Se estudarmos todas as paixões e até todos os vícios,
verificaremos que têm a sua origem no instinto de conservação. Este instinto
está em toda a sua força nos animais e nos seres primitivos que se aproximam
mais da animalidade; aí domina sozinho, porque neles não existe ainda
como contrapeso o sentido moral; o ser ainda não nasceu para a vida
intelectual. Pelo contrário, o instinto enfraquece à medida que a inteligência
se desenvolve, porque esta domina a matéria.
O destino do Espírito é a vida espiritual; mas, nas
primeiras fases da sua existência corporal, existem unicamente necessidades
materiais a satisfazer e, com este fim, o exercício das paixões é uma
necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente
falando. Mas saído deste período, tem outras necessidades, primeiro
semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o
Espírito domina a matéria; se lhe sacode o jugo, avança na sua via providencial
e aproxima-se do seu destino final. Se, pelo contrário, se deixa dominar por
ela, fica para trás, assemelhando-se à besta. Nesta situação, o que
outrora era um bem, porque era uma necessidade da natureza, torna-se um mal,
não só por não ser uma necessidade, mas porque isso se torna prejudicial à
espiritualização do ser. Assim como o que é qualidade na criança passa a
ser defeito no adulto. O mal é deste modo relativo e a responsabilidade
proporcional ao grau de evolução.
Todas as paixões têm portanto a sua utilidade providencial; sem
isso, Deus teria feito qualquer coisa de inútil e prejudicial. É o abuso que
constitui o mal e o homem abusa devido ao seu livre-arbítrio. Mais tarde,
esclarecido pelo seu próprio interesse, escolhe livremente o bem e o mal.
O instinto e a inteligência
Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde
acaba um e começa o outro? O instinto é uma inteligência rudimentar ou uma
faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria?
O instinto é a força oculta que instiga os seres orgânicos a actos espontâneos
e involuntários para a sua conservação. Nos actos instintivos não há nem
reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar,
se volta para a luz, orienta as suas raízes para a água e para a Terra
alimentadora; que a flor se abre e se fecha alternadamente consoante a
necessidade; que as plantas trepadoras se enrolam à volta do suporte ou se
agarram com as suas gavinhas. É por instinto que os animais são prevenidos
quanto ao que lhes é útil ou prejudicial; que se dirigem consoante as estações
para climas propícios; que constroem, sem ligações prévias, com mais ou menos
arte, consoante as espécies, ninhos macios e abrigos para a sua progenitura,
dispositivos para apanharem em armadilhas as presas com que se alimentam; que
manobram com perícia as armas ofensivas ou defensivas com que estão dotados;
que os sexos se aproximam; que a mãe mima os seus meninos e estes procuram o
seio da mãe. No homem, o instinto domina exclusivamente no início da vida; é
por instinto que a criança chora para exprimir as suas necessidades, que toma
os alimentos, que tenta falar e andar. Mesmo no adulto, alguns actos são
instintivos: são assim os movimentos espontâneos para evitar um risco, para se
afastar de um perigo, para manter o equilíbrio; são também assim o fechar das
pálpebras para suavizar o clarão da luz, a abertura maquinal da boca para
respirar, etc.
A inteligência revela-se por actos voluntários,
reflectidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das
circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.
Qualquer acto maquinal é instintivo; o que revela reflexão, combinação, uma
deliberação, é inteligente; um é livre, o outro não o é.
O instinto é um guia seguro que nunca engana; já a inteligência, pelo facto de
ser livre, está por vezes sujeito ao erro.
Se o acto instintivo não tem o carácter do acto inteligente, revela pelo
menos uma causa inteligente essencialmente previdente. Se admitirmos
que o instinto tem a sua origem na matéria, teremos de admitir que a
matéria é inteligente, mesmo mais seguramente inteligente e previdente do que a
alma, dado que o instinto não se engana, enquanto a inteligência se engana.
Se consideramos o instinto como uma inteligência rudimentar, como é que, em
certos casos, é superior à inteligência reflectida? Que lhe permite fazer
coisas que a inteligência não pode produzir?
Se é atributo de um princípio espiritual especial, que acontece a esse princípio?
Dado que o instinto se apaga, esse princípio seria então anulado? Se os animais
só são dotados de instinto, o seu futuro não tem portanto saída; os seus
sofrimentos não têm qualquer compreensão. Não estaria conforme com a
justiça nem com a bondade de Deus (Capítulo II, n.º 19).
/...
ALLAN KARDEC in A GÉNESE, Os Milagres e as Profecias Segundo o
Espiritismo – Capítulo III, O BEM E O MAL, Fonte do bem e do mal, números
de 10 a 12, fragmento. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores
Livros de Vida.
(imagem de
ilustração: A juventude de Baco_1884, pintura de William-Adolphe
Bouguereau)
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