O DUQUE DI BICCI DI M. (II)
Notificado do agravamento da enfermidade do tio,
que resultara do funesto acontecimento, chegara dias antes, aparentando o
desejo de ser útil, planeando, todavia inteirar-se de todas as ocorrências a
fim de levar a cabo a maldita trama que lhe inquietava a mente desde o
falecimento de Dona Ângela. Desse modo, através da perspicácia de que era
capaz, e pelo suborno, conquistou os servos e o notário da cidade, graças à
impossibilidade de lucidez do Senhor di Bicci, assumindo responsabilidades e
tomando providências com zelo falso, simulando o interesse de que o seu
protector recebesse todas as homenagens de que se fazia credor na última
jornada, agora encerrada com a desencarnação.
O clã, que em anos idos restabelecera a grandeza da Toscana,
principalmente em Florença, Siena e Pisa, sob as últimas vicissitudes
governamentais caíra em desprestígio, desaparecendo quase, paulatinamente. O
próprio Senhor di Bicci possuía somente como herdeiros directos os filhos e,
depois destes, Girólamo, a quem adoptara anos antes. A imensa herdade, no
entanto, representava poderosa fortuna e o tesouro da família somava expressivo
e elevado valor, por muitos cobiçado.
Girólamo sabia-se antipático ao nobre benfeitor, que apenas
o suportava, financiando-lhe os estudos em memória da esposa idolatrada.
Deserdara-o quase, se considerarmos a hábil maneira como dispusera as suas
vontades e posses no testamento.
Através de ardis bem urdidos, algum tempo antes o rapaz
soubera das últimas disposições regulares que o tio introduzira
no legado, graças à indiscrição do notário, que era encarregado dos negócios da
casa e fora regiamente recompensado para a delação. Desde essa oportunidade,
rebelara-se interiormente, nutrido pelo protector inamistosa atitude, que
chegava a caracterizar-se pelo ácido do ódio íntimo. Disfarçava-o, é certo, no
entanto, sabia-se intolerável. A antipatia, diga-se com justiça, era recíproca.
Incapaz de agasalhar sentimentos de gratidão, nutria-se da surda cólera, que
conseguia disfarçar com habilidade. Os primos pequeninos, em consequência, eram
para o seu espírito, insidioso rivais que necessitavam desaparecer, logo que
lhe sorrisse a boa Fotuna…
A morte do Senhor di Bicci surpreendia-o, portanto,
agradavelmente, pois que lhe favorecia pôr em prática o plano já em execução
paulatina, que poderia ter o seu desfecho por aqueles dias. Significava-lhe o
ambicioso ensejo do poder.
Desde que a tia desencarnada, maliciosamente espalhara que o
recolhimento do Senhor duque se devia aos encantos de Lúcia, a
dama de companhia da Senhora Ângela, que no vigor dos trinta anos repelia
continuamente os candidatos ao matrimónio, dizendo-se fiel servidora da prole
Bicci di M. O próprio duque várias vezes lhe conseguira
excelentes candidatos, que foram sumariamente recusados. Como gratidão a tão
elevado devotamento, dizia-se, fora contemplada no testamento com soma vultosa,
porém, o favor através de outros favores menos dignos, asseverava o jovem.
A calúnia, cavilosamente preparada, espalhava-se entre as
pessoas levianas, tendo-se em vista a sua procedência, e não mais à
boca pequena se falava da donzela e do seu amo, desmoralizando-o
vilmente.
A calúnia possui o miraculoso elixir de agradar aos
frívolos, sendo a arma poderosa dos cobardes, com duração de pequeno porte,
todavia.
Muitos sussurravam que Lúcia substituíra a senhora do
palácio, embora a altivez e sobriedade da moça que, por imposição do duque e
graças à sua ascendência moral, dirigia, compreensivelmente, os empregados e os
lacaios sujeitos ao seu amádigo. Atarefada, desdobrando-se entre os deveres
para com o senhor que a respeitava, as crianças que muito a amavam e os
serviçais, não dispunha de tempo para as frivolidades em voga nem os mexericos
que lhe chegavam ao conhecimento, embora tais notícias a mortificassem
interiormente. Estranha e poderosa afeição ligava-a aos membros do solar. Pelo
amo e seus filhos experimentava profunda dedicação e por isso tentava
preencher, mediante a bondade e o dever rectamente cumprido, a lacuna
decorrente do desaparecimento da senhora.
Esguia, morena e grácil, de cabeleira negra e abundante, era
o espécime perfeito descendente dos antigos etruscos que um dia dominaram
aquelas terras e em cujo dialecto conseguia expressar-se. Delicada, inspirava
confiança e, sensível, tranquilizava com a sua presença formosa.
Nos últimos tempos, nas noites em que a insónia a vencia,
deixava-se mergulhar em profundos cismares, interrogando os céus estrelados,
como que dominada por presságios atormentadores. Nessas oportunidades, parecia
vislumbrar, à meia claridade dos círios que iluminavam o quarto em que dormia
com as crianças, ou entre os prateados raios da lua plena, a figura soberana da duquesa,
que se lhe afigurava mais bela, mais encantadora. Embora o esplendor da face da
senhora, notava-lhe uma expressão de melancolia no sorriso sereno, conquanto
triste, que esta lhe endereçava.
Nesses momentos, dominada por ignotos receios, ajoelhava-se
aos pés do Crucificado, que havia preso à parede da alcova, e procedia aos
recitativos memorizados a que se acostumara, suplicando protecção, aspirando
amparo, vindo a tranquilizar-se somente depois de muitas aflições interiores.
Identificando em Girólamo estranha antipatia, sabia-o
responsável pelas infâmias e pressentia, quando o moço se acercava do burgo,
sombrios prenúncios constrangedores. Afável, tratava-o com respeito e
discrição, aparentando ignorar-lhe as acusações descabidas, quanto injustas.
Dom Giovanni, por sua vez, recebia-o de raro em raro,
evitando com delicadeza a sua presença, por lhe parecer esta perniciosa aos
filhos, embora o moço tivesse completado apenas vinte e dois anos. Era como se
macabro conciliábulo de estranhos sentimentos constrangesse as pessoas ante o
atormentado e leviano rapaz.
/…
VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 1. O DUQUE DI
BICCI DI M. 2 de 3, 2º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de
contextualização: L' Âme de la Florêt - 1898, pintura de Edgard Maxence)
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