sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~

Capítulo Segundo

KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (III)

Ao dizer que, quando tratasse da questão do corpo fluídico atribuído a Jesus, fá-lo-ia de modo decidido, Kardec assumiu um compromisso baseado, principalmente, em duas coisas: nos documentos a serem recebidos dos Espíritos e na possível sanção do controle universal que esses mesmos documentos forneceriam. Esse o compromisso que vamos cobrar do Codificador, já que resolveu deixar ao futuro uma decisão, futuro do qual ele mesmo poderia ser personagem importante.

Pode-se reafirmar com bastante tranquilidade que Kardec, inicialmente, era refractário à ideia do corpo fluídico de Jesus, preferindo acreditar que esse corpo teria sido de carne. No entanto, ele mudaria de opinião se os factos, dos quais era humilde escravo, mostrassem que estava errado.

Logo no ano seguinte à análise que fizera da obra roustaingista, 1867, mês de Janeiro, Kardec publica na "Revista Espírita" uma carta de Roustaing, na qual, com breves palavras, informa sobre um erro de revisão havido em "Os Quatro Evangelhos" e faz as devidas correcções. Atente-se para o seguinte detalhe: Kardec apresenta a carta lacónico, dizendo: "O Sr. Roustaing, de Bordéus, dirigiu-nos a carta seguinte, pedindo a sua publicação". Não faz nenhuma referência à obra, não diz que ela, passados seis meses do seu comentário, merecia melhores atenções ou outra coisa qualquer. Há um silêncio do Codificador sobre a obra e sobre o assunto. Esta poderia ser uma ocasião propícia para dar força ao trabalho do Sr. Roustaing. Kardec, talvez, não tivesse chegado a conclusão alguma, ou quem sabe estava preparando estudos mais detalhados a seu respeito. Esse silêncio, de qualquer forma, é sintomático. Daí para a frente, ele cairia de forma definitiva sobre a figura de Roustaing, que não mais retornaria à "Revista Espírita" enquanto Kardec fosse vivo. O mesmo acontece com a médium Emilie Collignon, que não vê mais nenhuma mensagem de sua autoria mediúnica publicada na "Revista". Ambos deixam de figurar no principal órgão da imprensa espírita mundial e nem mesmo quando Kardec faz referências a qualquer facto ocorrido em Bordéus menciona algo sobre o primeiro ou a segunda. As mensagens mediúnicas, no entanto, continuam tendo lugar de destaque na "Revista", mas nenhuma delas vem com o selo da médium Collignon.

Sobre a teoria do corpo fluídico de Jesus, entretanto, o silêncio de Kardec foi quebrado pela publicação do livro "A Génese", em 1868. Ali, ele define a sua posição sobre o assunto e esclarece as razões que o levaram a isso. É contra o corpo fluídico, responde "decididamente", reafirmando que "os factos podem ser explicados sem sair das condições da humanidade corporal". Não aceita Cristo com um corpo diferente das criaturas encarnadas porque não vê nenhuma vantagem nisso e porque o agénere, como ele entende e explica, não poderia resistir a uma vida inteira às vicissitudes de um mundo como a Terra, cheio de surpresas, agressões e dificuldades. Há, ainda, o detalhe moral, que para Kardec assume posição de destaque: o corpo fluídico forçaria Cristo a uma vida de saltimbanco e prestidigitador, de artista preocupado em não ser visto atrás do cenário sob pena de perder o respeito e a admiração. Kardec vê, pois; pelo aspecto científico e pelo moral e em ambos decide por um Cristo vivenciando a realidade do exemplo em corpo de carne.

De 1866, quando realizou a análise referida da obra "Os Quatro Evangelhos", até 1868, quando lançou a primeira edição de "A Génese", Kardec estudou o assunto com algum interesse. Teria tido tempo de analisá-lo nos seus diversos ângulos? A posição firme e decidida como o tratou leva a crer que sim, caso contrário deixaria de se manifestar contra e manteria a opinião de neutralidade exposta na "Revista Espírita". E mais ainda, não seria agora que iria contradizer a posição assumida e demonstrada em todos os seus estudos, a de ouvir o parecer de diversos Espíritos. Depois, ao lançar a segunda edição de "A Génese", fez questão de afirmar que nada havia sido alterado com relação à primeira. Em assunto de muito maior importância, como o da reencarnação, Kardec manteve-se silencioso até à perfeita concordância, inclusive contrariando aquilo que ele mesmo pensava sobre a questão. Era de seu carácter não avançar qualquer conclusão. Por isso, o seu parecer sobre o corpo fluídico de Jesus tem o mesmo peso que sobre outros assuntos.

O raciocínio de Kardec está assim desenvolvido: Jesus é um homem e, "como homem, tinha a organização dos seres carnais; mas como Espírito puro, destacado da matéria, devia viver na vida espiritual mais que na vida corporal, da qual não tinha as fraquezas. A superioridade de Jesus sobre os homens não era relativa às qualidades particulares do seu corpo, mas às do seu Espírito, que dominava a matéria de maneira absoluta, e ao seu perispírito alimentado pela parte a mais quintessenciada dos fluidos terrestres" (i). Kardec vê na capacidade do Espírito o factor mais importante de uma encarnação. Mediante esse raciocínio, Jesus, por ser um Espírito superior, o mais experimentado e puro de quantos já encarnaram na Terra, teria tido condições de viver uma vida muito mais espiritual do que material, dominando o corpo físico e submetendo-o às suas vontades. Entra aí, também, a natureza do seu perispírito, formado de acordo com a sua superioridade.

 Um ligeiro retrospecto sobre o perispírito, ainda segundo Kardec (ii)vai mostrar que a sua natureza "está sempre em relação com o grau de adiantamento moral do Espírito. Os Espíritos inferiores não podem mudá-lo à sua vontade, e por conseguinte não podem se transportar à vontade de um mundo para o outro. É o caso em que o envoltório fluídico, se bem que etéreo e imponderável em relação à matéria tangível, ainda é muito pesado, se assim se pode exprimir, em relação ao mundo espiritual, para lhes permitir saírem do seu ambiente. Será preciso classificar nesta categoria aqueles cujo perispírito é bastante grosseiro para que eles o confundam com o corpo carnal, e que, por esta razão, acreditam estar sempre vivos. Estes Espíritos, cujo número é grande, permanecem na superfície da Terra, tal como os encarnados, acreditando sempre ocupar-se com o que estão habituados; outros, um pouco mais desmaterializados, entretanto não o são o suficiente para se elevar acima das regiões terrestres.

"Os Espíritos superiores,- prossegue Kardec- ao contrário, podem vir aos mundos inferiores e mesmo aí se encarnar. Dos elementos constitutivos do mundo em que entram, eles extraem os materiais do envoltório fluídico ou carnal apropriado ao ambiente onde se encontram. Fazem como o grande senhor que deixa as suas belas roupas para vestir-se momentaneamente com trajes plebeus, sem que por isso deixe de ser o grande senhor.

"É assim (finaliza) que os Espíritos das ordens mais elevadas podem se manifestar aos habitantes da Terra, ou encarnar-se entre eles, em missão. Tais Espíritos trazem consigo, não o envoltório, mas a lembrança por intuição das regiões de onde provêm, e que vêem no pensamento. São como videntes no meio de cegos."

Jesus se enquadra, perfeitamente, entre os Espíritos superiores citados! Kardec o vê nesta condição com toda a tranquilidade.

Uma contradição de certas obras que defendem a tese do corpo fluídico de Jesus aparece exactamente aqui, neste ponto. Opinam que os Espíritos da condição de Jesus jamais encarnam. Uma dessas opiniões diz assim: "Os Cristos, Espíritos Puríssimos, não encarnam. Não têm mais nenhuma afinidade essencial com qualquer tipo de matéria, que é o mais baixo estágio da energia universal. Para eles, a matéria é lama fecunda, que não desprezam, sobre a qual indirectamente trabalham através dos seus prepostos, na sublime mordomia da Vida, mas coisa com que não podem associar-se contextualmente, muito menos em íntimas ligações genéticas. Eles podem ir a qualquer parte dos Universos e actuar onde lhes ordene a Vontade Todo-Poderosa de Deus Pai; podem mesmo mostrar-se visualmente, por imenso sacrifício de amor, a seres inferiores e materializados, indo até ao extremo de submeter-se ao quase-aniquilamento de tangibilizar-se à vista e ao tacto de habitantes de mundos inferiores, como a Terra; mas não podem encarnar-se, ligar-se biologicamente a um ovo de organismo animal, em processo absolutamente incompatível com a sua natureza e tecnicamente irrealizável" (iii)Kardec não concorda, absolutamente, com esta opinião. Com mais simplicidade ele atinge as profundezas, é mais feliz até nas imagens que usa para fazer-se entender, tal a do grande senhor que deixa as suas vestes ricas pelas pobres mas continua sendo o grande senhor. Sem dúvida, essa "sujeira", essa lama enriquece a experiência dos Espíritos que reencarnam, sejam superiores ou não, no dizer de Kardec. Já não é o caso dos que crêem de acordo com a opinião transcrita acima. Questão de humildade, questão de orgulho!...

Retornando a Jesus (iv)afirma o Codificador que "a sua alma não devia estar ligada ao corpo senão por laços estritamente indispensáveis; constantemente separada, ela devia lhe dar uma vista dupla não só permanente, como também de uma penetração excepcional e por outro modo muito superior àquela que se encontra nos homens comuns. O mesmo devia acontecer com todos os fenómenos que dependem dos fluidos perispiritais ou psíquicos. A qualidade de tais fluidos lhe dava um imenso poder magnético, secundado pelo desejo incessante de fazer o bem".

As coisas de Jesus se passam, assim, de modo muito simples. A sua capacidade de Espírito superior, as propriedades do seu perispírito e o imenso desejo de auxiliar faziam com que a sua vida transcorresse de modo vitorioso como a de nenhum outro encarnado. É, interessante verificar que desse raciocínio se conclui, também, que qualquer outra criatura poderia viver a mesma vida desprendida, bastando que tivesse alcançado a evolução de Cristo. Assim, pois, esse Jesus da visão kardequiana está próximo da criatura encarnada até fisicamente, sem qualquer perigo de diluir-se no ar repentinamente...
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(i) "A Génese", cap. XV, item 2.
(ii) "A Génese", cap. XV, item 9.
(iii) "Universo e Vida", cap. VII.
(iv) “A Génese”, cap. XV, item 2.


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO FLUÍDICO 3 de 6, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Pintura de Josefina Robirosa)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Inquietações Primaveris ~

A Extinção da Vida (II)

Vivemos até agora num torniquete de contradições alimentadas por grosseiros e desumanos interesses imediatistas.

O mundo se apresenta em fase de renovação cultural, política e social, povoado por gerações novas que anseiam pelo futuro e se encontram oprimidas e marginalizadas pelo domínio arbitrário dos velhos, dolorosamente apegados a vícios insanáveis de um passado em escombros.

A prudência medrosa dos velhos e o anacronismo fatal de suas ideias, de suas superstições e do seu apego desesperado à vida como ela foi e não como ela é, esmagam sob a pressão da mentalidade antiquada apoiada no domínio das estruturas tradicionalmente montadas dos dispositivos de segurança. Essa situação negativa é transitória, em virtude da morte, que renova as gerações, mas prolongando-se nesses dispositivos garante o prolongamento indefinido da situação, ao mesmo tempo em que as novas gerações, marginalizadas politicamente, não dispõem de experiências e conhecimentos para enfrentar os dominadores, caindo em apatia e desinteresse pela vida pública. Essa situação se agrava com a ocorrência de tentativas geralmente ingénuas e inconsequentes de jovens explorados por grupos violentos, o que provoca o desencadeamento da pressão oficial, geralmente seguida de réplicas terroristas. É o que se vê, principalmente, nos países europeus arrasados material e espiritualmente pela segunda guerra mundial.

Esse impasse internacional só pode ser rompido por medidas e atitudes válidas dos governos das nações em que o choque de mentalidades antagónicas não chegou a produzir estragos materiais e morais irrecuperáveis. Muito podem contribuir para o restabelecimento de um estado normal nas instituições culturais, através de cursos e divulgações, pelos meios de comunicação organizados e dados por especialistas hábeis.

A Educação para a Morte, dada nas escolas de todos os graus, não como matéria independente, mas ligada a todas as matérias dos cursos, insistindo no estudo dos problemas existenciais, irá despertando as consciências, através de dados científicos positivos, para a compreensão mais clara e racional dos problemas da vida e da morte. Todo o empenho deve concentrar-se na orientação ética da vida humana, baseada no direito à vida comunitária livre, em que todos os cidadãos podem gozar das franquias sociais, sem restrições de ordem social, política, cultural, racial ou de castas. O importante é mostrar, objectivamente, que a vida é o caminho da morte, mas que a morte não é o fim da existência humana, pois esta prossegue nas hipóstases espirituais do universo, nas quais o espírito se renova moralmente e se prepara com vista a novas encarnações na linha da evolução ôntica da Humanidade.

Nascimento e morte são fenómenos biológicos interpenetrados. A vida e a morte constituem os elementos básicos de todas as vidas, que, por isso mesmo, são também mortais. O inferno mitológico dos pagãos devia ter desaparecido com o advento do Cristianismo, mas foi substituído pelo inferno cristão, mais cruel e feroz que o pagão. As carpideiras antigas deixaram de chorar profissionalmente nos velórios, mas os cerimoniais funerários da Igreja substituíram de maneira mais pungente e desesperadora, com pompas sombrias e latinório lastimante, prolongados em semanas e meses, o lamento por aqueles que apenas cumpriram uma lei natural da  vida. A ideia trágica da morte sobrevive no nosso tempo, apesar do avanço das Ciências e do desenvolvimento geral da Cultura. Há milhões de anos morremos e ainda não aprendemos que a vida e a morte são ocorrências naturais. E as religiões da morte, que vampirescamente vivem dos gordos rendimentos das celebrações fúnebres e das rezas indefinidamente pagas pelos familiares e amigos dos mortos, empenham-se num combate contra os que pesquisam e revelam o verdadeiro sentido da morte. A ideia fixa de que a morte é o fim e o terror das condenações de após a morte sustentam esse comércio necrófilo em todo o mundo. Contra esse comércio simoníaco é necessário desenvolver-se a Educação para a Morte, que, restabelecendo a naturalidade do fenómeno, dará aos homens a visão consoladora e cheia de esperanças reais da continuidade natural da vida nas dimensões espirituais e a certeza dos retornos através do processo biológico da reencarnação, claramente ensinado nos próprios Evangelhos.

Conhecendo o mecanismo da vida, em que nascimento e morte se revezam incessantemente, os instintos de morte e os seus impulsos criminosos irão atenuando-se até desaparecerem por completo. Os desejos maldosos de extinção da vida, que originam os suicídios, os assassinatos e as guerras, tenderão a transformar-se nos instintos da vida. A esperança e a confiança em Deus, bem como a confiança na vida e nas leis naturais, criarão um novo clima no planeta, hoje devastado pelo desespero humano. O medo e o desespero desaparecerão com o esclarecimento racional e científico do mistério da morte, esse enigma que a ressurreição de Jesus e os seus ensinos, bem como os do Apóstolo Paulo, já deviam ter esclarecido há dois mil anos.
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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 4 A Extinção da Vida 2 de 2, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)