do movimento espírita brasileiro. Ao lado de O Verbo e a Carne, cuja edição foi lançada recentemente, este pequeno volume poderá contribuir para orientar e estimular novas críticas dessa natureza. Nenhuma cultura se desenvolve sem crítica e sem exercício acurado do espírito crítico. O Espiritismo, ele mesmo, é um movimento crítico em favor do desenvolvimento da Civilização do Espírito, como vemos na obra gigantesca de Kardec. Todas as reacções que esta reedição provocar serão benéficas, mesmo quando possam parecer o contrário. A defesa da verdade está sempre acima dos melindres pessoais.

São Paulo, 18 de Abril de 1974.

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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, Panorama desolador, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)