terça-feira, 20 de outubro de 2020

literatura do além-túmulo ~


Capítulo III ~

Tendo eu falado de um caso passado em Itália, direi algumas palavras sobre um outro, recente, que aconteceu a um grupo a efectuar experiências na Lombardia, onde se manifestou uma entidade que afirmava ser o espírito de um escritor falecido muito jovem, havia poucos anos. 

Fora ele, em vida, autor genial de novelas com traços característicos de estilo, de forma de imaginação difícil de imitar. Ora, aconteceu que a entidade em questão, a título de prova de identificação pessoal, ditou vários contos absolutamente conformes aos que escrevia quando vivo. 

Esses documentos mediúnicos foram publicados. A pessoa que promoveu essa iniciativa enviou-me um exemplar da obra e eu fiquei surpreendido com a semelhança incontestável da técnica literária e da imaginação criadora existentes entre os contos escritos durante a sua vida e os ditados pela entidade comunicante. 

Propus-me, então, a analisar, a fundo, o caso em apreço, da presente monografia. Infelizmente, os pais do falecido moço opuseram-se à divulgação da obra, o editor teve de retirá-la de circulação o que me desautorizou a falar dela. 

Isso é tanto mais deplorável quando se trata de documentos mediúnicos donde sobressairiam detalhes mais instrutivos e sugestivos pouco vulgares na maior parte dos escritos desta espécie. 

O que me consola um pouco é pensar que, como nenhuma vontade humana pode impedir o defunto de continuar a manifestar-se, ditando produções literárias com o fito de demonstrar a sua sobrevivência, outras provas virão juntar-se às primeiras e o caso de identificação do autor terá cada vez mais valor, esperando-se o dia em que for levantado o veto injustificado pela vontade daqueles que o impuseram, ou por qualquer outro motivo. 

Capítulo IV 

Nada querendo omitir na enumeração dos casos especiais de que me ocupo neste estudo, devo ainda aflorar o tão conhecido episódio relativo ao romance de Charles DickensEdwin Drood, que ficou inacabado por ocasião do seu falecimento e, que o espírito do romancista teria, ele próprio, terminado post mortem, por intermédio do médium T. P. James, jovem operário mecânico dos Estados Unidos da América, sem cultura literária de espécie alguma. 

O caso deu-se em 1873 e parece-me incontestável e autêntico. As condições nas quais se desenrolou esta série de sessões são muito interessantes e também bastante conhecidas, sobretudo devido à obra de Aksakof, não havendo, portanto, necessidade de recordá-las. A origem supranormal da obra mediúnica em questão foi, alternativamente, afirmada e contestada por numerosos comentadores que o fizeram, empregando, igualmente e com a mesma eficácia, a análise comparada das duas partes – a autêntica e a póstuma – do romance em questão. Os que são favoráveis à solução puramente consciente do enigma tratam, sobretudo, de salientar e comentar os defeitos e as incoerências de natureza geral. Assim, por exemplo, a sra. Fairbanks faz notar que se encontrou, nos papéis póstumos de Charles Dickens, uma cena que este autor escrevera, com antecedência, para a segunda parte do seu romance; ora, esta cena foi ignorada no ditado mediúnico. A sra. Vessel nota, por sua vez, que, lendo essa segunda parte póstuma do romance em apreço, encontrou, pela primeira vez, Dickens monótono e pesado. Ao contrário, os que sustentam a proveniência, autenticamente espírita do ditado mediúnico, não deixam de ter bons argumentos para o fazerem valer. Estes fazem notar que a narração é retomada no ponto exacto em que Dickens a interrompera, ao morrer. 

Isto se dá com tal naturalidade que a crítica mais sagaz não seria capaz de assinalar o ponto de transição. 

Fazem da mesma maneira sobressair detalhes de forma, de estilo, de construção, de ortografia, realmente eloquentes no sentido afirmativo. Assim, por exemplo, a palavra traveller (viajante) está constantemente escrita com “L” duplo, como se escreve na Inglaterra, enquanto que nos Estados Unidos da América se escreve com um único “L”. A palavra coal (carvão) está invariavelmente escrita com um “s” final, à maneira dos ingleses e, não segundo o costume dos americanos. Finalmente, passa-se, no ditado mediúnico, do tempo passado ao presente, sobretudo nas cenas movimentadas, hábito característico de Dickens, pouco vulgar noutros romancistas. 

Sir Conan Doyle, analisando, por sua vez, este caso, num artigo publicado na Fortnightly Review (dezembro de 1927), salienta outras analogias do mesmo género, começando pelos títulos dos capítulos, que guardam, constantemente, na obra mediúnica, a impressão original dos títulos caros a Dickens. Ele cita, além disso, duas passagens descritivas, extraídas do ditado mediúnico, as quais põe em confronto com duas passagens do mesmo género, tiradas da parte autêntica do romance, sem indicar os textos a que pertenciam os diferentes trechos e convida os críticos a distinguirem as autênticas das mediúnicas. Sir Arthur declara que a coisa não está longe de ser conseguida, dada a identidade do estilo e da forma, assim como a sua beleza literária, sinal do mesmo temperamento artístico. 

Apesar disso, sir Arthur também reconhece que o verdadeiro Dickens teria provavelmente feito agir, de modo diferente, certos personagens do romance, porém observa: 

“Parece-me, entretanto, que não se deveria insistir muito neste ponto, pretender que um Dickens, entorpecido pela mediação com o médium James, deva ficar, mentalmente, tão ágil quanto um Dickens, senhor absoluto de si próprio. É preciso, logicamente, admitir este tipo de constrangimento.” 

Noto, por minha parte, que esta última consideração está conforme ao que já fiz observar a propósito dos ditados mediúnicos de Francesco Scaramuzza

Não obstante, Conan Doyle conclui dizendo que, no romance póstumo em questão, “se está bem longe ainda de ficar autorizado a afirmar a existência de uma inspiração real da parte do grande romancista”. 

É nesse sentido que concluiremos também, isto é, que, se os processos da análise comparada, ainda desta vez, são, no seu conjunto, mais favoráveis à hipótese mediúnica do que à contrária, esta circunstância não autoriza, entretanto, a formação de juízos precisos a tal respeito. Deve-se, antes, reconhecer que o caso Dickens ainda não pode ser registado entre os que servem para fazer pender a balança das probabilidades a favor da interpretação espírita dos factos. 

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Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo III e IV, 4º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)