domingo, 24 de agosto de 2014

Saberes e o tempo ~

Capítulo II – O tempo, o espaço, a matéria primordial

Espaço ~

É infinito o espaço, pela razão de ser impossível supor-lhe qualquer limite e porque, malgrado a dificuldade que encontramos para conceber o infinito, mais fácil nos é, contudo, ir eternamente pelo espaço em pensamento, do que pararmos num lugar qualquer, depois do qual nenhuma extensão mais houvesse a ser percorrida.

Para imaginarmos, tanto quanto o permitam as nossas faculdades restritas, a infinidade do espaço, imaginemos que, partindo da Terra, perdida no meio do infinito, rumo a um ponto qualquer do Universo, com a velocidade prodigiosa da centelha eléctrica, que transpõe milhares de léguas num segundo, havendo, pois, percorrido milhões de léguas mal tenhamos deixado este globo, nos achemos num lugar de onde a Terra não nos pareça mais do que uma vaga estrela. Um instante depois, seguindo sempre na mesma direcção, chegamos às estrelas longínquas, que da nossa morada terrestre mal se percebem. Daí, não só a Terra terá desaparecido das nossas vistas nas profundezas do céu, como também o Sol, com todo o seu esplendor, estará eclipsado pela extensão que dele nos separa. Sempre com a mesma velocidade do relâmpago, transpomos sistemas de mundos, à medida que avançamos pela amplidão, ilhas de luzes etéreas, vias estelíferas, paragens sumptuosas onde Deus semeou mundos na mesma profusão com que semeou as plantas nos prados terrestres.

Ora, minutos apenas há que caminhamos e já centenas de milhões de léguas nos separam da Terra, milhares de milhões de mundos passaram sob os nossos olhares e, entretanto, escutai bem! Na realidade, não avançamos um único passo no Universo.

Se continuarmos durante anos, séculos, milhares de séculos, milhões de períodos cem vezes seculares e incessantemente com a mesma velocidade do relâmpagonada teremos avançado, qualquer que seja o lado para onde nos encaminhemos e qualquer que seja o ponto para onde nos dirijamos, a partir do grão invisível que deixamos e que se chama Terra.

Eis o que é o espaço!

Justificação desta teoria

Concordam essas poéticas e grandiosas definições com o que sabemos de positivo sobre o Universo? Concordam, porquanto, sucessivamente, a luneta, o telescópio e a fotografia nos hão feito penetrar, cada vez mais longe, no campo do infinito.

Durante séculos, os nossos pais imaginaram que a criação se limitava à Terra que eles habitavam e que julgavam chata. O céu era apenas uma abóbada esférica onde se achavam incrustados pontos brilhantes chamados estrelas. O Sol era tido como um facho móvel destinado a distribuir claridade. Nós, terrícolas, éramos os únicos habitantes da criação, feita especialmente para nosso uso. A observação, mais tarde, facultou-nos reconhecer a marcha das estrelas; a abóbada celeste se deslocava, arrastando consigo todos os pontos luminosos. Depois, o estudo dos movimentos planetários e a fixidez da Estrela Polar levaram Tales de Mileto a reconhecer a esfericidade da Terra, a obliquidade da eclítica e a causa dos eclipses.

Pitágoras conheceu e ensinou o movimento diurno da Terra sobre o seu eixo, o seu movimento em torno do Sol e ligou os planetas e os cometas ao sistema solar. Esses conhecimentos precisos datam de 500 anos a.C. Mas, sabidas apenas de alguns raros iniciados, tais verdades foram esquecidas e a massa humana continuou a ser joguete de ilusão. Foi preciso que surgisse Galileu e se desse a descoberta da luneta, em 1610, para que concepções exactas viessem a rectificar os antigos erros.

Desde então, o Universo se apresenta qual realmente é. Reconhece-se que os planetas são mundos semelhantes à Terra e muito provavelmente habitados também; que o Sol mais não é do que um astro entre inúmeros outros; que com o telescópio se percebem as estrelas e as nebulosas disseminadas pelo espaço sem limites, a distâncias incalculáveis; que, finalmente, a fotografia, recente descoberta do génio humano, revela a presença de mundos que o olhar do homem jamais contemplara, nem mesmo com o auxílio dos mais possantes instrumentos.

As chapas fotográficas que hoje se preparam são não somente sensíveis a todos os raios elementares que afectam a retina, mas alcançam também as regiões ultravioletas do espectro e as regiões opostas, as do calor obscuro (infravermelho), nas quais o olhar humano é impotente para penetrar.

Assim é que os irmãos Henry conseguiram tornar conhecidas estrelas da 17ª grandeza, as quais nenhum olho humano ainda percebera. Descobriram também, para lá das Plêiades, uma nebulosa, invisível devido ao seu afastamento.

 À medida que os nossos processos de investigação se ampliam, a natureza recua os limites do seu império. Ao passo que os mais poderosos telescópios não revelavam, num canto do céu, mais que 625 estrelas, a fotografia tornou conhecidas 1.421. Assim, pois, em parte alguma o vácuo, por toda parte e sempre as criações a se desdobrarem em número indefinido! As insondáveis profundezas da amplidão fatigam, pela sua imensidade, as imaginações mais ardentes. Pobres seres chumbados num imperceptível átomo, não podemos elevar-nos a tão sublimes realidades.

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Gabriel Delanne, A Alma é Imortal, Terceira parte – O Espiritismo e a ciência Capítulo II O tempo, o espaço, a matéria primordial, Espaço, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Natureza da Revelação Espírita (II)

No sentido particular da fé religiosa, a revelação aplica-se mais especialmente às coisas espirituais que o homem não pode saber só por si, que não pode descobrir através dos sentidos e cujo conhecimento lhe é dado por Deus ou pelos seus mensageiros, quer através da palavra directa, quer pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a homens privilegiados, designados com o nome de profetas ou messias, isto é, enviados, missionários, que têm como missão transmiti-la aos homens. Considerada sob este ponto de vista, a revelação implica uma passividade absoluta; aceitamo-la sem controlo, sem exame, sem discussão.

Todas as religiões têm os seus reveladores e, apesar de todos terem estado longe de conhecer toda a verdade, tinham a sua razão de ser providencial; porque estavam de acorde com o tempo e com o meio onde viviam, com a sabedoria particular dos povos a quem falavam e aos quais eram relativamente superiores. Apesar dos erros das suas doutrinas, não deixaram por isso de agitar os espíritos e, assim, espalharam os germes do progresso, que mais tarde se iriam desenvolver ou que um dia se irão desenvolver ao sol do Cristianismo. É por tanto injustamente que se lança sobre eles um anátema em nome da ortodoxia, pois virá o dia em que todas estas crenças, tão diversas na sua forma mas que na realidade da alma, se fundirão numa grande e vasta unidade, assim que a razão tenha vencido os preconceitos.

Infelizmente, as religiões têm sempre sido instrumentos de domínio; o papel de profeta tentou as ambições secundárias e vimos surgir uma multidão de pretensos relevadores ou messias que, a coberto do prestígio deste nome, exploram a credulidade em benefício do seu orgulho, da sua cupidez ou da sua preguiça, achando mais cómodo viver à custa dos que enganavam. A religião cristã não esteve a coberto destes parasitas. A este respeito chamamos seriamente a atenção para o Capítulo XXI de O Evangelho Segundo o Espiritismo: «Haverá falsos Cristos e falsos profetas».

Há revelações directas de Deus para os homens? Trata-se de uma questão que não nos atreveríamos a resolver nem afirmativa nem negativamente de uma maneira absoluta. A tarefa não é de forma nenhuma radicalmente impossível, mas nada nos dá disso uma prova certa. O que não oferece dúvidas é que os Espíritos mais próximos de Deus pela perfeição se impregnam do Seu pensamento e podem transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados, consoante a ordem hierárquica a que pertencem e o grau do seu conhecimento pessoal, podem ir buscar as suas instruções aos seus conhecimentos pessoais ou recebê-las de Espíritos mais elevados, até mesmo mensagens directas de Deus. Estes, falando em nome de Deus, podem ter sido às vezes tomados pelo próprio Deus.

Este tipo de comunicações nada tem de estranho para quem conhece os fenómenos espíritas e a forma como se estabelecem os contactos entre os encarnados e os não encarnados. As instruções podem ser transmitidas por diversos meios: por inspiração pura e simples, por audição da palavra, pela observação dos Espíritos instrutores em visões e aparições, quer em sonhos quer em estado de vigília, tal como se encontram vários exemplos na Bíblia, no Evangelho e nos livros sagrados de todos os povos. É portanto rigorosamente exacto dizer-se que a maior parte dos reveladores são médiuns inspirados, auditivos ou videntes, de onde não se pode concluir que todos os médiuns são reveladores e, ainda menos, que são os intermediários directos da Divindade ou dos seus mensageiros.

Só os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a missão de a transmitirem; mas sabemos agora que os Espíritos estão longe de serem todos perfeitos e que há os que se revestem de falsas aparências; foi o que levou São João a dizer: «Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus ouve-nos; aquele que não é de Deus não nos ouve. Nisto conhecemos nós o espírito da verdade e o espírito do erro.» (1.ª Epistola de S. João, 4:6.)

Pode, portanto, haver revelações sérias e verdadeiras, assim como existem as apócrifas e mentirosas. O carácter essencial da revelação divina é o da verdade eterna. Qualquer revelação manchada de erros ou sujeita a mudança não pode emanar de Deus. É assim que a lei do Decálogo conserva todo o carácter da sua origem, enquanto as outras leis moseístas, essencialmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu. Suavizando-se os costumes do povo, estas leis caíram em desuso enquanto o Decálogo se manteve de pé como farol da humanidade. Cristo fez dele a base do seu edifício, ao mesmo tempo que abolia as outras leis. Se fossem obra de Deus, teria evitado tocar-lhes. Cristo e Moisés são os dois grandes reveladores que mudaram a face do mundo e nisso reside a prova da sua missão divina. Uma obra puramente humana não teria um tal poder.

Uma revelação importante está a acontecer no tempo actual: é a que nos mostra a possibilidade de comunicarmos com os entes do mundo espiritual. Este conhecimento não é novo, sem dúvida, mas tinha ficado até aos nossos dias numa espécie de estado de letra morta, quer dizer, sem benefício para a humanidade. A ignorância das leis que regem estas relações tinha-o abafado sob a superstição: o homem era incapaz de retirar daí qualquer dedução salutar; estava reservado para a nossa época libertá-lo dos seus acessórios ridículos, compreender-lhe o alcance e dele soltar a luz que deve iluminar o caminho do futuro.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 7 a 11 (II), 4º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

As vidas sucessivas | os elementos ~

Crenças antigas e conceitos modernos (Victor Hugo)

Eis como Arsène Houssaye relata a resposta que Victor Hugo deu aos ateus em 1866:

“Quem nos diz – recomeçou o poeta  – que não me reencontro através dos séculos? Shakespeare escreveu: A vida é um conto de fadas que se lê pela segunda vez.

Ele poderia ter dito: “pela milésima vez!”, pois não há século em que eu não veja passar a minha sombra.

Vós não credes nas personalidades que se movem (isto é, nas reencarnações) sob o pretexto de que não vos lembrais de nada de vossas existências anteriores. Porém, como é que a recordação dos séculos dissipados permaneceriam impressas em vós, quando mal vos recordais das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802, houve em mim dez Victor Hugo! Acreditas, pois, que me recordo de todas as suas acções e de todos os seus pensamentos?

Quando eu tiver atravessado a tumba para reencontrar uma outra luz, todos esses Victor Hugo ser-me-ão um pouco estranhos, porém será sempre a mesma alma!

Sinto em mim – diz-lhes ele ainda – toda uma vida nova, toda uma vida futura. Sou como a floresta que várias vezes foi abatida: os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Subo, subo em direcção ao infinito! Tudo é radiante diante de mim. A terra me dá a sua seiva generosa, porém o céu ilumina-me com os reflexos dos mundos entrevistos!

Dizeis que a alma é apenas a expressão das forças corporais. Então, por que é que a minha alma está mais luminosa quando as forças corporais vão em breve abandonar-me? O inverno encontra-se sobre a minha cabeça, porém a primavera eterna está na minha alma! Respiro a esta hora os lilases, as violetas e as rosas como aos vinte anos!

Quanto mais me aproximo do fim, mais ouço à minha volta as imortais sinfonias dos mundos que me chamam! É maravilhoso, e é simples.

Há todo um meio século que escrevo o meu pensamento em prosa e em verso: história, filosofia, drama, romance, lenda, sátira, ode, canção, etc.; tudo tentei; porém sinto que não disse a milésima parte do que se encontra em mim. Quando eu me deitar na tumba, não direi como tantos outros: terminei a minha jornada. Não, pois a minha jornada recomeçará no dia seguinte de manhã. A tumba não é um beco sem saída, é uma avenida; ela se fecha no crepúsculo e reabre ao alvorecer!”


Destinos da alma

O homem tem sedes insaciadas;
Em seu passado vertiginoso
Sente reviver outras vidas,
Conta os nós de sua alma.

Procura no fundo das sombrias cúpulas

Sob que forma resplandeceu,
Ouve os seus próprios fantasmas,
Que atrás de si lhe falam.

O homem é o único ponto da criação

Em que, para permanecer livre tornando-se melhor,
A alma deve esquecer a sua vida anterior.
Ele diz: Morrer é conhecer;
Procuramos a saída tateando;
Eu era, eu sou, eu devo ser,
A sombra é uma escada, subamos. |*


|* Nota da tradutora – Para que pudéssemos ser fiéis ao conteúdo do texto original e aos termos utilizados pelo poeta, obrigamo-nos a prejudicar toda a melodia e as rimas dos versos, pois, para mantê-los, precisaríamos mudar a estrutura das frases e as palavras, o que fatalmente mudaria em parte o sentido do texto original. Preferimos, portanto, traduzi-lo quase que literalmente. Eis a seguir, no entanto, o texto original, com toda a sua beleza de forma e de conteúdo:

« Des destinées de l’âme / L’homme a des soifs inassouvies; / Dans son passé vertigineux / Il sent revivre d’autres vies, / De son âme il compte de noeuds, / Il cherche au found des sombres dômes / Sous quelle forme il a lui, / Il entend ses propres fantômes / Qui lui parlent derrière lui. / L’homme est l’unique poit de la création / Où, pour demeurer libre en se faisant meilleure, / L’âme doive oublier sa vie anterieure. / Il se dit: Mourir c’est connaítre; / Nous cherchons l’issue à tátons; / J’étais, je suis, je dois être, / L’ombre est une échelle, montons. »

/...



Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Primeira Parte – Crenças antigas e conceitos modernos, Victor Hugo, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 3 de agosto de 2014

~~~Párias em Redenção~~~

ALUCINAÇÃO E CRIME (II)

– Girólamo, filha,– prosseguiu, com inesquecível expressão , é coração atormentado, dirigido por um espírito gravemente enfermo. Louco nas suas ambições desvairadas, prepara a taça espumante de fel para fazer-nos sorvê-la, enveredando por longo e estreito corredor que o conduzirá demoradamente, séculos a fio, pela senda de terríveis flagícios, que ele mesmo elabora desde agora, para purificar se depois, dolorosamente.

Perdoemo-lo por antecipação, evitando-nos sintonizar com funestas ideias que o infelicitam e que logo mais explodirão como maremoto furioso, tentando levar-nos de roldão… Antiga vítima nossa, guarda cicuta no espírito invigilante e, qual animal acusado no reduto em que se refugia, sem sol, prepara-se para desferir a agressão do desforço. Serás a sua primeira vítima… Reveste-te, porém, de coragem para o supremo holocausto. Os filhinhos amados estão também no seu plano… Pagareis, todos, assim, velho débito ao sofredor que se torna algoz. É claro que as Leis Superiores da Vida dispõem de meios eficazes para a justa cobrança, sem a necessidade de novos verdugos… Enfermidade, luto e dor, desastre e acidente, amor e bondade., renúncia e abnegação, sacrifício e devotamento são também instrumentos superiores de que se utilizam os Mensageiros Divinos no acerto de contas das diversas consciências em falta com a Consciência Cósmica… No entanto, precípites e desequilibrados, não compreendem os homens que somente as virtudes evangélicas, quando praticadas, poderão redimir e salvar a criatura humana. Estaremos contigo, com todos…

“Bom ânimo, filha! Jesus na manjedoura é um poema de amor falando às belezas da vida; Jesus na cruz é um poema de dor falando sobre as grandezas da Eternidade.

“Não recusemos o cálice. Roguemos forças para sorvê-lo, se necessário, até à última gota.

“Jesus, o Amigo dos sofredores, e a Senhora das Dores nos ajudarão.

“Coragem, filha, coragem! Confia e ama!...”

A visão celeste se desfez e Lúcia subitamente despertou. Banhada em suores, fitou os vitrais da janela ogival, parecendo ver ainda, em névoa clara e flutuante, o amado rosto, repetindo: “Ama, ama…”

Levou a mão à cabeça e, assistida pela companheira devota, enxugou o pranto e o suor, recobrando paulatinamente a lucidez. Desejou narrar o sonho ditoso que a arrebatara, mas preferiu silenciar.

Da parte inferior da casa, escutou os lamentos e as vozes desesperadas das carpideiras, que se deixaram conduzir por histeria profissional. Compreendeu que terminara o ofício fúnebre e que logo mais ocorreria o sepultamento na capela, em cujo solo jaziam os despojos da Senhora duquesa.

Amparada pela serva amiga e companheira, desceu as escadas do hall, algo enfraquecida pelas últimas experiências de que se vira objecto.

O esquife estava sendo erguido por Girólamo e os diversos membros da confraria da Madonna Assunta, de Siena. Repicaram dolentes os sinos; a gritaria infrene estrugia no ar.

Recobrou as forças e avançou.

À porta, ajoelhou-se para acompanhar com afecto os despojos humanos do seu benfeitor e se surpreendeu ante o olhar feroz do sobrinho do Senhor di Bicci di M., que a varara implacável. Pálido e de olheiras fundas, era a expressão da alucinação recalcada. Imediatamente, Lúcia se recordou da visão dominadora que a visitara e baixou a cabeça.

O Bispo, momentaneamente emocionado, começou a litania do “De profundis”:
“Muitas vezes me angustiaram desde a minha mocidade,
“Diga, agora, Israel:
“Muitas vezes me angustiarm desde a minha mocidade,
“Contudo não prevaleceram contra mim.
“Sobre as minhas costas lavraram os aradores;
“Prolongaram os seus sulcos.
“Jeová é justo:
“Ele corta as cordas dos perversos.
“Sejam envergonhados e repelidos para trás…”
“… A bênção de Jeová seja sobre vós;
“Nós vos abençoamos em nome de Jeová.” |*

O cortejo atravessou o átrio, vencendo a distância entre o palácio e a capela gótica, de portas abertas de par em par.

No mausuléu de mármore de Carrera, trabalhando, para guardar os despojos da família, a lápide paralela à da Senhora duquesa estava aberta e pedreiros se encontravam a postos.

Depois da aspersão da água benta e das palavras finais, o ataúde foi colocado e a laje cimentada, sendo posteriormente aposto o selo com as armas da casa.

Estavam concluídas as homenagens àquele que fora o duque Giovanni di Bicci di M.

Mergulhada em sombras, a torre alta do palácio, símbolo do poder dos senhores, parecia uma sentinela triste e solitária.

As entidades religiosas recolheram os estandartes, foram retirados os paramentos, começou a desmontar-se o catafalco e os primeiros convidados deram início à partida. Lentamente, o silêncio se foi abatendo sobre o solar, enquanto a chuva, miúda e impertinente, acompanhada de trovões e relâmpagos ao longe, oferecia o lúgubre espectáculo da Natureza em convulsão. O dia sombrio passou, vagaroso, e, quando a noite desceu fragorosa sobre o burgo, todos, cansados e opressos, buscaram o repouso mais cedo.

As crianças participaram das exéquias do genitor sem a perfeita compreensão do que ocorrera. Ficaram retidas, quanto possível, na parte superior da casa, evitando-se, por orientação de Lúcia, tudo quanto as pudesse perturbar. Carinhosa, a serva recolhera os pequerruchos logo após o falecimento do amo e dissera, em linguagem compatível à idade deles, o que ocorrera, prometendo-lhes a sua dedicação integral até à morte. Afeiçoadas à ama zelosa, com a mente povoada de sonhos e a imaginação sôfrega, os filhinhos do Senhor duque experimentaram as lágrimas da tristeza momentânea e foram recolhidos ao leito pelo cuidado da moça diligente. O dia longo e triste, passaram-no, ora fitando das escadas altas o que ocorria na parte inferior, ora assistidas por dedicada serva, designada especialmente para tal fim.

Com os crepes pesados da noite e a boca silenciosa da sombra, o palácio somente escutava a tempestade que não amainava, de todo, lá fora.

No amplo quarto de Girólamo, encontraram-se o moço agitado e Assunta, ardente de paixão pelo enamorado, cujas migalhas de afecto e ternura disputava leonicamente, de alma e encrespada pela febre tormentosa da ânsia de tudo liquidar, o jovem despediu a companheira e rogou-lhe soledade para pensar. No dia imediato, necessitaria definir situações para o tentame contava, desde já, com a sua valiosa quão indisfeita ordem, de modo a que se pudesse comprovar a sua inocência. Nada poderia falhar. O repouso, portanto, era-lhe ala dos servidores e procurou o repouso.

Girólamo, todavia, não conseguiu conciliar o sono. As mãos frias e trémulas atestavam-lhe a tensão emocioal. O suor lhe escorria em bagas. Embora recolhido no leito, quase delirando sob e expectativa de como concretizar os planos que lhe ardiam na alma, experimentava a pressão da própria insânia.

/…
|* Salmo 129, também chamado da Penitência; versículos 1 a 5 e 8.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (2 de 4), 5º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt_1898, Edgard Maxence)