domingo, 26 de setembro de 2021

~ nas garras do pensamento crítico


O velho | e o novo 

É evidente que o conhecimento da sobrevivência alarga a concepção humana da vida e do mundo, muito para além dos limites terrenos ou orgânicos da concepção materialista. Oliver Lodge classificou o Espiritismo de “nova revolução copérnica”. 

Assim como Copérnico rompeu de vez o ergástulo mental do geocentrismo, a revolução espírita desloca dos organismos materiais o conceito de vida, rompe o organocentrismo da biologia moderna e reduz a uma simples confusão do efeito pela causa o chamado “materialismo-psicológico”. 

Em consequência, leis e perspectivas novas aparecem, exigindo verdadeira revisão dos conhecimentos do homem e do seu modo de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica entre o velho e o novo tão bem definida no Evangelho do Cristo e nas obras de Allan Kardec

Vagas aspirações ~~

Alegam os mais ferrenhos materialistas que o conhecimento da sobrevivência – se de facto ela existisse – não serviria senão para perturbar a visão presente do homem, desviando-o da execução pura e simples das tarefas imediatas. Kardec, que condenou a vida contemplativa e, pregou a necessidade da acção contínua, dando o exemplo concreto da sua própria vida de militante espírita, replica: “...a incerteza, no tocante às coisas da vida futura, faz que o homem se lance, com uma espécie de frenesim, sobre as da vida material.” 

A réplica de Kardec não exige demonstrações. A vida moderna, baseada no materialismo prático do mundo capitalista, vale por uma experiência natural, em escala de assombro. Nunca se viu tamanho frenesim na procura dos bens materiais. A advertência de Francis Bacon: “Busca primeiro as boas coisas do espírito, que o resto será suprido ou não sentirás a sua falta”, com base naquela do Cristo: “Busca primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça e, tudo o mais te será dado por acréscimo”, não soa ao coração, mas apenas aos tímpanos desatentos do homem moderno. Diante disso, poderíamos esperar do materialismo teórico ou filosófico uma nova aplicação do princípio de Hahnemann, – similia similibus curantur – para curar o mundo desse delírio febril? 

Kardec diz ainda: “Esse é o inevitável efeito das épocas de transição. O edifício do passado rui, sem que o do futuro esteja construído. O homem é como um adolescente, que já não tem a crença ingénua dos primeiros anos e não adquiriu ainda os conhecimentos da idade madura. Não possui mais do que vagas aspirações, que não sabe definir.” 

A sociedade socialista, baseada na filosofia materialista mais avançada, terminaria atormentada por essas “vagas aspirações” de que nos fala Kardec. E mais uma vez surgiria, no seu próprio seio, a luta entre o velho e o novo. A hipótese não é gratuita, pois para tal não acontecer, seria necessário que não existisse uma vida futura, que a sobrevivência não fosse uma das realidades do Universo. 

/… 


José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, "O velho e o novo / Vagas aspirações", 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades


Coincidências Ideológicas com Giuseppe Garibaldi e Giuseppe Mazzini ~ 

Todo o vocabulário filosófico de Victor Hugo se assemelha a esse tom dramático que possuem as comunicações mediúnicas. Se se fizesse um estudo das melhores páginas que constituem a literatura mediúnica, ver-se-ia que elas possuem o mesmo estilo do grande poeta francês. O vate de Jersey parecia estar continuamente em transe mediúnico. Por isso a sua doutrina é a do infinito, onde o Ser se mostra como uma partícula divina que electriza a essência cósmica e universal. Mensagens psicografadas como as que apresenta um livro intitulado "Símbolo ou o túmulo fala" (*), corroboram o que dissemos. Há nessa obra mediúnica páginas de um dramatismo espiritual que fazem pensar no estilo victorhugueano. É que no invisível está o mundo das almas onde o grande e majestoso tem as suas raízes. 

De facto, a literatura mediúnica não é convencional nem fictícia; pelo contrário, brota dos abismos profundos do invisível, das mesmas raízes do imaterial, onde o génio só pode falar a linguagem do eterno. O poeta concebia na sua cosmogonia um homem imortal e predestinado e, como ele dizia, sábio, visionário, pensador, taumaturgo, navegante, arquitecto, mago, legislador, filósofo, herói, poeta. Da sua ideologia espiritual e poética se desprendia a mesma teleologia existencial da codificação de Allan Kardec. A ideia do progresso infinito habitava no pensamento de Victor Hugo, pois a alma era para ele um ser que vem ao mundo pela enésima vez e não uma entidade biológica criada no instante da concepção. Sempre pressentiu que uma misteriosa pré-existência rege o destino do espírito; por isso perguntava: "Quem tem incubada essa águia? O abismo incubando o génio? Existe maior enigma? Terão visto outros mundos as grandes almas que transitoriamente se adaptam à terra? Chegarão alguns por isso com tantas intuições?" 

Assim; pois, pressentia que o mistério histórico está entretecido pelos seres espirituais que lhes dão características pessoais a seu tempo. O seu génio se atirava frente a esses seres mecânicos e vazios quando negavam a pré-existência dos espíritos. A defesa que fazia da pedra, do burro, da flor e do anjo era baseada na unidade espiritual da criação. O pensamento de Deus estava para Victor Hugo em tudo o que existe, por isso, nada e ninguém estaria excluído do grande desenvolvimento da história natural e divina. A sua cosmovisão filosófica e religiosa respondia ao que lhe transmitiram os espíritos desencarnados durante o seu desterro na ilha de Jersey, ou seja, desde que a Sra. E. de Girardin (Delphine Gay) o iniciara nas revelações dos tripés mediúnicos. 

O seu trabalho poético e literário deixou de ser um artifício intranscendente, como acontece quando se escreve sem uma visão espiritual da vida. A obra de Victor Hugo, por suas raízes aprofundadas no eterno, foi uma defesa do homem ao considerá-lo como um espírito reencarnado na terra. A sua criação poética se colocou ao lado da maior revelação dos tempos modernos; por isso, disse: ''O Espiritismo é o acontecimento mais notável do século XIX". Coincidiu assim com Giuseppe Garibaldi, que afirmou: "Esta religião da verdade e da ciência se chama Espiritismo''. O seu pensamento também se relacionou com Giuseppe Mazzini, que escreveu uma página admirável para definir a missão da Doutrina Espírita. Ela segue transcrita na íntegra para conhecimento do leitor. 

''O Espiritismo científico, isto é, a alma humana analisada experimentalmente nas suas propriedades e manifestações dará tão inesperados conhecimentos aos estudos, que perante eles quedarão atónitos, abismados e se derrubarão todos os humanos edifícios políticos e morais que até ao presente têm dominado. 

"Pela aplicação prática da resultante do estudo do Espiritismo, uma nova ética, pura, regenerada, potente surgirá da natureza. Será o potentíssimo credo que fará morrer as mais arraigadas instituições político-religiosas que reinam sobre a terra

"Por uma maior e mais disciplinada apreciação das leis que regem o universo, mudará completamente a orientação da ciência e o barulho inevitável que isso haverá de produzir afectará todas as manifestações da vida, que, então, se explicarão pela razão do maior, do mais santo dos conceitos: o do dever. 

"É isto que suporta o Espiritismo. A luta será áspera, fatigante; mas a consequência será inevitável. De que valerá o conluio contrário de todos os animais daninhos da terra: o mais forte, indomável Vetro avança a passos largos, saturado da sabedoria e da fé dos sábios e dos heróis de todas as épocas e, com os fulgores da ciência positiva caçará as feras até nas profundezas do seu mundo interior. 

''Então soprará sobre a terra as auras da paz, de gozo; do peito dos homens surgirá espontâneo um hino de louvor, de amor a Deus; a humanidade, perdendo o último vestígio animal que possui, voltará qual nascente mariposa, bela e pura, à conquista das mais excelsas regiões, das puras esferas. " (**) 

Nestes mesmos pensamentos de Giuseppe Mazzini assentava o sentir filosófico de Victor Hugo quanto ao valor histórico e social da filosofia espírita. Esse mesmo sentir fez falar também outros pensadores como Emilio Castelar, José Pi y Margall, Camille FlammarionAbrahan LincolnVictorien Sardou e outros mais, que eram solidários com a missão espiritual dos fenómenos mediúnicos. Sem dúvida, fez-se silêncio sobre o sentimento espírita de Victor Hugo, mas, nessa negação, nessa oposição sistemática é que está a origem do desastre espiritual da humanidade. Se, por um lado, querem negar que a alma é imortal, por outro, os que nela crêem negam que a alma imortal possa comunicar-se com os homens por razões já insustentáveis e que não vamos considerar aqui. Mas o certo é que somente pelo fenómeno mediúnico, como manifestação do espírito imortal é que a razão humana se inclinará reverente a Deus. Por isso, Victor Hugo aceitou o Espiritismo como mensagem salvadora para o Homem, a Verdade e a Beleza. 

/… 
(*) Obra editada em Paris, em 1933. 
(**) Revista Lumen, Tarrasa, Espanha, 1905. N. do Autor. 


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, COINCIDÊNCIAS IDEOLÓGICAS COM GIUSEPPE GARIBALDI E GIUSEPPE MAZZINI, 10º fragmento da obra. 
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON

domingo, 12 de setembro de 2021

a pedra e o joio ~


Actualização do Espiritismo ~ 

Desde que o confrade Hernani Guimarães Andrade publicou o seu livro, A Teoria Corpuscular do Espírito, vimos sendo consultados por pessoas que não sabem como encarar a obra. Num texto que aparece nas orelhas do volume, o Professor Victor Magaldi refere-se à teoria, como sendo uma “verdadeira revolução no Neo-Espiritismo”. No primeiro capítulo, o autor declara que o Espiritismo precisa progredir, superar os velhos conceitos mecanicistas do século passado e, que “os adeptos da doutrina devem ter a coragem de voltar atrás, se preciso for; reformar conceitos velhos; sacudir o pó da suposição para descobrir a realidade soterrada; abrir mão do dogmatismo comodista e ignorante, que se aferra à forma e esquece o espírito”. 

Todas essas coisas preocupam os adeptos, não comodistas nem ignorantes, mas ciosos da pureza da doutrina. Quer o confrade Guimarães Andrade reformar o Espiritismo? A que se refere o confrade Victor Magaldi, quando proclama a existência de uma revolução do “Neo-Espiritismo”? Isso existe? Existe um Neo-Espiritismo e, no seu seio já se processa uma revolução? Por outro lado, a terminologia doutrinária estará mesmo superada, será arcaica, necessitará de revisão? Estaremos em condições de enfrentar essa tarefa? Disporá o autor do livro de meios e recursos para sacudir a poeira dos conceitos kardecistas e revelar uma possível realidade oculta? 

Confessamos que era nosso intento, desde a publicação de A Teoria Corpuscular do Espírito, escrever sobre essa obra. Mas, encontrando esses mesmos problemas referidos pelos leitores, resolvemos estudar o livro com tempo e vagar, não aventurando a respeito nenhuma opinião. Além disso, o autor anuncia outros volumes, que completarão a sua teoria. Diante porém, da insistência dos leitores e amigos e, uma vez que já aparece até mesmo a ideia, em certos núcleos, de tratar do problema da “Nova nomenclatura espírita” (por analogia certamente com a “Nova nomenclatura gramatical”), resolvemos tratar do assunto. 

A nossa atitude é a mesma dos leitores. Estamos com um pé atrás. Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sabemos ser uma pessoa honesta e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação, no campo doutrinário. Primeiramente, não vemos razões para o ataque à terminologia kardecista. Ela é tão válida hoje como há cem anos. A própria negação do “conceito mecanicista de éter” precisa ser examinada. E isso por dois motivos: porque o debate sobre o problema do éter espacial ainda não está encerrado, na própria Física; e porque o éter do Espiritismo não corresponde exactamente, mas apenas analogamente, ao da Física. O mesmo acontece com os conceitos de “fluido” e de “vibração”. Allan Kardec não formulou uma teoria científica, da mesma maneira por que Jesus não criou um sistema filosófico. A revisão dos conceitos doutrinários, na base das falíveis teorias científicas modernas, equivale, em nosso ver, a uma revisão dos conceitos evangélicos, na base dos sistemas filosóficos instáveis do nosso tempo. 

Em segundo lugar, a tentativa de criar uma teoria científico-espírita, como quer o autor, parece-nos prematura. As suas dificuldades começam ao procurarmos situar o Espiritismo no quadro das ciências. Allan Kardec acentuou que o Espiritismo deve evoluir com as ciências, mas esclareceu também que a natureza científica do Espiritismo não é a mesma das ciências da matériaFoi mais longe, ao negar às ciências qualquer competência para se pronunciar sobre as questões espíritas e, afirmou taxativamente que: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. (Cap. VII da “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”). Quando ele trata, pois, da Ciência Espírita, não o faz em termos de ciência material, mas esclarece mesmo que o objecto e os métodos de ambas são diferentes

Ora, o que o confrade Guimarães Andrade pretende fazer, é exactamente o que Allan Kardec condenou. Ou seja, para usarmos as expressões textuais do codificador: “sujeitar (o Espiritismo) aos processos ordinários de investigação, estabelecendo analogias que não existem”. O mesmo aconteceu com a Psicologia, quando WundtFechnerBinet e outros quiseram reduzi-la a processos de mensuração física. O mesmo com a Sociologia, inicialmente chamada “Física Social”, mais tarde ligada à Biologia e, hoje liberta dessas inadequações conceptuais e metodológicas. O Espiritismo não pode sujeitar-se a esses processos de moldagem. No próprio campo da Filosofia, os Espíritos e o próprio Kardec fizeram questão de esclarecer que ele devia desenvolver-se “livre dos prejuízos do espírito de sistema”. 

Ainda agora, ao esclarecer a utilização de conceitos da ciência moderna, no seu livro Mecanismos da MediunidadeAndré Luiz adverte: “As notas dessa natureza, neste volume, tomadas naturalmente ao acervo de informações e deduções dos estudiosos da actualidade terrestre, valem aqui por vestimenta necessária, mas transitória, da explicação espírita da mediunidade, que é, no presente livro, o corpo de ideias a ser apresentado”. Aplicando essa explicação ao caso de O Livro dos Espíritos, compreenderemos que o que nos interessa no seu texto não é a vestimenta, mas a substância, não é a terminologia, mas “o corpo de ideias”. 

A tentativa do confrade Guimarães Andrade deve ser encarada, pois, com o cuidado que Allan Kardec recomendava sempre, para todas as inovações. Procuremos conter os entusiastas, que já pretendem erigir o autor em reformador doutrinário. O próprio Ernesto Bozzano chegou a propor uma teoria do Éter-Deus, para explicar de maneira física o Ser Supremo, o que era evidentemente absurdo e não teve aceitação. Fazer avançar o Espiritismo não é subjugá-lo a conceitos da ciência material, mas dar-lhe maior desenvolvimento espiritual na nossa compreensão. E trabalhar assim, espiritualmente, para apressar aquele momento, previsto por Allan Kardec, em que “os sábios se renderão à evidência”. Serão eles, então, os que terão de modificar os seus conceitos, sacudindo a poeira das suas hipóteses instáveis. 

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José Herculano Pires, A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Actualização do Espiritismo, 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)