Introdução
Destina-se esta obra a representar o estado actual dos
nossos conhecimentos precisos, sobre a Natureza e o homem. A exposição dos
últimos resultados a que atingiu a inteligência humana no estudo da Criação é, em nosso ver, a verdadeira base sobre a qual se há de fundar doravante toda a
convicção filosófica e religiosa. Em nome das leis da razão, tão solidamente
justificadas pelo progresso contemporâneo e por força dos inelutáveis
princípios constituintes da lógica e do método, pareceu-nos que só através das
ciências positivas deveriamos prosseguir na pesquisa da verdade.
Se temos, de facto, a ambição de chegar pessoalmente à
solução do maior dos problemas; se estamos sôfregos de atingir, por nós mesmos,
uma crença na qual encontremos repouso e pábulo de vida; se nos anima, ao demais,
o legítimo desejo de transmitir ao próximo a consolação que já encontrámos; –
não temamos nunca afirmá-lo ser na ciência experimental que devemos procurar os
elementos de cognição, só com ela devendo marchar.
O cepticismo e a dúvida universal imperam no âmago de nossa
alma e o nosso olhar escrutador, que nenhuma ilusão fascina, vigila na cripta
dos nossos pensamentos. Não nos despraz que assim seja. Não lastimemos que Deus
não nos houvesse tudo revelado ao criar-nos, dando-nos contudo o direito de o
discutir. Essa prerrogativa do nosso ser é óptima em si mesma, como
condição maior de progresso. Mas, se o cepticismo nos atalaia vigilante, também
a necessidade de crença nos atrai.
Podemos duvidar, certo, sem por isso nos isentarmos do
insaciável desejo de conhecer e saber. Uma crença torna-se-nos imprescindível.
Os espíritos que se vangloriam de não a possuírem são os mais ameaçados de cair
na superstição ou de anular-se na indiferença. O homem tem, por natureza,
uma necessidade tão imperiosa de firmar-se numa convicção –, particularmente
quanto à existência de um coordenador do mundo e da destinação dos seres – que,
quando não encontra uma fé satisfatória, experimenta a necessidade de se
demonstrar a si mesmo que esse Deus não existe e busca, então, repousar o
espírito no ateísmo e no niilismo.
Diga-se, também, já não ser a questão que ora nos apaixona,
a de sabermos qual a forma do Criador, o carácter da mediação, a influência da
graça, nem discutir, tampouco, o valor de argumentos teológicos. A verdadeira
questão é saber se Deus existe ou não. Note-se que, em geral, a negativa é
patrocinada pelos experimentalistas da ciência positiva, enquanto a afirmativa
se ampara nos indivíduos estranhos ao movimento científico.
Qualquer observador atento pode, ao presente, apreciar no
mundo pensante duas tendências diametralmente opostas.
De um lado, químicos ocupados em tratar e triturar, nos seus
laboratórios, os factos materiais da ciência moderna, por lhes extrair a
essência e quinta-essência, a declararem que a presença de Deus jamais se
manifesta nas suas manipulações.
Doutro lado, teólogos acocorados entre poeirentos
manuscritos de bibliotecas góticas compulsando, folheando, interrogando,
traduzindo, compilando, citando e recitando versículos dogmáticos, e
declarando, com o anjo Rafael, que da pupila esquerda à pupila direita do
Padre-Eterno medeiam trinta mil léguas de um milhão de varas, cada qual
equivalente a quatro e meia vezes o comprimento da mão.
Queremos crer que de ambos os lados haja boa fé, que os
segundos, como os primeiros, estejam animados do propósito de conhecer a
verdade. Pretendem os primeiros representar a Filosofia do século XX, enquanto
os segundos guardam, respeitosos, a do século XV. Os primeiros, passam por Deus
sem O ver, como o aeronauta que sulca o espaço celeste, enquanto os segundos
focalizam um prisma que retrai a imagem, colorindo-a.
O observador imparcial e independente que procura
explicar-lhes A suas tendências contrárias, admira-se de os ver obstinados no
seu sistema particular e pergunta a si mesmo se será verdadeiramente impossível
interrogar, de um modo directo, este vasto Universo e chegar a ver Deus na
Natureza.
Por nós, isentos de qualquer sectarismo, sentimo-nos à
vontade em equacionar o problema. Diante do panorama da vida terrestre; no
âmbito da Natureza radiosa à luz do Sol, beirando mares bravios ou fontes
murmuras; entre paisagens de Outono ou florações de Abril; tanto quanto no
silêncio das noites estreladas, temos procurado Deus. A Natureza,
interpretada com a Ciência, foi quem no-lo demonstrou num carácter
particular. De facto, Ele está nela, visível, como a força íntima de
todas as coisas. Temos considerado na Natureza as relações harmónicas
que constituem a beleza real do mundo e, na estética das coisas, encontramos a
manifestação gloriosa do pensamento supremo.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza – Introdução 1 de 5, 1º
fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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