domingo, 28 de abril de 2019

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria I Posição do Problema (V)

Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa idade, é se imaginarem no direito de afirmar sem provas, a se embalarem na doce ilusão de serem os outros obrigados a acreditar em palavras. Coisas que a verdadeira Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categóricos. Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criação, ou como se fossem os próprios autores dela.

Eis alguns espécimes de raciocínio, cuja infalibilidade é tão ciosamente proclamada.

Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se dêem ao trabalho de analisar as seguintes afirmações:

Moleschott diz que a força não é um Deus que impele, não é um ser separado da substância material das coisas (quer dizer separado ou distinto?). É a propriedade inseparável da matéria, a ela inerente de toda a eternidade. Uma força, não ligada à matéria, seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigénio, o enxofre e o fósforo têm propriedades que lhes são inerentes de toda a eternidade... Logo, a matéria governa o homem.”

Cada uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição de princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força vale como propriedade da matéria. Ora, essa é, precisamente, a questão. Os campeões da Ciência, que pretendem representá-la e falar com e por ela, não se dignam de seguir o método científico, que é o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do seu estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a saber: – toda a proposição não demonstrada experimentalmente só merece repúdio – e, no entanto, logo de início, esquecem a legenda. São pregadores de uma nova espécie: façam o que digo e não o que eu faço.

Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não impulsiona a matéria, exprimem um conceito imaginativo, nada científico.

Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria – diz Emil du Bois-Reymond – não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos, se atrelassem ou desatrelassem alternativamente as forças. As suas propriedades são inalienáveis, intransmissíveis de toda a eternidade.”

Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott: “Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da Humanidade, por uma judiciosa associação de ácido carbónico, de amoníaco e de outros sais, de ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.

E também no nosso país: “Uma ideia – diz a Revista Médica – é uma combinação análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fósforo; a virtude, o devotamento, a coragem, são correntes de electricidade orgânica”, etc.

Quem vos disse tal coisa, senhores redactores? Olhem que os leitores hão-de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista científico, esses raciocínios são totalmente nulos. De facto, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes da Ciência: se a singular audácia, se a ingenuidade de suas presunções.

Newton não se cansava de repetir: “parece-nos...”, e Kepler dizia: “submeto-vos estas hipóteses...”. Aqueles outros, porém dizem: afirmo, nego, isto é, aquilo não é, a Ciência julgou, decido, condeno, posto que no que dizem não haja sombra de argumento científico.

Um tal método pode ter o merecimento da clareza, mas ninguém o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.

É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a carga pesada das suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores (mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência vos ouve, não pode deixar de rir das vossas ilusões.

A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proíbe... Pobre Ciência, em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um descomunal orgulho.

Não, meus senhores e, vós bem o sabeis (cá entre nós) que, nestes domínios, a Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura.

Reflecti, pois, que a armadura das vossas parlandas ilude os ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a faculdade de perlustrar os vossos estudos e, considerai que, quando nos arrogamos o título de intérpretes da Ciência, ficamos na obrigação de não falsear o título, de permanecer-lhe fiel e, por consequência, modestos tradutores de uma causa que tem na modéstia o seu primacial merecimento.

Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma, observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado físico de certos agrupamentos atómicos e que a matéria governa o homem tão exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais. O fenómeno mais curioso é o de imaginarem que aclaram o problema com as suas explicações obscuras:

– “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler (*), outra coisa não é senão uma força da matéria, imediatamente resultante da actividade nervosa”...

Mas... de onde provém essa actividade nervosa?

– Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os actos do espírito são o produto imediato do movimento nervoso, determinado pelo éter, ou do movimento deste nos nervos – ao qual importa ajuntar uma variação mecânica, física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros elementos orgânicos...

– Eis aí, suponho, bem esclarecida a questão. Virchow diz que “a vida não é mais que modalidade particular da mecânica”; e Büchner afirma que “o homem não passa de produto material; que não pode ser o que os moralistas pintam; que não tem faculdade alguma privilegiada”.

– Que há em todos os nervos uma corrente eléctrica – predica du Bois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento da matéria. Para Vogt, as faculdades da alma valem como funções da substância cerebral e estão para o cérebro como a urina para os rins (**). E Moleschott assegura que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais, ligada a correntes neuro-eléctricas e percebidas pelo cérebro.

Teremos o ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo deste mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas. Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.

Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamental: “E aí temos nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da matéria. Qual é a consequência geral e filosófica desta noção tão simples quanto natural? É que aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma originado o mundo, ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da Natureza, baseados na Filosofia e no empirismo.”

E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um conhecimento mesmo superficial das ciências naturais, capaz de duvidar não seja o mundo governado como geralmente se afirma e, sim que os movimentos da matéria estão submetidos a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria? “

Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm ingenuamente declarar não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção científica para justificar as suas fantasias, teríamos nós, a seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em Deus.

Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do silogismo ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as premissas irrefutáveis e não tirar delas senão uma conclusão legítima e, poderíamos acompanhá-los no raciocínio e conferir-lhes um prémio de retórica. Mas, vede em que consiste o seu processo:

Maior – A força é uma propriedade da matéria.

Menor – Portanto, uma propriedade da matéria não pode ser considerada superior, criadora ou organizadora dessa matéria.

Conclusão – Logo, a ideia de Deus é uma concepção absurda.

É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a discutir.

Combatendo cerradamente os métodos do Cristianismo, essa gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de Jesus, assim começavam:

Jesus é Deus e, desse princípio não provado extraiam todas as deduções.

Convictos estamos de honrar grandemente esses escritores, aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles talvez nunca sonharam seguir.

Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra forma mais ingénua, assim:

Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre associadas.

Consequente – Logo, a força é uma qualidade da matéria.

Aí temos, penso, um entimema de novo género e de consequências bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores Alemães raciocinam, bem como os seus clarividentes imitadores, positivistas da nossa moderna França.

No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no segundo, nem mesmo faz jus a essa censura, porque é uma infantilidade.

Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor – perversão da faculdade de raciocinar – a que se reduz o movimento materialista dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a propósito a frase do misantropo que dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador.

Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste edifício heterogéneo, cujo desmoronamento pode esmagar muitos cérebros sob os escombros; toda a força deste sistema que pretende dominar o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e potência, repousam nessa assertiva fantasiosa, arbitrária e jamais demonstrada, de ser a força uma propriedade da matéria.

é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações científicas e só se apoiar em verdades reconhecidas; é confugindo-se ao estandarte da Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim, com ela mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as suas belas e edificantes doutrinas.

Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciência fala de viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho. Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente, como entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se e, sobretudo, não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar, investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.

/…
(*) Körper und Gelst, etc.
(**) Physiologische Briefe.


Camille Flammarion (i)Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 5 de 6, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 20 de abril de 2019

Diálogos de Kardec ~


IV 
A EMANCIPAÇÃO DA ALMA 

Durante o sono, apenas o corpo repousa; o Espírito, esse não dorme; aproveita-se do repouso do primeiro e dos momentos em que a sua presença não é necessária para actuar isoladamente e ir aonde quiser, no gozo então da sua liberdade e da plenitude das suas faculdades. Durante a encarnação, o Espírito nunca se encontra completamente separado do corpo; qualquer que seja a distância a que se transporte, conserva-se sempre preso àquele por um laço fluídico que serve para fazê-lo voltar à prisão corpórea, logo que a sua presença ali se torne necessária. Este laço só a morte o interrompe. 

“Durante o sono, a alma liberta-se parcialmente do corpo. Quando dormimos, ficamos, temporariamente, no estado em que nos encontraremos de modo permanente depois da morte. Os Espíritos que depois da morte dos seus corpos se desligaram da matéria, tiveram sonos inteligentes; quando dormem, juntam-se à sociedade de outros seres que lhes são superiores; viajam, conversam e se instruem com eles, trabalham mesmo em obras que, quando morrem, encontram inteiramente acabadas. Isto deve ensinar-nos a não temer a morte, pois que morremos todos os dias, como disse um santo. 

“Assim é com relação aos Espíritos elevados. Quanto à generalidade dos homens que, por ocasião da morte, têm de passar por aquela perturbação, por aquela incerteza de que eles próprios nos têm falado, esses vão ou a mundos inferiores à Terra, aonde os chamam antigas afeições, ou em busca de prazeres ainda mais degradantes, talvez, do que os da sua predilecção neste mundo. Vão à procura de vivências ainda mais vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que entre nós praticaram. O que gera na Terra a simpatia é apenas o facto de que o Espírito, ao despertar, se sente vinculado, pelo coração, àqueles em cuja companhia acaba de passar oito ou nove horas de ventura ou de prazer. Por outro lado, o que também explica essas invencíveis antipatias que uma criatura às vezes experimenta é que ela sente, dentro do seu coração, que os que lhe são antipáticos possuem uma consciência diversa da sua, pois que ela os conhece sem jamais os ter visto. É também o que explica a indiferença, que nasce da circunstância de não nos interessar o granjeio de novos amigos, quando sabemos que outros contamos que nos amam e nos querem. Numa palavra: o sono influi mais do que supomos na nossa vida. 

“Por meio do sono, os Espíritos encarnados estão sempre em relação com o mundo dos Espíritos e é isso o que faz que os Espíritos superiores consintam, sem grande repugnância, em encarnar entre nós. Deus quer que, enquanto se encontrem em contacto com o vício, eles possam ir retemperar-se na fonte do bem, para não suceder que também venham a falhar, quando o que lhes cabe é instruir os outros. O sono é a porta que Deus lhes abriu para irem ter com os seus amigos do céu; é o recreio após o trabalho, enquanto aguardam a grande libertação, a libertação final que os restituirá ao meio que lhes é próprio. 

“O sonho é a lembrança do que o Espírito viu durante o sono. Notemos, porém, que nem sempre sonhamos, pois que nem sempre nos lembramos do que vimos, ou de tudo o que vimos. É que a nossa alma não se encontra em todo o desenvolvimento das suas faculdades; não é, muitas vezes, mais do que a lembrança da perturbação que experimenta à partida ou à volta, à qual se junta a do que fizemos ou do que nos preocupa no estado de vigília. Se assim não fosse, como explicávamos os sonhos absurdos, que tanto os mais sábios, como os mais simples têm? Também os maus Espíritos se servem dos sonhos para atormentar as almas fracas ou pusilânimes. 

“A incoerência dos sonhos ainda se explica pelas lacunas resultantes da recordação incompleta do que durante eles foi visto. Dá-se então o que se daria com uma narrativa da qual se truncassem frases ao acaso: reunidos, os fragmentos que restassem nenhuma significação racional apresentariam. 

“Em suma, dentro em pouco vamos ver desenvolver-se outra espécie de sonhos, tão antigos como os que conhecemos, mas que ainda ignoramos. O sonho de Jeanne d’Arc, o sonho de Jacob, os sonhos dos profetas judeus e de alguns adivinhos indianos são lembranças que a alma, inteiramente desprendida do corpo, conserva dessa outra vida de que eu ainda não há muito falava.” (O Livro dos Espíritos, Parte 2ª, cap. VIII.) 

A independência e a emancipação da alma se manifestam, de maneira evidente, sobretudo no fenómeno do sonambulismo natural e magnético, na catalepsia e na letargia. A lucidez sonambúlica não é senão a faculdade, que a alma tem, de ver e sentir sem o concurso dos órgãos materiais. É um dos seus atributos esta faculdade e reside em todo o seu ser, não passando os órgãos do corpo de estreitos canais por onde lhe chegam certas percepções. A visão à distância, que alguns sonâmbulos possuem, provém de um deslocamento da alma, que então vê o que se passa nos lugares a que se transporta. Nas suas peregrinações, ela se encontra sempre revestida do seu perispírito, agente das suas sensações, mas que nunca se desliga completamente do corpo, como já ficou dito. O afastamento da alma produz a inércia do corpo, que às vezes parece sem vida. 

Esse afastamento ou desprendimento pode também operar-se, em graus diversos, no estado de vigília. Mas, então, jamais o corpo goza inteiramente da sua actividade normal; há sempre uma certa absorção, um alheamento mais ou menos completo das coisas terrestres; O corpo não dorme, caminha, age, mas os olhos olham sem ver, dando a compreender que a alma está algures. Como no sonambulismo, ela vê as coisas distantes; tem percepções e sensações que desconhecemos; às vezes, tem a presciência de alguns acontecimentos futuros pela ligação que percebe existir entre eles e os factos presentes. Penetrando no mundo invisível, vê os Espíritos com quem lhe é possível entabular conversa e cujos pensamentos lhe é dado transmitir. 

De volta ao estado normal, de ordinário sobrevém, o esquecimento do que se passou. Algumas vezes, porém, ela conserva uma lembrança mais ou menos vaga do ocorrido, como se tivesse tido um sonho. 

Não raro, a emancipação da alma amortece tanto as sensações físicas, que chega a produzir verdadeira insensibilidade que, nos momentos de exaltação, lhe possibilita suportar com indiferença as mais vivas dores. Provém essa insensibilidade do desprendimento do perispírito, agente transmissor das sensações corporais. Ausente, o Espírito não sente as feridas feitas no corpo. 

Na sua manifestação mais simples, a faculdade que a alma tem de emancipar-se produz o que se denomina o devaneio em vigília. A algumas pessoas, essa emancipação também dá a presciência, que se traduz pelos pressentimentos; em grau mais avançado de desprendimento, produz o fenómeno conhecido pelo nome de “segunda vista”, “vista dupla”, ou “sonambulismo vígil”. 

êxtase é a emancipação da alma no grau máximo. “No sonho e no sonambulismo, a alma vagueia pelos mundos terrestres; no êxtase, penetra num mundo desconhecido, no mundo dos Espíritos etéreos, com os quais entra em comunicação, sem, todavia, poder ultrapassar certos limites, que ela não poderia transpor sem quebrar totalmente os laços que a prendem ao corpo. Cercam-na um brilho resplandecente e desusado fulgor, elevam-na harmonias que na Terra se desconhecem, invade-a indefinível bem-estar; dado lhe é gozar antecipadamente da beatitude celeste e bem se pode dizer que põe um pé no limiar da eternidade. No êxtase, é quase completo o aniquilamento do corpo; já não resta, por assim dizer, senão a vida orgânica e percebe-se que a alma lhe está presa apenas por um fio, que mais um pequeno esforço faria partir-se.” (O Livro dos Espíritos, nº 455.) 

Como em nenhum dos outros graus de emancipação da alma, o êxtase não é isento de erros, pelo que as revelações dos extáticos estão longe de exprimir sempre a verdade absoluta. A razão disso reside na imperfeição do espírito humano; somente quando ele há, chegado ao cume da escala pode julgar das coisas lucidamente; antes não lhe é dado ver tudo, nem tudo compreender. Se, após o fenómeno da morte, quando o desprendimento é completo, ele nem sempre vê com justeza; se muitos há que se conservam imbuídos dos prejuízos da vida, que não compreendem as coisas do mundo visível, onde se encontram, com mais forte razão o mesmo há de suceder com o Espírito ainda retido na carne. 

Há por vezes, nos extáticos, mais exaltação que verdadeira lucidez, ou, melhor, a exaltação lhes prejudica a lucidez, razão por que as suas revelações são com frequência uma mistura de verdades e erros, de coisas sublimes e outras ridículas. Também os Espíritos inferiores se aproveitam dessa exaltação, que é sempre uma causa de fraqueza quando não há quem saiba governá-la, para dominar o extático, e, para conseguirem os seus fins, assumem aos olhos deste aparências que o aferram às suas ideias e preconceitos, de modo que as suas visões e revelações não vêm a ser mais do que reflexos das suas crenças. É um escolho a que só escapam os Espíritos de ordem elevada, escolho diante do qual o observador deve manter-se em guarda. 

Pessoas há cujo perispírito se identifica de tal maneira com o corpo, que só com extrema dificuldade se opera o desprendimento da alma, mesmo por ocasião da morte; são, em geral, as que viveram mais para a matéria; são também aquelas para as quais a morte é mais penosa, mais cheia de angústias, mais longa e dolorosa a agonia. Outras há, porém, cujas almas, ao contrário, se encontram presas ao corpo por liames tão frágeis, que a separação se efectua sem abalos, com a maior facilidade e frequentemente antes que se dê a morte do corpo. Ao aproximar-se-lhes o termo da vida, essas almas entrevêem o mundo onde vão penetrar e pelo qual aspiram no momento da libertação completa. 

/… 


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos IV — A EMANCIPAÇÃO DA ALMA. 8º fragmento solto desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra