sexta-feira, 20 de março de 2020

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Natureza da Revelação Espírita 
(VII)

Pelas relações que o homem pode agora estabelecer com os que deixaram a Terra, tem não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como compreende a solidariedade que liga os vivos e os mortos deste mundo e os deste mundo com os dos outros mundos. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos; segue-os nas suas migrações; é testemunha das suas alegrias e dos seus desgostos; sabe porque estão felizes ou infelizes e a sorte que o espera a ele consoante o bem ou o mal que faça. Estas ligações iniciam-no na vida futura que pode observar em todas as fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma esperança vaga: é um facto positivo, uma certeza matemática. Então, a morte já nada tem de assustador, pois é para ele a libertação, a porta da verdadeira vida.

Através do estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a infelicidade na vida espiritual são inerentes ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada qual sofre as consequências directas e naturais dos seus erros: dito de outro modo, que é castigado por aquilo em que pecou; que as suas consequências duram tanto tempo como a causa que os produziu; que, assim, o culpado sofreria eternamente se persistisse eternamente no mal, mas que o sofrimento termina com o arrependimento e a reparação; ora, como depende de cada um melhorar, cada um pode, graças ao seu livre-arbítrio, prolongar ou abreviar os seus sofrimentos, tal como o doente sofre durante o tempo que levar até pôr um fim aos seus excessos.

Se a razão afasta, como incompatível com a bondade de Deus, a ideia dos castigos irremissíveis, perpétuos e absolutos, muitas vezes infligidos devido a um só erro, suplícios do Inferno que não podem suavizar o arrependimento mais ardente e mais sincero, ela inclina-se perante esta justiça distributiva e imparcial, que toma tudo em consideração, que nunca fecha a porta ao regresso e que estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.

A pluralidade das existências, de que Cristo enunciou o princípio no Evangelho mas sem o definir mais que muitos outros, é uma das leis mais importantes reveladas pelo Espiritismo, no sentido em que demonstra a realidade e a sua necessidade para a evolução. Por esta lei, o homem explica todas as anomalias aparentes que a vida humana apresenta; as diferenças de posição social, os mortos prematuros que, sem a reencarnação, tornariam inúteis para as almas as vidas abreviadas; a desigualdade das aptidões intelectuais e morais, pela antiguidade do espírito que aprendeu mais ou menos e progrediu e que traz ao renascer o saber adquirido nas suas existências anteriores. (Ver o ponto 5 deste capítulo).

Com a doutrina da criação da alma, a cada nascimento, voltamos a cair na teoria das criações privilegiadas; os homens são estranhos uns aos outros, nada os une, os laços de família são puramente carnais: não são de maneira nenhuma solidários com um passado onde não existiam; com a ideia do nada depois da morte, toda a relação cessa com a vida; não são solidários com o futuro. Com a reencarnação, são solidários com o passado e com o futuro; perpetuando-se as suas relações no mundo espiritual e no mundo corporal, a fraternidade tem por base as próprias bases da natureza; o bem tem uma finalidade e o mal as suas consequências inevitáveis.

Com a reencarnação caem todos os preconceitos de raças e de castas, uma vez que o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, fidalgo ou proletário, patrão ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, não existe nenhum que supere em lógica o facto material da reencarnação. Portanto, se a reencarnação funda sobre uma lei da natureza o princípio da fraternidade universal, funda sobre a mesma lei o da igualdade de direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.

/…


ALLAN KARDEC, A GÉNESE, – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA, de 31 a 36 (VII), 9º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 3 de março de 2020

as vidas sucessivas | os elementos ~

~ Experiências magnéticas 
Regressão da memória e previsão 
~ Caso nº 1 / Laurent (IV)

"27 de Outubro de 1893|

Sessão bastante longa; mas, tendo o Sr. de Rochas se esquecido de sugerir-me a lembrança do que se passaria, não me recordo de nada. Parece que se pode, pressionando-se fortemente a fronte, evocar as sensações experimentadas, todavia, ao menos no que me concerne, a imaginação parece-me então alterar a memória. Não apresentando a lembrança certeza absoluta, como a que se tem sob a influência da sugestão, é mais sensato não lhe dar crédito. (i)

8 de Novembro de 1893

É necessário que eu fale sobre um fenómeno que frequentemente tenho observado nestes dias.

Tão logo na presença do Sr. de R., sinto-me sob a sua influência, mesmo que na nossa conversa não se trate de hipnotismo e, sem que ele me aplique passes ou me fixe para levar-me ao sonambulismo.

No jardim do Luxemburgo, anteontem, enquanto eu passeava com ele, o Sr. de R. deu-me esta ordem: “Você já não pode andar.” Imediatamente permaneci no mesmo lugar, as pernas rígidas, um pouco apavorado, mas sem razão, pois, tão logo me apercebo de que estou sob a influência de uma sugestão, por si só os meus músculos se relaxam e continuo o passeio sem a mínima dificuldade.

Advertido assim de que o Sr. de R. procura nesse momento tentar o seu poder sobre um sujet desperto, permaneço atento, acreditando que a minha vontade será capaz de lutar contra as ordens recebidas. E, efectivamente, reagindo de alguma forma com antecedência logo que o Sr. de R. abre a boca, chego a impedir que a sugestão se realize, sem todavia poder reter um gesto levemente esboçado, que é o começo da realização.

– Deixemos isso – diz-me o Sr. de R. – e falemos de outra coisa.

Já não penso numa possível sugestão quando o Sr. de R. bruscamente exclama:

– Abra a sua mão direita.

Apanhado de surpresa, obedeço imediatamente e a minha bengala cai no chão.

Esta manhã, a simples presença do magnetizador foi suficiente para fazer-me cair na primeira letargia. Sem dúvida eu tinha vindo ao seu gabinete para ser adormecido, eu já estava até sentado diante dele, eu não tinha a ideia de resistir à sua influência magnética (e estas são condições essenciais do fenómeno que se produziu) e, ainda mais, foi a primeira vez que observei isso e adormeci sem o concurso directo do magnetizador.

O Sr. de R. leva-me ao terceiro estado, o estado de rapport. A mesma obliteração da memória de tudo o que se refere ao período de minha vida transcorrido desde a idade dos nove anos. Na verdade, admiro-me por voltar de repente a essa idade sem passar por etapas progressivas. (ii) O facto não é menos verdadeiro; raciocino claramente, entretanto exprimo-me com um vocabulário restrito. Estou nas quatro operações em matemática e cometo erros de ortografia, ao escrever. A minha letra é infantil; lamento não poder compará-la com a que eu rabiscava os meus cadernos escolares perdidos. Não me recordo de ter tido, hoje, esse súbito lampejo de consciência que me fez perceber, em um segundo, durante a sessão precedente, que eu estava adormecido.

É necessário observar que a sugestão possui menos força nesse terceiro estado do que nos estados precedentes. De acordo com o Sr. de R., sou um dos mais sensíveis a isso; não obstante, cedo menos facilmente do que no segundo estado (sonambulismo).

Se, por exemplo, nesse segundo estado o Sr. de R. me ordena, quando está atrás de mim, que o veja em carne e osso na poltrona que está diante de mim, a alucinação é completa: vejo e toco efectivamente uma pessoa viva e, a sensação não se torna mais nítida quando o Sr. de R. se senta ele próprio na poltrona.

Ao contrário, no terceiro estado, sob a ordem do Sr. de R., vejo-o bem e sinto-o lá onde ele não está; mas se ele se dirige realmente ao local onde creio vê-lo, apercebo-me do meu erro, enquanto, no segundo estado, entre a sua imagem e ele, eu não encontrava diferença.

12 de Novembro de 1893

Experiências feitas novamente no terceiro estado.

exteriorização da sensibilidade segue as mesmas leis observadas no segundo estado. Há zonas sensíveis distribuídas em torno do meu corpo e separadas por intervalos constantes onde a excitação é vã. Essas zonas sensíveis são, aliás, invisíveis para mim; não vejo vestígios de eflúvios. Além do mais, observo sempre que a reacção à excitação é mais viva e a sensação mais nítida quando sou advertido e vejo o ponto da zona sobre a qual é dirigida a excitação.

Apagam-se as luzes e deixa-se o cómodo numa obscuridade completa. O Sr. de R. apresenta-me então um diamante, inesperadamente. Passado um momento distingo duas frouxas luminosidades em alguma parte no espaço. É precisamente aí que encontro o diamante. Aliás, essas luminosidades são tão vagas para os meus olhos que não posso definir exactamente a sua cor.

O Sr. de R. estende-me em seguida os seus dedos, que não me parecem mais luminosos do que como os vejo habitualmente. De qualquer forma, não vejo nenhum eflúvio saindo deles.

Enfim, o Sr. de R., colocando a sua mão sobre o peito, pergunta-me se não vejo dentro dele. – Absolutamente não. E não vejo também nada em mim mesmo. (iii)

Acho prudente encerrar aqui estas anotações. À medida que o sujet chega a um estado mais profundo, a sugestão adquire cada vez menos poder sobre ele. Por conseguinte, apesar de o Sr. de R. me sugerir a recordação do que se passa comigo durante o meu sono, desperto, eu não me recordo de nenhuma de minhas acções, de nenhuma das minhas palavras. Eu disse que, pressionando-se fortemente a fronte e, por um esforço persistente, se podiam evocar palavras e acções que se crê terem sido ditas e realizadas; porém também acrescentei que isso parecia como que uma ilusão.

A partir do momento em que entrei nos estados mais profundos do que o terceiro, tive de resignar-me a já não me observar e, por conseguinte saber o que se passou comigo, fixar-me nas observações do Sr. de Rochas, o que faço sem esforço.

                                                                                                                        Laurent
/...
(i) Constatei nesta sessão, com o auxílio de perguntas versando sucessivamente sobre acontecimentos desde os mais recentes até ao nome do seu professor da 3ª série, que as suas recordações se concentravam sobre aqueles cada vez mais distantes à medida que a hipnose se aprofundava. (A. de Rochas)
(ii) As etapas progressivas existem realmente, mas eu não interrogava o sujet durante a sua duração, porque na sessão de 27 de Outubro eu já havia estudado o que podia interessar-me. (A. de Rochas)
(iii) Essas tentativas tinham por finalidade constatar se Laurent gozava da propriedade descrita nos estados profundos da hipnose. (A. de Rochas)


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas, Capítulo II – Regressão da memória e previsão, Caso nº 1 – Laurent, 1893 (por ele próprio) 4 de 4, 8º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites)