terça-feira, 31 de dezembro de 2013

pensamento espírita argentino ~

CAPÍTULO I

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história ~

Que somos?

Há vinte e quatro séculos (470 a.C.), o imortal Sócrates viu inscrita na fachada do templo de Delfos esta profunda sentença: “Conhece-te a ti mesmo”, que tomou como fundamento de sua filosofia. Transcorreram os séculos sem que a humanidade, absorvida pelos interesses da vida material, se preocupasse com aquela afirmação. Conhecer-se a si mesmo: saber o que somos, de onde viemos e para onde vamos! Eis aí o problema, o formidável problema, que inclui o princípio da verdadeira sabedoria.

As religiões e as diversas filosofias se perderam em conjecturas, em uma metafísica infecunda e cheia de contradições, sem nos dar a chave do problema: o Nosce te ipsum (Conhece-te a ti mesmo) guardava a sua incógnita.

O positivismo materialista, iludido pelas falsas perspectivas de um conhecimento incompleto, acreditou conhecer o homem, estudando-o: com a biologia, no desenvolvimento da célula e em processo biológico, do óvulo fecundado até ao completo desenvolvimento de seu complicado organismo; com a fisiologia e a anatomia, no funcionamento orgânico e estrutura celular; com a histologia, na delicada constituição de seus tecidos, de suas fibras e neurónios; com a química, na composição íntima dos seus elementos constitutivos e, com a antropologia, nas suas relações de origem e descendência, nas influências hereditárias etnológicas, mesológicas, etc.; e como não pôde pegar a alma com o bisturi, descobri-la nas suas análises químicas, nem vê-la desprender-se do organismo no instante da morte, passou-lhe atestado de óbito, dando o problema por solucionado, concluindo que não há pensamento sem cérebro, nem percepção sem órgãos materiais, nem alma individual ou sobrevivência anímica, e o conhece-te a ti mesmo ficou prejudicado ante o conceito da ciência materialista.

Mas eis que “os mortos se levantam dos seus túmulos” e, enquanto os seus corpos se decompõem e os elementos constitutivos se desagregam e se infiltram na terra, dando vida às ervas e aos insectos que os circundam e deles tomam corpo e se nutrem, a entidade psíquica, o eu espiritual que constitui a nossa verdadeira personalidade, vive, sente, pensa e actua num plano de vida superior, rodeado, ou melhor dizendo, revestido de um corpo etéreo, verdadeiro receptáculo das energias sensoriais e psíquicas e potencial gerador das forças vitais, sensitivas e motoras, vínculo perispiritual, indispensável para a manifestação de nossas faculdades anímicas e espirituais e para a relação entre o espírito e a matéria, segundo se depreende dos factos acumulados pela psicologia experimental, pela metapsíquica e o Espiritismo.

Necessitava-se, pois, para que se resolvesse o problema do conhecimento do ser, dos factos e manifestações espíritas, capazes de explicar todo o alcance da sentença socrática.

Sábios de grande renome, mestres em todas as ciências, pensadores profundos, robustas mentalidades que se têm destacado em todos os ramos do saber humano, abraçaram o estudo do Espiritismo e depois de largas e pacientes investigações, de contínuas experiências e de terem acumulado enorme caudal de factos, que formam hoje um mosaico variado das suas manifestações e detalhes como sólido na base do conjunto, capaz de resistir aos embates da crítica mais minuciosa e exigente, provaram, positivamente, que a alma é uma entidade substancial, que pode actuar dentro e fora do organismo e, em circunstâncias determinadas e condições psíquicas especiais, ver sem olhos e ouvir sem ouvidos, não por uma hiperestesia do sentido da visão ou da audição, mas por um sentido interior, psíquico, mental; que pode, enfim ter pressentimentos e visões telepáticas verídicas, ver, em estado sonambúlico, através dos corpos opacos e a muitos quilómetros de distância e descrever minuciosamente o que se está passando, desprender-se parcial ou totalmente do seu corpo material, e ante a destruição deste, manifestar-se no mundo dos vivos, de diferentes modos, valendo-se ou não do organismo de um médium.

As experiências do físico William Crookes, descobridor da matéria radiante, do tálio e inventor dos tubos que levam o seu nome, as do não menos célebre físico Cromwell Varley, inventor do condensador eléctrico; as do naturalista Alfred Russel Wallace, autor da teoria da selecção natural (simultaneamente com Darwin), as do fisiólogo Charles Richet, as do antropólogo-criminalista César Lombroso, as do ilustre físico Oliver Lodge, as do professor Ernesto Bozzano, as dos astrónomos ZöllnerFlammarion, Porro (do Observatório de La Plata), Schiaparelli etc., as dos doutores Otero Acevedo, Gibier, Gustave Geley, dos Osty, Hamilton, Schrenck Notzing, as dos psicólogos da importância de William James, de Weber e Fechner, as de Aksakof e mil outras, realizadas por sábios de fama mundial, sobram em factos tão rigorosamente controlados, que provam por si sós a verdade das afirmações precedentes.

Seria difícil dar aqui uma ideia, ainda que aproximada, da quantidade e variedade dos fenómenos psíquicos supranormais que registaram os anais do Espiritismo. Desde meados do século passado até aos nossos dias, se têm acumulado tantos factos em favor da tese espírita que só a ignorância, o misoneísmo ou a negação sistemática poderão desconhecê-los ou atribuí-los a sofisticações ou fraudes.

Outros sábios, outros homens, ávidos de conhecer o mistério do além-túmulo, enquanto a caravana do mundo se agita no torvelinho de suas paixões e interesses materiais, seguem esquadrinhando serena e silenciosamente as sombras do mais-além e tratam, por todos os meios ao seu alcance, de furar o túnel da morte e chegar ao pleno conhecimento do mundo espiritual. Dos seus trabalhos pacientes, perseverantes, assaz ásperos e um tanto ingratos, há hoje indícios seguros dessa nova vida que se estende além do plano terrestre, a um mundo infinito que nos assedia e do qual até agora temos tido apenas presunções. Vozes amigas, palavras de consolo, lembranças longínquas, lamentos, remorsos, ódios inauditos, carícias, recriminações, almas que sentem e pensam, testemunhos patentes de seres que viveram e vivem ainda acreditando-se ligados à terra, chegam através desse grande túnel, aberto por quase um século de investigação científica, a anunciar-nos a aurora de um glorioso despertar, cheio de agradáveis e fundadas perspectivas, de alentadoras esperanças.

Nunca como em nossa época se sentiu a imperiosa necessidade de descerrar o véu do desconhecido; jamais esta ansiedade da alma foi tão funda e absorvente como neste século, em que os conhecimentos mais positivos se sentem fraquejar na sua própria base ante os grandes e maravilhosos descobrimentos da ciência contemporânea e a observação audaz e penetrante da filosofia. Dir-se-ia que chegaram os tempos da revelação científica das eternas verdades que alentaram a humanidade desde a infância.

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Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A vontade de Deus ~

Temos constantemente debaixo dos olhos um exemplo que nos pode dar uma ideia da maneira como a vontade de Deus se pode exercer sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, consequentemente, como as impressões mais subtis da nossa alma chegam até ele. Foi retirado duma instrução dada por um Espírito a este respeito.

«O homem é um pequeno mundo cujo dirigente é o Espírito e o corpo o principio dirigido. Neste Universo, o corpo representará uma criação em que o espírito será Deus (percebereis que não se pode tratar aqui mais que de uma analogia e não de uma identidade). Os membros deste corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os seus músculos, os seus nervos, as suas articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim podemos dizer, localizadas num sítio especial do corpo; apesar do número das suas partes constituintes, de natureza tão variada e tão diferente, ser considerável, não oferece no entanto dúvidas a ninguém que não pode produzir movimentos, que uma qualquer impressão não pode dar-se num sítio particular sem que o Espírito tenha disso consciência. Há sensações diversas em vários sítios simultaneamente? O Espírito sente-as todas, percebe-as, analisa-as, atribui a cada uma a sua causa e o seu lugar de acção por intermédio do fluido do perespírito.

»Um fenómeno análogo dá-se entre a Criação e Deus. Deus está em todo o lado na natureza, tal como o Espírito está em todo o corpo; todos os elementos da Criação estão em contacto constante com ele, tal como todas as células do corpo humano estão em contacto imediato com o ser espiritual; não há portanto razão nenhuma para que os fenómenos da mesma ordem não se produzam da mesma maneira, num e noutro caso.

»Um membro agita-se: o Espírito sente; uma criatura pensa: Deus sabe-o. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são postos em movimento: o Espírito sente cada manifestação, distingue-a e localiza-a. As diferentes criações agitam-se, pensam, agem de forma diversa e Deus sabe tudo o que se passa, atribuindo a cada uma o que lhe é particular.

»Podemos deduzir daqui igualmente a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre os seres de um mundo e, enfim, entre as criações e o Criador.»

Quinemant, Sociedade Espírita de Paris, 1867

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ALLAN KARDEC in A GÉNESE, Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo II, DEUS, A Providência, números 26 e 27, fragmento. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Winding the Skein – 1878, pintura de Frederic Leighton)

domingo, 29 de dezembro de 2013

As vidas sucessivas | os elementos ~

Experiências magnéticas / O sono magnético e o corpo fluídico ~

1) Os estados da hipnose



Antes de expor as minhas experiências sobre a regressão da memória e a precognição, farei um rápido resumo de como o magnetismo age habitualmente sobre os sensitivos que estudei.

Sob a influência de passes longitudinais exercidos de cima para baixo e combinados com a imposição da mão direita sobre a cabeça do sujet (i) sentado diante de mim, produz-se uma série de estados semelhantes à vigília, mas apresentando cada uma das características específicas que servem para denominá-los, (ii) e que se sucedem sempre na mesma ordem.

Esses estados são separados por fases de letargia com a aparência do sono habitual que permitem distingui-los nitidamente uns dos outros quando o sujet bastante envolvido não queima as etapas.

Eis, sumariamente, a enumeração dessas características específicas e a sua sucessão:

1º estado: vigília.
1ª fase de letargia.

2º estado: sonambulismo. O sujet parece uma pessoa desperta gozando de todas as suas faculdades, no entanto é bastante sugestionável e apresenta o fenómeno da insensibilidade cutânea, que persiste em todos os estados seguintes. A memória é normal.
2ª fase de letargia.

3º estado: rapport(iii) O sujet não percebe ninguém além do magnetizador e das pessoas que este coloca em relação com aquele, seja por um contacto ou mesmo por um simples olhar. Apresenta a sensação de bem-estar bastante pronunciada, diminuição da memória normal e da sugestibilidade. A sensibilidade começa a exteriorizar-se numa camada paralela ao corpo e situada a cerca de trinta e cinco milímetros da pele. (iv) O sujet vê os eflúvios exteriores dos corpos organizados e dos cristais.
3ª fase de letargia

4º estado: simpatia ao contacto. A sensibilidade continua a exteriorizar-se e pode constatar-se uma segunda camada sensível a seis ou sete centímetros da primeira e de menor sensibilidade. O sujet experimenta as sensações do magnetizador quando este se coloca em contacto com ele. A sensibilidade cutânea desaparece, assim como a memória dos factos; elas não reaparecem nos estados seguintes, mas a memória da linguagem subsiste nesses estados, já que o sujet pode conversar com o magnetizador.
4ª fase de letargia.

5º estado: simpatia à distância. O sujet percebe todas as sensações do magnetizador, mesmo sem contacto, desde que a distância não seja muito grande. Ele não mais vê os eflúvios exteriores dos corpos, mas vê os órgãos internos dos seres vivos. Não é mais sugestionável e perde totalmente a memória de sua vida; não conhece mais do que duas pessoas, o magnetizador e ele próprio, no entanto não sabe os seus nomes.

Em geral, a partir desse estado, um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, de acordo com o sujet, a sensibilidade que até esse momento se exteriorizava em camadas concêntricas à periferia do corpo, condensa-se para formar, primeiramente a cerca de um metro à sua direita, uma coluna nebulosa azul mais ou menos de seu tamanho e, em seguida, à sua esquerda, uma outra coluna análoga vermelha(v) enfim, as duas colunas reúnem-se para formar uma única coluna cuja forma se precisa cada vez mais para constituir o fantasma do sujet. Esse fantasma,ligado ao corpo físico por um liame luminoso e sensível, que é como o seu cordão umbilical, torna-se cada vez mais móvel e obediente à vontade. Tem uma tendência bem pronunciada a elevar-se até uma altura que ele não pode ultrapassar; isso parece depender do grau de evolução intelectual e moral dos sujets, que vêem flutuar à sua volta seres apresentando uma cabeça com um corpo terminado em ponta como uma vírgula. Ficam felizes por terem saído do seu envoltório físico, dos seus andrajos, segundo uma expressão que utilizam com frequência, e repugna-lhes para aí voltarem. Todos estes fenómenos se desenvolvem e se precisam através de uma série deestados separados por fases de letargia que se sucedem como os dias e as noites.

Passes transversais reconduzem o sujet ao estado de vigília, fazendo-o passar, em ordem inversa, por todos os estados e todas as letargias pelos quais passou ao adormecer.

Em 1895, publiquei nos Annales des Sciences Psychiques um artigo intitulado “Fantasmas dos Vivos”, no qual expus com detalhes as minhas primeiras experiências sobre essa espécie de fenómenos, onde pude levar os sujets até um décimo terceiro estado, graças à electricidade.

Durville as retomou e as completou, expondo as suas próprias experiências num livro publicado em 1909 sob esse mesmo título: Fantômes des vivants(vi)

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(i) Não apresentando o termo sujet tradução exacta, decidimos mantê-lo, até mesmo porque o seu uso se tornou relativamente habitual. Significa, resumidamente, indivíduo em estudo ou estudado experimentalmente. (N.T.)


(ii) Essas características foram seleccionadas por serem as que primeiro se apresentam à observação, mas é provável que haja outras ainda não reconhecidas. (A.R.)

(iii) Estamos mantendo, nesta tradução, o termo rapport para designar a relação ou ligação que se opera entre o magnetizador e o sujet, durante o transe de regressão de memória. A tradução literal ou outro qualquer vocábulo não se mostraram apropriados e, na verdade, os investigadores sérios e os bons autores têm utilizado sempre o termo francês, que se consagrou. (N.T.)

(iv) Em junho de 1904, o Sr. Charpentier comunicou à Academia das Ciências a seguinte experiência: “Colocando-se diante de uma parede reflectora e afastando progressivamente da superfície anterior do corpo em uma direcção normal uma pequena tela fosforescente (nódoa de sulfureto sobre cartão preto), vê-se que esta tela passa por máximos e mínimos de intensidade regularmente espaçados, indicando a existência, nas proximidades do corpo, de espécies de ondas estacionárias cujo comprimento é de cerca de 35 milímetros, ou seja, precisamente o comprimento de onda dos nervos.” (A.R.)

(v) Em alguns sujets a formação do fantasma ocorre na ordem inversa. (A.R.)

(vi) Se há algumas pequenas divergências nas nossas constatações, não se surpreendam. Os primeiros viajantes que penetram num país desconhecido não concentram necessariamente a sua atenção sobre os mesmos pontos e estão sujeitos a não os verem exactamente no mesmo dia. Foi assim que, durante anos, magnetizei sensitivos sem observar o fenómeno da regressão da memória, que passava sem dúvida despercebido por mim, porque eu não interrogava o sujet sobre as coisas que me poderiam indicá-lo. Actualmente, ainda, não estou muito seguro sobre as causas que a determinam, apesar de supor que ela aconteça devido ao facto de que, sob a influência de passes que fixam os laços que unem o corpo material ao corpo fluídico, este se concentra ao invés de exteriorizar-se; pois constatei diversas vezes que eu não mais encontrava camada sensível em volta do sujet quando ele recuava no tempo, e os espectadores videntes diziam, quando o fenómeno se produzia depois da formação do corpo fluídico, que viam este corpo mudar de forma e diminuir quando o sujet voltava a ser criança. (A.R.)



Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas Capítulo I O sono magnético e o corpo fluídico 1 – Os estados da hipnose, 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Inquietações Primaveris ~

Páscoa da ressurreição

O pavor maior da morte provém da ideia de solidão e escuridão. Mas os teólogos acharam que isso era pouco e oficializaram as lendas remotas do Inferno, do Purgatório e do Limbo, a que não escapam nem mesmo as crianças mortas sem baptismo. De tal maneira se aumentaram os motivos do pavor da morte, que ela chegou a significar desonra e vergonha. Para os judeus, a morte se tornou a própria impureza. Os túmulos e os cemitérios foram considerados impuros. Os cenotáfios, túmulos vazios construídos em honra aos profetas, mostram bem essa aversão à morte. Como podiam eles aceitar um Messias que vinha da Galileia dos Gentios, onde o Palácio de Herodes fora construído sobre terra de cemitérios? Como aceitar esse Messias que morreu na cruz, vencido pelos romanos impuros, que arrancara Lázaro da sepultura (já cheirando mal) e o fizera seu companheiro nas lides sagradas do messianismo?

Ainda nos nossos dias o respeito aos mortos está envolvido numa forma velada de repulsa e depreciação. A morte transforma o homem em cadáver, risca-o do número dos vivos, tira-lhe todas as possibilidades de acção e, portanto, de significação no meio humano. “O morto está morto”, dizem os materialistas e o populacho ignaro. O Papa Paulo VI declarou, e a imprensa mundial divulgou por toda a parte, que “existe uma vida após a morte, mas não sabemos como ela é”. Isso quer dizer que a própria Igreja nada sabe da morte, a não ser que morremos. A ideia cristã da morte, sustentada e defendida pelas diversas igrejas, é simplesmente aterradora. Os pecadores ao morrer se vêem diante de um Tribunal Divino que os condena a suplícios eternos. Os santos e os beatos não escapam às condenações, não obstante a misericórdia de Deus, que não sabemos como pode ser misericordioso com tanta impiedade. As próprias crianças inocentes, que não tiveram tempo de pecar, vão para o Limbo misterioso e sombrio pela simples falta do baptismo. Os criminosos broncos, ignorantes e todo o grosso da espécie humana são atirados nas garras de Satanás, um anjo decaído que só não encarna o mal porque não deve ter carne. Mas com dinheiro e a adoração interesseira a Deus essas almas podem ser perdoadas, de maneira que só para os pobres não há salvação, mas para os ricos o Céu se abre ao impacto dos tedéuns sumptuosos, das missas cantadas e das gordas contribuições para a Igreja. Nunca se viu soberano mais venal e tribunal mais injusto. A depreciação da morte gerou o desabrido comércio dos traficantes do perdão e da indulgência divina. O vil dinheiro das roubalheiras e injustiças terrenas consegue furar a Justiça Divina, de maneira que o desprestígio dos mortos chega ao máximo da vergonha. A felicidade eterna depende do recheio dos cofres deixados na Terra.

Diante de tudo isso, o conceito da morte se azinhavra nas mãos dos cambistas da simonia, esvazia-se na descrença total, transforma-se no conceito do nada, que Kant definiu como conceito vazio. O morto apodrece enterrado, perdeu a riqueza da vida, virou pasto de vermes e a sua misteriosa salvação depende das condições financeiras da família terrena. O morto é um fraco, um falido e um condenado, inteiramente dependente dos vivos na Terra.

O povo não compreende bem todo esse quadro de misérias em que os teólogos envolveram a morte, mas sente o nojo e o medo da morte, introjetados em sua consciência pela farsa dos poderes divinos que o ameaçam desde o berço ao túmulo e ao além-túmulo. Não é de admirar que os pais e as mães, os parentes dos mortos se apavorem e se desesperem diante do facto irremissível da morte.

Jesus ensinou e provou que a morte se resolve na Páscoa da ressurreição, que ninguém morre, que todos temos o corpo espiritual e vivemos no além-túmulo como vivos mais vivos que os encarnados. Paulo de Tarso proclamou que o corpo espiritual é o corpo da ressurreição (cap. 12 da primeira Epístola aos Coríntios), mas a permanente imagem de Cristo crucificado, das procissões absurdas do Senhor Morto, – heresia clamorosa –, as cerimónias da Via-Sacra e as imagens aterradoras do Inferno Cristão – mais impiedoso e brutal do que os Infernos do Paganismo – marcados a fogo na mente humana através de dois milénios, esmagam e envilecem a alma supersticiosa dos homens.

Não é de admirar que os teólogos actuais, divididos em várias correntes de sofistas cristãos moderníssimos, estejam hoje proclamando, com uma alegria leviana de debilóides, a Morte de Deus e o estabelecimento do Cristianismo Ateu. Para esses novos teólogos, o Cadáver de Deus foi enterrado pelo Louco de Nietsche, criação fantástica e infeliz do pobre filósofo que morreu louco.

O clero cristão, tanto católico como protestante, tanto do Ocidente como do Oriente, perdeu a capacidade de socorrer e consolar os que se desesperam com a morte de pessoas amadas. Os seus instrumentos de consolação perderam a eficiência antiga, que se apoiava no obscurantismo das populações permanentemente ameaçadas pela Ira de Deus. A Igreja, Mãe da Sabedoria Infusa, recebida do Céu como graça especial concedida aos eleitos, confessa que nada sabe sobre a vida espiritual e só aconselha aos fiéis as práticas antiquadas das rezas e cerimónias pagas, para que os mortos queridos sejam beneficiados no outro Mundo ao tinir das moedas terrenas. O Messias espantou a chicote os animais do Templo que deviam ser comprados para o sacrifício redentor no altar simoníaco e derrubou as mesas dos cambistas, que trocavam no Templo as moedas gregas e romanas pelas moedas sagradas dos magnatas dispenseiros da misericórdia divina. O episódio esclarecedor foi suplantado na mente popular pelo impacto esmagador das ameaças celestiais contra os descrentes, esses rebeldes demoníacos. Em vão Cristo ensinou que as moedas de César só valem na Terra. Há dois mil anos essas moedas impuras vêm sendo aceitas por Deus para o resgate das almas condenadas. Quem pode, em sã consciência, acreditar hoje em dia numa Justiça Divina que funciona com o mesmo combustível da Justiça Terrena? Os sacerdotes foram treinados a falar com voz empostada, melíflua e fingida, para, à semelhança da voz das antigas sereias, embalar o povo nas ilusões de um amor venal e sem piedade. Voz doce e gestos compassivos não conseguem mais, em nossos dias, do que irritar as pessoas de bom senso. O Cristo Consolador foi traído pelos agentes da misericórdia divina que desceu ao banco das pechinchas, no comércio impuro das consolações fáceis. Os homens preferem jogar no lixo as suas almas, que Deus e o Diabo disputam não se sabe porquê.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, Educação para a Morte 1, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Deus na Natureza ~

Introdução (II)

Nenhuma poesia humana se nos figurou comparável à verdade natural, e o Verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras da Natureza, do que o pudera fazer o homem com os seus cantos mais pomposos.

Seja qual for a oportunidade dos estudos que este trabalho objectiva, não esperamos agradar a toda a gente, certo de haver muitos incapazes de acordar do seu sono e outros tantos a quem longe estamos de lhes corresponder aos pendores.

Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação é merecida. Onde estão, com efeito, os corações palpitantes de puro amor à verdade? Em que alma – perguntamos – ainda reina a fé? Não diremos, já, a fé cristã, mas uma crença sincera, seja no que for. Aonde se vão os tempos em que as forças da Natureza, divinizadas, recebiam homenagens universais?

Tempos nos quais o homem, contemplativo e deslumbrado, saudava com fervor a potência eterna e manifesta na Criação?

Que é feito daqueles tempos em que os homens eram capazes de derramar o sangue por um princípio, quando as repúblicas tinham à sua testa um ideal e não uma ambição?

Quem se lembra dos tempos em que o génio de um povo, esculpido em Notre Dame ou em São Pedro de Roma, se ajoelhava e pedia, aconchegado aos seus muros de pedra?

Que é feito da virtude patriótica dos nossos antepassados abrindo as portas do Panteão para acolher as cinzas dos heróis do pensamento, e relegando à noite do esquecimento a falsa glória da ociosidade e das almas?

Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza de suportar um tal aviltamento: saturados de egoísmo, a nossa alma não alimenta outra ambição que a do interesse pessoal. Riqueza cuja origem permanece equívoca, louros surpreendidos, antes que conquistados, uma doce quietação, uma profunda indiferença pelos princípios, quem não verá nisso o nosso galardão?

À parte, contudo, fora do mundanismo empolgante e rumoroso, vivem os que não se conformam em baixar a fronte diante da hipocrisia. Esses trabalham na solidão e esquadrinham em silenciosa meditação os abismos da Filosofia e, se se mantêm fortes, é porque não se atrofiam ao contacto das sombras. Na verdade, é um contraste penoso de assinalar, quando vemos que o progresso magnífico, sem precedentes, das ciências positivas, que a conquista sucessiva do homem sobre a Natureza, ao mesmo tempo em que tão alto nos elevaram a inteligência, deixaram resvalar o sentimento a níveis tão baixos. Doloroso sentir que, enquanto por um lado a inteligência mais demonstra a sua capacidade, extingue-se por outro lado o sentimento, e a vida íntima da alma mais se embota na geena da carne.

A causa da nossa decadência social (passageira, já que a História não pode mentir a si mesma) deve-se à nossa falta de fé. A primeira hora deste nosso século marcou o derradeiro alento da religião de nossos pais. Baldos serão quaisquer esforços de restauração e reconstrução. Tudo o que se fizer não passará de simulacro, pois o que está morto não pode ressurgir. O sopro de uma revolução imensa passou sobre as nossas cabeças deitando por terra as nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecundando um mundo novo.

Estamos, no presente, atravessando a fase crítica que precede a toda renovação. O mundo progride. É em vão que homens políticos e os homens eclesiásticos imaginam, cada qual do seu lado, prosseguir na representação do passado, num proscénio em ruínas. Impossível impedir que o progresso nos conduza a todos para uma fé superior, que ainda não possuímos, mas para a qual já caminhamos. E essa fé não será outra que a convicção científica da existência de Deus; numa escalada à verdade pelo estudo da Criação.

É preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a si e aos outros (quantos neste caso se encontram!), para não ver e não ajuizar a nossa actualidade pensante. Foi por ter a superstição morto o culto religioso, que nós o menosprezámos e abandonámos. E foi porque as características do verdadeiro se nos revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um culto mais puro. E não foi senão por se haverem afirmado diante de nós os imperativos da justiça, que hoje reprovamos institutos bárbaros, tais como a guerra, que, ainda recentemente, recebia a homenagem dos homens. É, enfim, porque o pensamento rompeu os grilhões que o prendiam à gleba, que não mais admitimos, de boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer espécie de servilismo. Não obstante, há em tudo, e sempre, um progresso. Na incerteza, porém, em que ainda permanecemos, entre as perturbações que nos agitam, a maior parte dos homens, ao perceberem que as suas impressões e tendências esbarram fatalmente na inércia do passado, ou se afastam silenciosos se lhes sobra força e coragem de o fazerem, ou se deixam arrastar na corrente geral, pela atracção vigorosa da fortuna. É nas épocas críticas que as lutas se intensificam, intermitentes, sobre os eternos problemas cuja forma varia à feição dos tempos, a revestirem-se de um aspecto característico.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Introdução 2 de 4, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Diálogos de Kardec ~

A MINHA MISSÃO

(Em casa do Sr. C...; médium: Srta. Aline C. / 12 de junho de 1856)

Pergunta (à Verdade)* — Bom Espírito, eu desejara saber o que pensas da missão que alguns Espíritos me assinalaram. Diz-me, peço-te, se é uma prova para o meu amor-próprio. Tenho, como sabes, o maior desejo de contribuir para a propagação da verdade, mas, do papel de simples trabalhador ao de missionário em chefe, a distância é grande e não percebo o que possa justificar em mim graça tal, de preferência a tantos outros que possuem talento e qualidades de que não disponho.


Resposta — Confirmo o que te foi dito, mas recomendo-te muita discrição, se quiseres sair-te bem. Tomarás mais tarde conhecimento de coisas que te explicarão o que ora te surpreende. Não esqueças que podes triunfar, como podes fracassar. Neste último caso, outro te substituiria, porquanto os desígnios de Deus não assentam na cabeça de um homem. Nunca, pois, fales da tua missão; seria a maneira de a fazeres malograr-se. Ela somente pode justificar-se pela obra realizada e tu ainda nada fizeste. Se a cumprires, os homens saberão reconhecê-lo, cedo ou tarde, visto que pelos frutos é que se verifica a qualidade da árvore.

P. — Nenhum desejo tenho de me vangloriar de uma missão na qual com dificuldade acredito. Se estou destinado a servir de instrumento aos desígnios da Providência, que ela disponha de mim. Nesse caso, reclamo a tua assistência e a dos Bons Espíritos, no sentido de me ajudarem e ampararem na tarefa.

R. — A nossa assistência não te faltará, mas será inútil se, de teu lado, não fizeres o que for necessário. Tens o teu livre-arbítrio, do qual podes usar como o entenderes. Nenhum homem é constrangido a fazer coisa alguma.

P. — Que causas poderiam determinar o meu malogro? Seria a insuficiência das minhas capacidades?

R. — Não; mas, a missão dos reformadores é plena de escolhos e perigos. Previno-te de que é rude a tua, porquanto se trata de abalar e transformar o mundo inteiro. Não suponhas que te baste publicar um livro, dois livros, dez livros, para em seguida ficares tranquilamente em casa. Tens que expor a tua pessoa. Suscitarás contra ti ódios terríveis; inimigos encarniçados se conjurarão para tua perda; ver-te-ás a braços com a malevolência, com a calúnia, com a traição mesma dos que te parecerão os mais dedicados; as tuas melhores instruções serão desprezadas e falseadas; por mais de uma vez sucumbirás sob o peso da fadiga; numa palavra: terás de sustentar uma luta quase contínua, com sacrifício de teu repouso, da tua tranquilidade, da tua saúde e até da tua vida, pois, sem isso, viverias muito mais tempo. Ora bem! Não poucos recuam quando, em vez de uma estrada florida, só vêem sob os passos urzes, pedras agudas e serpentes. Para tais missões, não basta a inteligência. Faz-se mister, primeiramente, para agradar a Deus, humildade, modéstia e desinteresse, visto que Ele abate os orgulhosos, os presunçosos e os ambiciosos. Para lutar contra os homens, são indispensáveis coragem, perseverança e inabalável firmeza. Também são de necessidade prudência e tacto, a fim de conduzir as coisas de modo conveniente e não lhes comprometer o êxito com palavras ou medidas intempestivas. Exigem-se, por fim, devotamento, abnegação e disposição a todos os sacrifícios. Vês, assim, que a tua missão está subordinada a condições que dependem de ti.

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* Espírito de Verdade


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, A minha Primeira Iniciação no Espiritismo, A MINHA MISSÃO, 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O peregrino sobre o mar de névoa ~

O Desenvolvimento Científico

As teorias podem ser as mais brilhantes – como observou Bozzano –, mas não podem prevalecer contra a realidade dos factos. E Lombroso, que combatera tenazmente a volta às superstições, acabaria se penitenciando do seu erro nas páginas da revista Luce e Ombra, de Milão. Os frutos da tremenda batalha kardeciana começavam a modificar a mentalidade científica temerosa dos absurdos teológicos.

Kardec provara que as Ciências não deviam temer os fantasmas, mas enfrentá-los e explicá-los. Nenhuma autoridade era mais elevada, para ele, do que a realidade dos factos comprováveis pela experiência científica e objectiva das pesquisas. Os cientistas mais audaciosos aprenderam com ele a superar os condicionamentos do formalismo académico e enfrentar o mundo como ele é. Richet reconheceria, no Tratado de Metapsíquica, que Kardec jamais fizera uma afirmativa que não tivesse sido provada pelas pesquisas. O criador da Ciência actual e de sua metodologia eficiente e eficaz, queiram ou não os alérgicos ao futuro, na expressão recente de Remy Chauvin, foi precisamente Allan Kardec, o homem do século XIX que revelou, numa batalha sem tréguas, estes dois princípios fundamentais da nossa mundividência:

1) A realidade é una e indivisível, firmada na Unidade Pitagórica que se revela na multiplicidade da Década;

2) Tudo se encadeia no Universo, sem solução de continuidade. Os que tentam fragmentar essa unidade orgânica estão presos às falíveis condições do sensório humano.

No desenvolvimento actual das Ciências, muitas cabeças gregas e troianas formularão novas, fascinantes e complexas teorias, mas só prevalecerão as que forem sancionadas pelas profecias fatais de Cassandra. O fatalismo, no caso, não decorre da natureza trágica das previsões, mas da comprovação dos factos. A figura de Allan Kardec continua suspensa sobre o panorama científico actual como o orientador indispensável dos novos caminhos do conhecimento, na rota cósmica das constelações. Em recente congresso realizado em Moscovo, provocado pelas controvérsias sobre a descoberta do corpo bioplásmico do homem, Kardec foi considerado como um racionalista francês do século XIX que antecipou diversas conquistas da tecnologia moderna. Os nossos jornais noticiaram a realização desse congresso, mas os dados a respeito foram escassos. Pesava sobre ele a suspeição de atitudes que pudessem perturbar as relações entre a Ciência Soviética e os interesses básicos da ideologia fundamental do Estado. Na Roménia marxista a Parapsicologia mudou de nome, passando a chamar-se Psicotrónica, e isso com a finalidade declarada de aproximar das ciências paranormais os materialistas mais ferrenhos ou mais cautelosos, que não desejam ver-se envolvidos em complicações espíritas. Todos esses factos provam que a Ciência Admirável elaborada pelo bruxo parisiense continua a pesar nas preocupações e no desenvolvimento da Ciência actual, que avança inelutavelmente sobre o esquema científico de Kardec. Este é o facto mais significativo dos nossos dias, que os espíritas não podem ignorar. As próprias pesquisas da Astronáutica têm seguido – sem querer e sem saber – o esquema de Kardec na Société Parisien. Das comunicações mediúnicas de Mozart, Bernard Pallissy, Georges e outras entidades, na Société, referindo-se à Lua, a Marte e Júpiter, até ao envio de homens à Lua em sondas soviéticas e norte-americanas a Marte e Júpiter mostram que o mapa das incursões possíveis foi decalcado, de maneira inconsciente, mas evidente, no mapa kardeciano. Além disso, as próprias descrições desses corpos celestes, feitas pelos espíritos comunicantes em Paris, que Kardec considerou com reservas, têm geralmente coincidido com os dados actuais das pesquisas astronáuticas. No tocante à Lua há um problema referente à sua posição na órbita em torno da Terra. Mas Kardec acentuou, no seu tempo, com o apoio do famoso astrónomo Flammarion, que os dados espirituais davam a única teoria existente na época sobre o problema. O esquema kardeciano não foi feito intencionalmente. Resultou de comunicações espirituais espontâneas, que Kardec recebeu com reservas, acentuando que esse facto não se enquadrava nas pesquisas da Société e eram recebidos como curiosidades significativas, sujeitas a confrontos futuros no processo de desenvolvimento das Ciências.

Também nessa atitude se evidencia o critério científico de Kardec, interessado nos casos gratuitos, mas reservando a sua verificação real ao futuro. Aos que, na época, entusiasmados com essa possível revelação de problemas cósmicos, diziam a Kardec que as utopias de hoje se realizam no amanhã, Kardec respondia que deviam esperar a transformação das utopias em realidade para depois as aceitar. Os dados positivos, os factos, a realidade evidente e a lógica de clareza meridiana eram os elementos preferenciais do seu trabalho. As suas obras nos mostram a limpidez clássica do pensamento francês. Era o mestre por excelência. A didáctica ressalta em toda a sua obra. Charles Richet lhe censurou a aparente facilidade com que aceitava a realidade dos fenómenos mediúnicos e da vida após a morte, mas acabou reconhecendo que ele nunca fizera uma só afirmação que não estivesse respaldada pelas pesquisas. Não dispunha dos recursos actuais da pesquisa tecnológica, mas tocou a verdade com a ponta dos dedos, como Tomé. Tudo quanto afirmou no seu tempo permanece válido até hoje. A instabilidade das hipóteses e das teorias científicas não existiu para ele. Os cientistas actuais não conseguiram abalar o edifício das suas conclusões. Giram ainda hoje como borboletas nocturnas em torno da sua lâmpada e acabam queimando as asas no fogo da sua verdade mil vezes comprovada em todo o mundo.

Esse problema da comprovação é frequentemente levantado pelos contraditores da doutrina e até mesmo por adeptos pouco informados, que alegam a impossibilidade de repetição dos fenómenos para atender às exigências do método científico. Com esse velho chavão nas mãos, pensando haver descoberto a chave do mistério, declaram com ênfase que a Ciência Espírita não é ciência, mas apenas um apêndice espúrio da doutrina. Com isso agridem a competência de Kardec e de todos os grandes cientistas que, desde o século passado até ao presente, de Crookes a Rhine, submeteram os fenómenos às formas possíveis de repetição. Basta a leitura das anotações de Kardec em Obras Póstumas, o episódio do seu encontro com o fenómeno das mesas-girantes, para se ver a falácia dessa acusação. A impossibilidade de repetição dos fenómenos espíritas implicaria a impossibilidade da pesquisa. Todos os anos da pesquisa sistemática, minuciosa e exaustiva de Kardec, e os anos de pesquisa exemplar de Crookes, NotzingGibierOchorowiczAksakof, Myers, Geley e Osty, e assim por diante, são displicentemente atirados no baú das antiguidades estúpidas. Foi por essa e por outras que Richet escreveu o seu livro O Homem Estúpido. A repetição de experiências é medida corriqueira em qualquer pesquisa. Os que lançam mão dessa alegação para negar a existência da Ciência Espírita nos dão a prova gratuita da sua incapacidade para tratar do assunto.

Houve interrupção no desenvolvimento da Ciência Espírita, alegam outros. Depois de Kardec ninguém mais pesquisou e os espíritas se entregaram a rememorar os feitos do passado. Se tivéssemos feito isso, simplesmente isso, já teríamos mantido viva a tradição doutrinária, vigorosamente apoiada em séries infindáveis de pesquisas mundiais, realizadas por nomes exponenciais das Ciências. Mas a verdade é que não houve solução de continuidade na investigação, mas simples diversificação das experiências em várias áreas culturais, acompanhada de renovações metodológicas. A Ciência Espírita projectou-se em direcções diversas, desdobrou-se em outras coordenadas e deu nascimento a outras ciências. Atacada por todos os lados, por todas as forças culturais da época, a Ciência Espírita firmou-se nos seus princípios e multiplicou os seus meios de comunicação. A escassez do elemento humano interessado na busca da realidade pura não lhe permitiu a expansão necessária. O homem terreno continua ainda apegado aos interesses imediatistas e aos seus preconceitos, à sua vaidade sem razão e sem sentido. São poucas as pessoas de mente aberta e coração sensível, nesta humanidade egoísta e voraz. Esses elementos compreensivos e abnegados nem sempre dispõem de condições culturais suficientes para enfrentar a luta contra as fascinações do seu próprio passado e dos insufladores de ideias confusas e perturbadoras no meio espírita e nas áreas adjacentes. Mas tudo isso faz parte da lenta e difícil evolução humana. Estamos ainda nos arrancando dos instintos animais, dos mecanismos condicionados pelos milénios do passado genésico. O panorama actual do mundo nos dá a medida exacta do nosso atraso evolutivo. O contraste chocante entre os pesados lastros da barbárie e as aspirações renovadoras do futuro, geralmente desprovidos de recursos materiais para realizações concretas urgentes, revelam a densidade do nosso carma colectivo.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, O Desenvolvimento Científico 2 de 3, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

pensamento e vontade ~

As forças ideoplásticas

Nada mais importante para a pesquisa científica e a especulação filosófica do que a demonstração, apoiada em factos, da seguinte proposição: – pode um fenómeno psicológico transformar-se em fisiológico; o pensamento pode fotografar-se e concretizar-se em materialização plástica, tanto quanto criar um organismo vivo.

De outro modo falando, nada é tão importante para a Ciência e para Filosofia, como averiguar que a força do pensamento e a vontade são elementos plásticos e organizadores.

Efectivamente, a evidência de tal facto coloca o investigador diante de um ato criador, legítimo quão verdadeiro, que o leva, consequentemente, a identificar a individualidade humana, pensante, com a Potência primordial, que tem no Universo a sua realização.

Grandiosa concepção esta, do Supremo Ser, que me reservo para desenvolver, de forma mais criteriosa, oportunamente.

Antes de tudo, a propósito da questão aqui visada, importa advertir que a ideia de um pensamento e de uma vontade, substanciais e objectiváveis, não é nova.

Os filósofos alquimistas dos séculos XVI e XVII, Vanini, Agrippa, Van-Helmont, já atribuíam ao magnetismo emitido pela vontade o resultado de seus amuletos e encantamentos.

O desejo realiza-se na ideia – disse-o Van-Helmont –, ideia que não é vã, mas uma ideia-força, que realiza o encantamento.

Aí temos, pois, já formulada com três séculos de antecedência, a famosa teoria de Fouillée sobre as ideias-forças, e de maneira até mais completa, de vez que admitindo a objectivação.

Van-Helmont chegou mesmo a formular nitidamente a teoria das “formas-pensamento”, da ideoplastia, da força organizadora; ao demais, atribuindo-lhes existência efémera, porém, activa.

É assim que ele se expressa:

“O que denomino espírito do magnetismo não são espíritos que nos venham do céu e muito menos do inferno, mas provenientes de um princípio inerente à criatura humana, tal como a faísca que da pedra se desprende.

Graças à vontade, o organismo também pode desprender uma pequena parcela de espírito, que reveste forma determinada, transformando-se em “ser ideal”.

A partir desse momento, esse espírito vital se torna em coisa como que intermediária do ser corpóreo e dos seres incorpóreos. Assim é que pode locomover-se à vontade, não mais submisso às limitações de tempo e espaço.

Mas, não se veja em tudo isso a consequência de poderes demoníacos, quando apenas se trata de uma faculdade espiritual do homem, a ele estreitamente ligada.

Até aqui, hesitei no revelar ao mundo esse grande mistério, graças ao qual fica o homem sabendo que tem ao alcance da mão uma energia obediente à vontade, ligada ao seu potencial imaginativo, capaz de actuar exteriormente e influir sobre pessoas distantes, muito distantes mesmo.”

Convém insistir nesta circunstância, a saber: que as afirmativas de Van-Helmont a respeito das propriedades objectiváveis do pensamento e da vontade não eram meramente intuitivas, mas fundadas na observação de fenómenos incontestáveis, aos quais muitas vezes assistiam esses pioneiros do ocultismo, posto que maturados não fossem os tempos para interpretar devidamente o que empiricamente constatavam.

Também não é menos verdade que, entre os alquimistas de há três séculos, encontramos já devidamente formuladas as propriedades dinâmicas do pensamento e da vontade, propriedades que, em nossos dias, apenas começamos a estudar com métodos rigorosamente científicos.

Resta-me, agora, prevenir os meus leitores de que os materiais, por mim recolhidos a propósito, são tão abundantes que um grande volume se me imporia para desenvolver o assunto de modo completo.

Vejo-me, destarte, obrigado a apresentar um resumo substancial de cada uma das categorias em que se subdivide o tema.

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Ernesto BozzanoPensamento e Vontade – As forças ideoplásticas, 1 de 2, 1º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: A Female Saint_1941, pintura de Edgar Maxence)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

a pedra e o joio ~

Na hora do toque

O toque é a forma mais comum de verificação da verdade. Usa-se o toque na Medicina, na Agricultura, na joalharia – onde é tão conhecida a função da pedra de toque – e praticamente em todas as actividades humanas. Foi pelo toque dos dedos nas chagas que Tomé reconheceu a legitimidade da aparição de Jesus ressuscitado. No Espiritismo a pedra de toque é a obra de Kardec.

Mas porque essa obra e não outra? É bom que se deixe bem esclarecido esse porquê, pois há muitas pessoas que não entendem a razão disso e acham que se dá preferência a Allan Kardec por motivos emocionais e até por fanatismo. Vamos tentar esclarecer o assunto da maneira mais rápida e racional.

1º – A obra de Kardec não é pessoal, não é só dele. Era preciso alguém responder pela obra. O Professor Denizard Rivail, como se sabe, resolveu assumir essa responsabilidade e assinou-a com um pseudónimo: Allan Kardec, nome que havia possuído em encarnação anterior, quando sacerdote druida, entre os celtas. A obra é dos Espíritos Superiores da luminosa falange do Consolador ou Espírito de Verdade, que Jesus prometeu enviar à Terra quando os homens estivessem aptos para compreender a sua doutrina em essência. Por isso Kardec deu ao livro básico da doutrina o título de O Livro dos Espíritos e à própria doutrina o nome de Espiritismo. Por isso também os demais livros da Codificação trazem como subtítulo esta expressão: Segundo o Espiritismo, ou seja, de acordo com a Doutrina dos Espíritos.

A doutrina, portanto, não é de Kardec, mas dos Espíritos Superiores que a revelaram a Kardec. Não obstante, Kardec fez a sua parte, quer através das perguntas que fazia aos Espíritos, quer através dos comentários explicativos que escreveu em todos esses livros. Esses comentários foram sempre submetidos por Kardec ao exame dos Espíritos, que os aprovavam ou emendavam. Kardec submetia tudo ao exame da razão, realizando um trabalho de cerca de quinze anos, sempre assistido pelos Espíritos Superiores dirigidos pelo Espírito de Verdade.

2º – Desde 1857, quando foi publicado O Livro dos Espíritos, até hoje, nenhum dos princípios do Espiritismo foi desmentido pela Ciência ou pela Filosofia. Pelo contrário, todos eles têm sido sistematicamente confirmados por ambas. Quanto à Religião, nunca teve condições para contradizer o Espiritismo de maneira positiva, tentando sempre fazê-lo de maneira autoritária ou dogmática, sempre no interesse particular dos princípios de cada seita.

Hoje o avanço das Ciências e da Filosofia confirma de maneira inegável e impressionante a legitimidade da Doutrina Espírita. As descobertas mais recentes da Parapsicologia, da Física e da Biologia nada mais fazem do que comprovar a verdade dos princípios espíritas, sem que os investigadores tivessem essa intenção. Até mesmo quando pensam haver negado o Espiritismo, os investigadores, sem o saber, o estão comprovando. Isso prova a solidez da obra de Kardec.

3º – A Bíblia, livro religioso dos judeus, anunciou a vinda de Jesus. Os Evangelhos, que formam o livro religioso do Cristianismo, anunciaram a vinda do Espírito de Verdade. Os Espíritos Superiores que hoje se manifestam são unânimes em afirmar que Kardec foi o discípulo de Jesus enviado à Terra para realizar a codificação do Espiritismo, doutrina que representa a continuação histórica do Cristianismo e restabelece os ensinos de Cristo em espírito e verdade.

As reformas religiosas por que passam hoje as Igrejas estão-se processando de acordo com a orientação dada pelos princípios espíritas. As próprias pesquisas da Astronáutica, a ciência mais audaciosa do nosso tempo, estão confirmando o que os Espíritos disseram a Kardec sobre os mundos do Espaço, a infinitude do Universo, a inexistência do vácuo, a variedade infinita das formas da matéria e assim por diante.

4º – Quanto mais avança o conhecimento, mais se vão descobrindo as relações da obra de Allan Kardec com as alegorias e simbologias religiosas da chamada Sabedoria Antiga, das mais velhas religiões da Índia, da China, do Egipto, da Babilónia e assim por diante. Com tudo isso, o Espiritismo se confirma dia a dia como a doutrina do futuro. Ainda há pouco os jornais e revistas do mundo inteiro noticiaram que os cientistas soviéticos, os mais materialistas do mundo, se viram obrigados a discutir a obra de Kardec num grande simpósio científico realizado na Rússia, e isso em virtude das recentes descobertas realizadas por eles na investigação da Física e da Biologia, com referência à antimatéria e ao corpo energético do homem, ou corpo bioplasmático, que na verdade confirma a teoria do perispírito ou corpo semimaterial do homem, que é um dos princípios fundamentais do Espiritismo. Nenhuma outra doutrina, em todo o mundo, tem recebido tão ampla e decisiva confirmação das pesquisas científicas modernas.

5º – No campo da Filosofia passa-se a mesma coisa. A corrente filosófica que caracteriza o nosso século, a das chamadas Filosofias da Existência, não obstante as suas diversas ramificações, confirma no geral a teoria espírita da natureza transcendente do homem. E por outro lado seguem o caminho do Espiritismo no estudo e na investigação da natureza humana, partindo do homem na existência para chegar à compreensão progressiva dessa natureza. Tudo converge, no pensamento actual, para a comprovação da legitimidade da obra de Allan Kardec.

Diante desse panorama positivo, qualquer obra que pretenda superar Allan Kardec ou subestimar a Doutrina Espírita precisa ser submetida à prova do toque. E essa prova só pode ser feita de duas maneiras: de um lado, conferindo-se a pretensa superação com a obra de Kardec para verificar qual das duas está mais coerente e apresenta maior coesão, maior unidade e firmeza nos seus princípios; de outro lado, conferindo-se, como recomenda o próprio Kardec, os princípios da pretensa superação com as exigências do pensamento actual em todos os campos da nossa actividade mental.

A obra de Kardec tornou-se, após um século de sua negação e rejeição pelos adversários, a pedra de toque da legitimidade das novas obras e novas teorias que vão surgindo no mundo. É por isso que essa obra – a obra de Kardec – nos oferece os elementos necessários a uma crítica válida e a uma apreciação verdadeira das novas doutrinas que pretendem modificá-la ou superá-la. Se alguém nos apresentar outra obra em melhores condições do que essa, para servir de pedra de toque, estaremos prontos a trocar a pedra. Mas enquanto a obra de Kardec continuar nessa posição, não temos razão para substituí-la.

Convém lembrar ainda este ponto importante: a falência total ou parcial da obra de Kardec representará a falência total ou parcial dos Espíritos Superiores, particularmente do Espírito de Verdade, e consequentemente a falência dos ensinos de Cristo.

Isso não quer dizer que o Espiritismo seja uma doutrina cristalizada, incapaz de evoluir e se desenvolver. Quer dizer apenas que o Espiritismo realizou o toque da verdade na cultura humana, tocou nos pontos essenciais da comprovação da realidade universal pelo homem. Os seus princípios fundamentais são realmente inabaláveis, mas estão sujeitos a desenvolvimentos que se darão de acordo com a evolução do homem, que progride sem cessar e aumenta constantemente a sua capacidade de compreender melhor a natureza humana, o mundo e a vida.

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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, Na hora do toque, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Espiritismo na Arte ~

Parte I

(Objectivo da arte. Objectivo da evolução. Necessidade das vidas sucessivas. Apresentação de o Esteta)

Dissemos que o objectivo essencial da arte é a procura e a realização da beleza; é, ao mesmo tempo, a procura de Deus, pois que Deus é a fonte primeira e a realização perfeita da beleza física e moral.

Quanto mais a inteligência se apura, se aperfeiçoa e se eleva, mais se impregna da ideia do belo.

O objectivo essencial da evolução, portanto, será a procura e a conquista da beleza, a fim de realizá-la no ser e nas suas obras. Tal é a norma da alma na sua ascensão infinita.

Nisso já se impõe a necessidade das vidas sucessivas como meio de adquirir, por esforços contínuos e graduados, um sentido sempre mais preciso do bem e do belo. Os inícios são modestos aqui na Terra, a alma se prepara primeiro nas tarefas humildes, obscuras, apagadas, depois, pouco a pouco, por novas etapas, o espírito adquire a dignidade de artista. Mais elevado ainda, ele se abrirá às concepções vastas e profundas, que são o privilégio do génio, e se tornará capaz de realizar a lei suprema da beleza ideal.

Na Terra, os artistas não se inspiram todos nesse ideal superior. A maior parte limita-se a imitar o que eles chamam “a natureza”, sem perceber que ela não é mais que um dos aspectos da obra divina. No espaço, porém, a arte reveste formas ao mesmo tempo mais subtis e mais grandiosas e se ilumina com um reflexo divino.

Eis por que, neste estudo, tivemos que consultar principalmente os nossos espíritos-guias, recolher e resumir os seus ensinamentos. No âmbito em que vivem, as fontes de inspiração são mais abundantes, o campo de acção se alarga; o pensamento, a vontade, o poder supremo se afirmam e irradiam com mais intensidade.

Os nossos protectores invisíveis nos enviaram primeiro o Espírito Massenet*, que veio nos ditar cinco lições sobre a música celeste, procedendo como o fazia na Terra, nos seus cursos do Conservatório. Mas isso não podia ser suficiente para nós; precisávamos de dados mais gerais, de uma visão global sobre a forma como a arte é sentida e praticada no Além.

Observa-se muitas vezes, nas obras inspiradas por espíritos, principalmente nos livros anglo-saxões, a descrição de lugares, de monumentos, de moradas criadas com a ajuda de fluidos, pela vontade dos habitantes do espaço. Temos necessidade de esclarecimentos sobre esse assunto tão controverso e sobre o qual, até hoje, faltaram indicações preciosas.

De acordo com nossos pedidos reiterados, e a fim de nos ensinarem, os guias nos anunciaram uma entidade que se apresenta sob este nome: o Esteta, cuja personalidade verdadeira só nos será revelada ao final deste estudo. Imediatamente tivemos a impressão de que nos encontrávamos na presença de um espírito de alto valor.

O fenómeno produziu-se sob a forma de incorporação. Desde o momento em que a entidade toma posse do médium em transe, os traços deste, que é um rapaz cego, tomam uma expressão de calma, de serenidade quase angélica e, que contrasta com a maneira de ser dos outros espíritos. A palavra é suave, penetrante, e, quando a sessão termina, os assistentes se encontram sob uma impressão de serena paz, de profunda quietude. O médium, ao despertar, ignora completamente o que foi dito por sua boca durante o transe e declara encontrar-se como mergulhado num “banho de radiações”. Ele experimenta uma sensação de bem-estar inexprimível.

O Esteta tomou a arquitectura como tema das duas primeiras lições estenografadas, que reproduzimos mais adiante. Escolheu como modelo a catedral, porque ela serve de moldura a todas as outras artes. Mais tarde ele nos falará de escultura, de pintura, de eloquência e, por fim, o estudo da música e as lições de Massenet virão completar esta exposição.

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Massenet (Jules): compositor francês (Montaud, Saint-Étienne, 1842 – Paris, 1912). A sua arte encantadora, sensível, possuía o dom da invenção melódica e o senso real do teatro. Autor de Manon, Herodíade, Taís, Werther, O Jogral de Notre-Dame, Dom Quichote, etc. (N.T., segundo o Dicionário Koogan Larousse.)


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I – Objectivo da arte, Objectivo da evolução, Necessidade das vidas sucessivas, Apresentação de o Esteta. 2º Fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sábado, 21 de dezembro de 2013

Nas garras do pensamento crítico ~

Posição do materialismo dialéctico

Não resta dúvida que o materialismo dialéctico é o mais avançado passo da filosofia materialista, graças ao aproveitamento da tríade básica da mais antiga filosofia espiritualista, que podemos encontrar desde o taoísmo chinês ao druidismo gaulês, do antigo bramanismo à filosofia jónica, de Sócrates e Platão ao Evangelho de Cristo.

Diante da sua concepção do mundo e do seu método de análise histórica, o materialismo fixista do século XVIII e o próprio mecanicismo parecem conjecturas infantis. Na Dialéctica da NaturezaEngels observa, a propósito: “A ciência natural da primeira metade do século XVIII estava muito acima da antiguidade grega no tocante ao conhecimento e à classificação dos materiais, mas ao mesmo tempo abaixo dela, no domínio ideal desse material, na concepção da natureza.”

O mesmo podemos hoje dizer, no tocante à posição do materialismo dialéctico em face à filosofia idealista alemã do século XVIII, e particularmente à escola hegeliana. Repete-se, nesse caso, o que se verificara com Feuerbach diante de Hegel, no terreno da análise das relações sociais. A dialéctica marxista se nos apresenta, por isso mesmo, como um pássaro de asa quebrada, que, apesar de bater com energia a asa que lhe sobrou intacta, não consegue elevar-se além da poeira da terra. Falta-lhe a visão tão-somente de metade da realidade objectiva, dessa realidade que ele tanto defende e a que tanto se apega. Marx e Engels preferiram ignorar essa metade, que Hegel lhes oferecera, com os seus olhos de condor, para se reduzirem à miopia de Feuerbach. E cometeram assim o maior equívoco da moderna história da filosofia; tomando, como o fizera Proudhon, a exclusão pela síntese.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – Posição do materialismo dialéctico, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Victor Hugo Espírita ~

A visão filosófica e religiosa de Victor Hugo

O grande poeta francês, Victor Hugo, sobre quem desejamos esboçar modestamente partes de seu pensamento filosófico e religioso, sustentou notáveis pontos de vista, que expressou em linguagem poética profunda. Poder-se-ia dizer que no seu livro Deus, Literatura e Filosofia manifestou as bases de um que-fazer filosófico e religioso. O poeta ouvia vozes que o instruíam sobre "coisas prodigiosas e surpreendentes". Essas vozes lhe falaram sobre o sentido da vida e as angústias do homem para encontrar o Ser Supremo como embasamento de tudo o que existia. Essas vozes, porém, apenas o fizeram compreender que o homem é um insecto que destrói as suas asas ao chocar-se contra "vidros coloridos"; assim exclamou: "Como! Tudo acabará no nada supremo! Todos os esforços do génio e do pensamento humano se perderão, inúteis, no vazio!"

Por esse estado espiritual de Victor Hugo se chegou a compreender que toda a sua obra não foi mais que uma reacção filosófica e religiosa contra o niilismo do ser. Como Miguel de Unamuno, escreveu buscando as bases da existência em Deus. Sentia, de facto, que sem uma Causa Suprema presidindo o desenvolvimento do universo toda a obra humana careceria de significação moral. Victor Hugo, guiado pelo seu daimon poético, procurou cansativamente o sentido da vida e da história. A sua poesia foi uma afirmação - repetimos do homem e da verdade, - aquela que brotava de sua alma clara e sonora por causa das suas profundas convicções espirituaisPois bem, ao enfrentar-se com o problema religioso, fê-lo primeiro com o ateísmo que viu simbolizado num morcego. Porém, o nada ressoou em seu ser como uma realidade; lutou contra ela com decisão espiritual, pois pressentia na sua intimidade existencial outro destino para o homem. Não aceitava que Jeová, Cristo, Alá fossem "um sombrio monte de aparências loucas".

Considerou o cepticismo como o pássaro-da-morte, que lutou contra o seu espírito com duras expressões. Por isto, perguntou o poeta: "Estarei sozinho no infinito horroroso?" E ajuntou: "Existo eu mesmo?". Indubitavelmente, o cepticismo não abateu o seu ânimo, porque sentia constantemente em seu interior as vozes de fé e esperança. O seu alterego não se resignava à ideia do não-ser; toda a sua energia moral se voltou para a defesa do espírito. O poeta acreditava que a vida e o homem seriam duas realidades alimentadas por uma única essência espiritual.

Victor Hugo prosseguiu estudando o paganismo, vendo-o representado num abutre. Uma voz sempre empenhada em difundir a negação do Ser se dirigiu ao poeta para dizer-lhe: "Enquanto homem, que és? Nada. Já o tenho dito a ti. Obra do barro perdido por Júpiter, não existindo sob o céu escuro de onde cai a sentença, lei ou liberdade, direito ou resistência, não és mais do que o joguete dos monstros". A voz falou-lhe de uma certa claridade, mas quando Victor Hugo lhe perguntou onde se encontrava o abutre do paganismo, desapareceu sem responder.

A águia representou o mosaísmo e narrou dramas e enigmas terrenos; agora, porém a voz mencionou a existência de um Deus único. Quer dizer, surgiu daquele ser alado uma voz menos sombria que as anteriores. Daquela águia emanava uma pequena claridade que lhe permitia ver os caminhos escuros da montanha. Enquanto o abismo estremecia, o poeta escutou uma mensagem diferente. Percebeu que o ser não está mais sozinho na sua aventura existencial. Por isso, disse-lhe a voz: "Sim, Deus fez o todo! Os céus, os montes, os animais, vossos ruídos e as sombras que projectais. E a partir desse momento o homem é uma criação divina, um fragmento de vida que pode progredir com uma tocha nas mãos".

Mais tarde, aparece o grifo dizendo-lhe que a águia dorme e apenas ele pode ser elevado ao alto por Deus. O poeta percebeu que ele falava do Cristianismo, afirmando: "O homem é a alma; o homem leva em si um raio de luz: a matéria sozinha é a condenação". Foi assim que o caos se transformou em harmonia e o azar em finalidade. Nesta visão de Victor Hugo, o Ser se apresenta com um sentido transcendente. O Cristianismo se sobrepõe às negações anteriores, àquelas vozes que falavam somente do nada e da morte. O grifo ampliou logo o seu pensamento e disse: "Águia, Cristo sabe mais que Moisés. Moisés possuía apenas os raios, e Cristo tinha os cravos. Não, Deus não é ciumento! Não, Deus não dorme, arrastando toda a criação! O homem não morre de todo!"

O surgimento do Cristianismo teve a virtude de materializar um anjo, que representava o racionalismo. Ao ver o poeta, o anjo expressou os conceitos que lhe deram as bases para uma nova filosofia do homem. Eis alguns dos seus pensamentos:

"Todos os seres são, foram e serão."

"Que haja cinza no coração que leva lama à frente, todo o ser é imortal como essência e conquista o que se lhe deve pela lei que o governa. O facto de ser pequeno, imperceptível, não é motivo para não ter porvir; nada padece em vão"

"Tudo vive. A criação esconde os renascimentos".

"Chama de Deus, a alma existe em todas as coisas. O mundo é um conjunto em que nada está só! Todo  o corpo esconde um espírito! Toda a carne é uma mortalha e para ver a alma é preciso compreender o sudário."

"Todo o ser, qualquer que seja, do astro ao estrume, do estúpido ao profeta é um espírito arrastando uma forma final."

(1) – Do livro Deus, Literatura e Filosofia.

Foi assim que surgiu a luz para o poeta, ou seja, "o que todavia não tem nome". Um novo esquema do Ser e do universo dão-lhe as bases para uma visão renovada, filosófica e religiosa, do Cristianismo. Era uma "luz com duas asas brancas", cuja claridade lhe disse: "Quem quer que sejas, escuta: Deus existe". Foi assim que Victor Hugo encontrou Deus enfim; não obstante, perguntou: "Quem és? "e em seguida respondeu ele mesmo: "Renuncio sabê-lo. A pergunta é a sombra, o mundo a resposta. Deus existe". E ajuntou: "O ser é uma família na qual o homem é o irmão maior. Alma mais elevada, deve nos seus combates derramar o seu azul sobre as plantas em baixo. O homem, apesar de seu ódio e de sua clemência é o princípio da luz imensa. A igualdade na sombra esboça a unidade. A unidade é o término do caminho da luz ".

Apesar do caos que o seu génio viu em tudo, não vacilou em dizer: "Alma! Ser, tu és amor. Deus existe". O caos que via transformou-se por mutações progressivas em ordem e harmonia. Por isso, insistiu em lutar contra a morte e o nada do Ser, vertendo "todo o seu azul" poético e filosófico sobre a terra, confiando nos fundamentos morais do universo. Daí, afirmou o poeta: "A matéria nada é. Apenas a alma existe."

Pois bem, nem Max Scheler nem Rudolf Otto nem outros filósofos parecidos, tampouco pensadores cristãos como Soren KierkegaardKar BarthJacques Maritain conseguiram perceber esse Além como um sustentáculo do mundo visível. Victor Hugo penetrou no chamado mistério do Ser poeticamente como o fizeram misticamente Santa Tereza de Jesus, São João da Cruz e outros místicos do Oriente e do Ocidente. A sua visão filosófica e religiosa coincidiu com a Eterna Verdade expressa através do processo histórico da humanidade. Pois a unidade espiritual eleva o conhecimento à região dos iguais, a esse nível onde o particular se esfuma e os reflexos do duvidoso e incerto desaparecem.

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, A visão filosófica e religiosa de Victor Hugo, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Young Girl with a Doll, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)