ALUCINAÇÃO E CRIME (II)
– Girólamo, filha,– prosseguiu, com inesquecível expressão –,
é coração atormentado, dirigido por um espírito gravemente enfermo. Louco nas
suas ambições desvairadas, prepara a taça espumante de fel para fazer-nos
sorvê-la, enveredando por longo e estreito corredor que o conduzirá
demoradamente, séculos a fio, pela senda de terríveis flagícios, que ele mesmo
elabora desde agora, para purificar se depois, dolorosamente.
Perdoemo-lo por antecipação, evitando-nos sintonizar com
funestas ideias que o infelicitam e que logo mais explodirão como maremoto
furioso, tentando levar-nos de roldão… Antiga vítima nossa, guarda cicuta no
espírito invigilante e, qual animal acusado no reduto em que se refugia, sem
sol, prepara-se para desferir a agressão do desforço. Serás a sua primeira
vítima… Reveste-te, porém, de coragem para o supremo holocausto. Os filhinhos
amados estão também no seu plano… Pagareis, todos, assim, velho débito ao
sofredor que se torna algoz. É claro que as Leis Superiores da Vida dispõem de
meios eficazes para a justa cobrança, sem a necessidade de novos verdugos…
Enfermidade, luto e dor, desastre e acidente, amor e bondade., renúncia e
abnegação, sacrifício e devotamento são também instrumentos superiores de que
se utilizam os Mensageiros Divinos no acerto de contas das diversas
consciências em falta com a Consciência Cósmica… No entanto, precípites e
desequilibrados, não compreendem os homens que somente as virtudes evangélicas,
quando praticadas, poderão redimir e salvar a criatura humana. Estaremos
contigo, com todos…
“Bom ânimo, filha! Jesus na manjedoura é um poema de amor
falando às belezas da vida; Jesus na cruz é um poema de dor falando sobre as
grandezas da Eternidade.
“Não recusemos o cálice. Roguemos forças para sorvê-lo, se
necessário, até à última gota.
“Jesus, o Amigo dos sofredores, e a Senhora das Dores nos
ajudarão.
“Coragem, filha, coragem! Confia e ama!...”
A visão celeste se desfez e Lúcia subitamente despertou.
Banhada em suores, fitou os vitrais da janela ogival, parecendo ver ainda, em
névoa clara e flutuante, o amado rosto, repetindo: “Ama, ama…”
Levou a mão à cabeça e, assistida pela companheira devota,
enxugou o pranto e o suor, recobrando paulatinamente a lucidez. Desejou narrar
o sonho ditoso que a arrebatara, mas preferiu silenciar.
Da parte inferior da casa, escutou os lamentos e as vozes
desesperadas das carpideiras, que se deixaram conduzir por histeria
profissional. Compreendeu que terminara o ofício fúnebre e que logo mais
ocorreria o sepultamento na capela, em cujo solo jaziam os despojos da
Senhora duquesa.
Amparada pela serva amiga e companheira, desceu as escadas
do hall, algo enfraquecida pelas últimas experiências de que se
vira objecto.
O esquife estava sendo erguido por Girólamo e os diversos
membros da confraria da Madonna Assunta, de Siena. Repicaram
dolentes os sinos; a gritaria infrene estrugia no ar.
Recobrou as forças e avançou.
À porta, ajoelhou-se para acompanhar com afecto os despojos
humanos do seu benfeitor e se surpreendeu ante o olhar feroz do sobrinho do
Senhor di Bicci di M., que a varara implacável. Pálido e de olheiras fundas,
era a expressão da alucinação recalcada. Imediatamente, Lúcia se recordou da
visão dominadora que a visitara e baixou a cabeça.
O Bispo, momentaneamente emocionado, começou a litania
do “De profundis”:
“Muitas vezes me angustiaram desde a minha mocidade,
“Diga, agora, Israel:
“Muitas vezes me angustiarm desde a minha mocidade,
“Contudo não prevaleceram contra mim.
“Sobre as minhas costas lavraram os aradores;
“Prolongaram os seus sulcos.
“Jeová é justo:
“Ele corta as cordas dos perversos.
“Sejam envergonhados e repelidos para trás…”
“… A bênção de Jeová seja sobre vós;
“Nós vos abençoamos em nome de Jeová.” |*
O cortejo atravessou o átrio, vencendo a distância entre o
palácio e a capela gótica, de portas abertas de par em par.
No mausuléu de mármore de Carrera, trabalhando, para guardar
os despojos da família, a lápide paralela à da Senhora duquesa estava
aberta e pedreiros se encontravam a postos.
Depois da aspersão da água benta e das
palavras finais, o ataúde foi colocado e a laje cimentada, sendo posteriormente
aposto o selo com as armas da casa.
Estavam concluídas as homenagens àquele que fora o duque Giovanni
di Bicci di M.
Mergulhada em sombras, a torre alta do palácio, símbolo do
poder dos senhores, parecia uma sentinela triste e solitária.
As entidades religiosas recolheram os estandartes, foram
retirados os paramentos, começou a desmontar-se o catafalco e os primeiros
convidados deram início à partida. Lentamente, o silêncio se foi abatendo sobre
o solar, enquanto a chuva, miúda e impertinente, acompanhada de trovões e
relâmpagos ao longe, oferecia o lúgubre espectáculo da Natureza em convulsão.
O dia sombrio passou, vagaroso, e, quando a noite desceu fragorosa sobre o
burgo, todos, cansados e opressos, buscaram o repouso mais cedo.
As crianças participaram das exéquias do genitor sem a
perfeita compreensão do que ocorrera. Ficaram retidas, quanto possível, na
parte superior da casa, evitando-se, por orientação de Lúcia, tudo quanto as
pudesse perturbar. Carinhosa, a serva recolhera os pequerruchos logo após o
falecimento do amo e dissera, em linguagem compatível à idade deles, o que ocorrera,
prometendo-lhes a sua dedicação integral até à morte. Afeiçoadas à ama zelosa,
com a mente povoada de sonhos e a imaginação sôfrega, os filhinhos do
Senhor duque experimentaram as lágrimas da tristeza momentânea
e foram recolhidos ao leito pelo cuidado da moça diligente. O dia longo e
triste, passaram-no, ora fitando das escadas altas o que ocorria na parte
inferior, ora assistidas por dedicada serva, designada especialmente para tal
fim.
Com os crepes pesados da noite e a boca silenciosa da
sombra, o palácio somente escutava a tempestade que não amainava, de todo, lá
fora.
No amplo quarto de Girólamo, encontraram-se o moço agitado e
Assunta, ardente de paixão pelo enamorado, cujas migalhas de afecto e ternura
disputava leonicamente, de alma e encrespada pela febre tormentosa da ânsia de
tudo liquidar, o jovem despediu a companheira e rogou-lhe soledade para pensar.
No dia imediato, necessitaria definir situações para o tentame contava, desde
já, com a sua valiosa quão indisfeita ordem, de modo a que se pudesse comprovar
a sua inocência. Nada poderia falhar. O repouso, portanto, era-lhe ala dos
servidores e procurou o repouso.
Girólamo, todavia, não conseguiu conciliar o sono. As mãos
frias e trémulas atestavam-lhe a tensão emocioal. O suor lhe escorria em
bagas. Embora recolhido no leito, quase delirando sob e expectativa de como
concretizar os planos que lhe ardiam na alma, experimentava a pressão da
própria insânia.
/…
|* Salmo 129, também chamado da Penitência;
versículos 1 a 5 e 8.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO
PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (2 de 4), 5º fragmento da obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt_1898, Edgard Maxence)
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