milagres | e a ciência moderna ~
Um milagre é geralmente definido como uma violação ou
suspensão de uma lei da natureza, e como as leis da natureza são a mais
completa expressão das experiências acumuladas pela espécie humana, Hume era de opinião que
nenhum testemunho humano poderia provar um milagre. Strauss baseia todo o
argumento do seu elaborado trabalho sobre a mesma base, a de que nenhum
testemunho que venha até nós por meio do conhecimento de séculos pode provar
que estas leis foram alguma vez subvertidas, que a experiência unânime dos
homens mostra agora ser invariável. A ciência moderna colocou este argumento
numa base mais ampla, demonstrando a interdependência de todas estas leis e
considerando inconcebível que a força e o movimento, ou nada mais do que a
matéria, possam ser absolutamente criados ou destruídos o professor Tyndall no seu artigo
sobre "A constituição do universo", publicado no Forthnighly
Review, diz:
Um milagre é estritamente definido como uma invasão
da lei da conservação da energia. (i) Criar ou aniquilar a
matéria pressupõe, de todas as formas, um milagre: a criação ou aniquilação da
energia seria igualmente um milagre para aqueles que compreendem o princípio da
conservação.
(i) - Esta suposta definição de um
milagre é uma pura suposição. Milagres não implicam qualquer “invasão da lei de
conservação de energia”, mas meramente na existência de seres inteligentes
invisíveis a nós, capazes ainda de actuar sobre a matéria, como foi explicado
anteriormente.
O senhor Lecky, no
seu grande trabalho sobre o "Racionalismo", mostra-nos que durante os
últimos dois ou três séculos houve uma disposição continuadamente maior para se
adoptarem pontos de vista seculares mais que teológicos, em história, política
e ciência. As grandes descobertas da física na última metade do século
pressionaram esse movimento com ainda maior veemência e levaram a uma firme
convicção, nas mentes da maioria dos homens instruídos, a de que o
universo é governado por leis amplas e imutáveis, às quais se subordinam
todos os fenómenos que possam ser classificados e contra as quais nenhum facto
natural se pode opor. Se, contudo, definirmos milagre como uma
contravenção a qualquer uma destas leis, deve ser admitido que a ciência
moderna não tem lugar para ele; e nós não podemos ser surpreendidos com as
muitas e variadas tentativas de escritores de opinião amplamente oposta, darem
a razão de, ou explicarem todos os factos que, registados na história ou
religião, só poderiam ter acontecido supondo um agente miraculoso ou
sobrenatural. Esta tarefa não tem sido fácil, de forma alguma. A
quantidade de testemunho directo era a favor dos milagres em todos os tempos e
é muito grande. A crença em milagres foi, até à nossa época, quase
universal, e de modo geral é seguro e possível certificar-se que, as pessoas
que estão mais firmemente convencidas da impossibilidade dos eventos
considerados miraculosos, poucas pesquisaram ampla e honestamente a natureza e
quantidade das evidências de que aqueles eventos realmente aconteceram, se é
que aconteceram. Sobre este tema, contudo, eu não desejo tratar agora.
Parece-me que toda a base da questão foi de alguma forma mal colocada e
mal compreendida, e que, em cada caso autêntico de um suposto milagre, pode ser
encontrada uma solução que removerá muitas das nossas dificuldades.
Uma falácia comum parece-me presente em todos os argumentos
contra os factos considerados miraculosos, quando se assegura que eles violam,
ou invadem, ou subvertem as leis da natureza. Isto é realmente presumir
mais do que pode ser decidido, já que, se o facto em discussão realmente
aconteceu, ele só poderia estar de acordo com as leis da natureza, já
que, por definição, ‘lei da natureza’ é aquela que regula todos os fenómenos. A
própria palavra ‘sobrenatural’, quando aplicada a um facto, é um absurdo; e a
palavra ‘milagre’, se assim mantida, exige uma definição mais precisa
do que a que tem sido dada dele. Recusar-se a admitir o que em outras situações
seria evidência conclusiva de um facto, porque não pode ser explicado por
aquelas leis da natureza com as quais estamos familiarizados, é na verdade
sustentar que temos um completo conhecimento destas leis e que podemos
determinar de antemão o que é ou não possível. Toda a história do progresso do
conhecimento humano nos mostra que o controverso prodígio de uma era se
transforma em fenómeno natural aceite na seguinte e que muitos
milagres aparentes eram decorrentes de leis da natureza subsequentes às
descobertas.
Muitos fenómenos da mais simples feição pareceriam
sobrenaturais aos homens que possuem conhecimento limitado. O gelo e a neve
poderiam facilmente parecer como tais aos habitantes dos trópicos. A subida de
um balão pareceria sobrenatural a pessoas que nada conhecessem sobre as causas
do seu movimento de ascensão; e nós poderíamos bem aceitar que, não há gás
inflamável senão o ar atmosférico como sempre foi entendido, e se nas mentes de
todos (filósofos e químicos incluídos) o ar fosse indissoluvelmente ligado à
ideia de uma forma mais leve da matéria terrestre, o testemunho daqueles que
viram um balão ascender seria desacreditado, sob as bases de que a lei da
natureza seria suspensa se qualquer coisa pudesse ascender livremente para a
atmosfera, em directa contravenção à lei da gravidade.
Há um século, um telegrama a três milhas de distância ou uma
foto tirada numa fracção de segundo não seriam considerados possíveis, e não se
acreditaria em qualquer testemunho, excepto pelo ignorante e supersticioso que
acreditasse em milagres. Há cinco séculos, os efeitos produzidos pelo moderno
telescópio e pelo microscópio seriam considerados miraculosos e, se fossem
apenas relatados por viajantes como existentes na China ou no Japão, seriam
certamente desacreditados. O poder de mergulhar uma mão em metais derretidos
sem amachucar-se é um caso notável do efeito de leis naturais que parece
contrapor-se a uma outra lei natural; e é um caso que certamente deve ter sido,
e provavelmente foi, considerado como um milagre, e o facto foi acreditado ou
não, não importa a qualidade ou quantidade dos testemunhos sobre ele, mas de
acordo com a credulidade ou o conhecimento supostamente superior do observador. Há
cerca de 50 anos, o facto de operações cirúrgicas poderem ser realizadas em
pacientes em transe
mesmérico sem que eles tivessem consciência da dor foi extremamente
condenado pela maioria dos cientistas e médicos, e os pacientes, e em algumas
vezes os cirurgiões, foram denunciados como impostores. O fenómeno em questão
foi considerado contrário às leis da natureza. Agora, provavelmente todo o
homem inteligente acredita nesses factos, e que deve haver alguma coisa
como uma lei desconhecida da qual eles são uma consequência. Quando
Castellet informou Réaumur de
que havia cultivado bichos-da-seda a partir dos ovos postos por uma mariposa
virgem, a resposta foi Ex nihilo nihil fit (ii) e
o facto foi desacreditado. Era contrário a uma das mais amplas e mais bem
estabelecidas leis da natureza; agora ele é universalmente considerado
verdadeiro e a suposta lei deixou de ser universal. Estas poucas
citações irão permitir-nos entender como milagres conhecidos devem ter
acontecido em virtude de leis da natureza ainda desconhecidas. Nós
sabemos tão pouco sobre o que as forças da vida realmente são, como elas agem
ou podem agir e em que grau está a sua capacidade de transmissão de
um ser para o outro, que seria realmente temerário afirmar que sob
nenhuma condição excepcional poderiam acontecer fenómenos, tais como as curas
aparentemente miraculosas de muitas doenças ou a percepção de outros
canais além dos sentidos ordinários.
/…
(ii) - Nota do Tradutor: “Do nada, nada foi feito”
Alfred Russel Wallace, O
Aspecto Científico do Sobrenatural, II Milagres e a ciência
moderna 1 de 2, 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alfred Russel Wallace, o homem)
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