Introdução (II)
Nenhuma poesia humana se nos figurou comparável à verdade
natural, e o Verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas
obras da Natureza, do que o pudera fazer o homem com os seus cantos mais
pomposos.
Seja qual for a oportunidade dos estudos que este trabalho objectiva, não
esperamos agradar a toda a gente, certo de haver muitos incapazes de acordar do
seu sono e outros tantos a quem longe estamos de lhes corresponder aos
pendores.
Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação
é merecida. Onde estão, com efeito, os corações palpitantes de puro amor à
verdade? Em que alma – perguntamos – ainda reina a fé? Não diremos, já,
a fé cristã, mas uma crença sincera, seja no que for. Aonde se vão os
tempos em que as forças da Natureza, divinizadas, recebiam homenagens
universais?
Tempos nos quais o homem, contemplativo e
deslumbrado, saudava com fervor a potência eterna e manifesta na Criação?
Que é feito daqueles tempos em que os homens eram capazes de
derramar o sangue por um princípio, quando as repúblicas tinham à sua
testa um ideal e não uma ambição?
Quem se lembra dos tempos em que o génio de um povo,
esculpido em Notre Dame ou em São Pedro de Roma, se ajoelhava e pedia,
aconchegado aos seus muros de pedra?
Que é feito da virtude patriótica dos nossos antepassados
abrindo as portas do Panteão para acolher as cinzas dos heróis do pensamento, e
relegando à noite do esquecimento a falsa glória da ociosidade e das almas?
Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza de
suportar um tal aviltamento: saturados de egoísmo, a nossa alma não
alimenta outra ambição que a do interesse pessoal. Riqueza cuja origem
permanece equívoca, louros surpreendidos, antes que conquistados, uma doce
quietação, uma profunda indiferença pelos princípios, quem não verá nisso o
nosso galardão?
À parte, contudo, fora do mundanismo empolgante e rumoroso,
vivem os que não se conformam em baixar a fronte diante da hipocrisia. Esses
trabalham na solidão e esquadrinham em silenciosa meditação os abismos da
Filosofia e, se se mantêm fortes, é porque não se atrofiam ao contacto
das sombras. Na verdade, é um contraste penoso de assinalar, quando vemos
que o progresso magnífico, sem precedentes, das ciências positivas, que a
conquista sucessiva do homem sobre a Natureza, ao mesmo tempo em que tão alto nos
elevaram a inteligência, deixaram resvalar o sentimento a níveis tão
baixos. Doloroso sentir que, enquanto por um lado a inteligência mais
demonstra a sua capacidade, extingue-se por outro lado o sentimento, e a vida
íntima da alma mais se embota na geena da carne.
A causa da nossa decadência social (passageira, já que a
História não pode mentir a si mesma) deve-se à nossa falta de fé. A primeira
hora deste nosso século marcou o derradeiro alento da religião de nossos pais.
Baldos serão quaisquer esforços de restauração e reconstrução. Tudo o que se
fizer não passará de simulacro, pois o que está morto não pode ressurgir. O
sopro de uma revolução imensa passou sobre as nossas cabeças deitando por terra
as nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecundando um mundo novo.
Estamos, no presente, atravessando a fase crítica que
precede a toda renovação. O mundo progride. É em vão que homens políticos e os
homens eclesiásticos imaginam, cada qual do seu lado, prosseguir na
representação do passado, num proscénio em ruínas. Impossível impedir que o
progresso nos conduza a todos para uma fé superior, que ainda não possuímos,
mas para a qual já caminhamos. E essa fé não será outra que a convicção
científica da existência de Deus; numa escalada à verdade pelo estudo da
Criação.
É preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a si e aos
outros (quantos neste caso se encontram!), para não ver e não ajuizar a nossa
actualidade pensante. Foi por ter a superstição morto o culto religioso, que
nós o menosprezámos e abandonámos. E foi porque as características do
verdadeiro se nos revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um
culto mais puro. E não foi senão por se haverem afirmado diante de nós os
imperativos da justiça, que hoje reprovamos institutos bárbaros, tais como a
guerra, que, ainda recentemente, recebia a homenagem dos homens. É, enfim,
porque o pensamento rompeu os grilhões que o prendiam à gleba, que não mais
admitimos, de boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer
espécie de servilismo. Não obstante, há em tudo, e sempre, um progresso. Na
incerteza, porém, em que ainda permanecemos, entre as perturbações que nos
agitam, a maior parte dos homens, ao perceberem que as suas impressões e
tendências esbarram fatalmente na inércia do passado, ou se afastam silenciosos
se lhes sobra força e coragem de o fazerem, ou se deixam arrastar na corrente
geral, pela atracção vigorosa da fortuna. É nas épocas críticas que as lutas se
intensificam, intermitentes, sobre os eternos problemas cuja forma varia à
feição dos tempos, a revestirem-se de um aspecto característico.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Introdução 2 de 4, 2º fragmento da obra.
(imagem de
ilustração: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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