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domingo, 13 de julho de 2025

a liberdade é também um princípio estético fundamental ~


uma possibilidade | humana

As grandes fases da evolução humana caracterizam-se pelo predomínio da liberdade. Mas a sequência histórica de cada uma dessas fases assinala o retorno à escravidão. Basta isso para nos mostrar que a liberdade é impossível no destino humano. Os tempos primitivos mostram-nos o homem atrelado ao clã e à horda. O seu instinto gregário é um impositivo da sua fragilidade em face da natureza carregada de ameaças e perigos. No clã, na horda ou na tribo ele se vê obrigado, para garantir a sua sobrevivência e a da prole, a organizar as primeiras estruturas sociais e a estabelecer ligações ou alianças com outros grupos. Os mais fortes dominam cada grupo e se constituem na garantia da liberdade do grupo. Se não houvesse outras exigências além da garantia da sobrevivência, o possível da liberdade humana teria morrido ao nascer. Mas o anseio de transcendência, determinado pelo sentimento inato da subjectividade do Ser, coloca ao lado da força física do Cacique o poder espiritual do Pagé. E na proporção em que o grupo cresce e penetra na historicidade dos factos, que gera a tradição e a mitologia das façanhas e dos espantos, a experiência e a prudência impõem-se através dos conselhos tribais. Equilibra-se o poder da força bruta com o poder da razão, dando nascimento aos Manes e deuses tutelares. A realidade confusa do mundo estrutura-se em dois planos: o das coisas e seres concretos e o do imaginário imprevisível. As forças cósmicas, transformadas em figuras antropomórficas, vigiam do alto do céu e do fundo das matas a aventura do homem na Terra. A multiplicidade de poderes em acção garante a liberdade individual nas condições dialécticas da existência. Está esboçado o panorama dos sonhos de liberdade, em que as aspirações de justiça marcarão o roteiro das civilizações. Bastam essas aspirações, sempre em choque com as pretensões atrevidas da força bruta, para mostrar que a consciência humana se fundamenta no pressuposto da liberdade.

As civilizações agrárias e pastoris, florescendo no seio da Natureza, estabelecem a sintonia dos ritmos telúricos com os ritmos do processo existencial. O homem percebe que a rigidez do seu condicionamento ao chão, e consequentemente ao meio, não o priva da liberdade de pensamento e acção. Descobre que agir sobre o meio é modificá-lo, ao mesmo tempo em que se modifica a si mesmo nas dimensões da temporalidade. Essa descoberta ampara e estimula os seus anseios de liberdade, mostrando-lhe que ele possui a jurisdição de si mesmo. Dessa descoberta nasce o sentimento de responsabilidade que vai marcar ao mesmo tempo os limites do seu poder, do seu dever e das suas possibilidades de ascendência. Nas grandes civilizações orientais, de estrutura massiva, a exigência de ampliação da sua responsabilidade a dimensões abstractas leva-o a recorrer à teocracia, que gera as investiduras divinas dos reis e príncipes, condição humana que lhe parece insuficiente para a direcção do Estado. O gigantismo das civilizações teocráticas obriga-o a abdicar de sua jurisdição individual e entregar-se ao poder supremo dos deuses. Este poder, por sua própria natureza abstracta, projecta-se nas estruturas legais que possam abranger a multiplicidade dos aspectos da ordem instituída. Em consequência, o poder divino acrescido ao homem, por ele mesmo, leva-o a sufocar a liberdade individual. A sociedade regride às condições da estrutura tribal, com o predomínio da força bruta que engaja cada indivíduo à engrenagem gigantesca do Estado, segundo a aguda observação de Denis de Rougemont. O homem não é mais um indivíduo, mas uma arruela ou um pino da estrutura mecânica, regida pelo poder dos deuses através dos seus mandatários divinos. O cacique tribal transformou-se no Rei Ungido que representa a Divindade e o Pagé mágico que se multiplicou nos sacerdotes que confabulam com Deus e controlam as actividades dos súbditos. Nasce das cinzas dos pastores e agricultores ingénuos, há muito soterrados nos campos, o Leviatã de Hobbes. O modelo dos Estados sagrados e totalitários constituiu-se dos três poderes que a Revolução Francesa terá de enfrentar para restabelecer a liberdade sob a inspiração do Contrato Social de Rousseau.

É no antigo Império Persa que vamos assistir à morte das civilizações teocráticas, quando um novo poder, nascido das guerras de conquista, o poder militar, se imporá pela força das armas sobre o poder teocrático. Da divisão dos poderes na Pérsia nascerão na Grécia os Estados antípodas de Esparta e Atenas, o primeiro rigidamente totalitário e militar, esmagando os anseios da liberdade individual, e o segundo, ainda teocrático e escravagista, mas tocado pelo fogo de Prometeu, ao sopro revivificador da Filosofia, libertando o indivíduo das garras do Leviatã e abrindo perspectivas para o desenvolvimento do pensamento livre e, portanto, da cultura. Mas a Esparta projecta-se em Roma e gera o Império dos Césares que determinará um retrocesso histórico. O cidadão romano é o novo tipo de homem, engajado à estrutura estatal, que esmagara a Grécia e se embriagará com o sangue generoso dos seus filósofos. A Roma camponesa não conseguira asfixiar em si mesma, ao transformar-se no Leviatã, os princípios de justiça que a nortearam nos primórdios do seu desenvolvimento. Esses princípios levarão a velha Loba ao afrouxamento da sua estrutura, nos tempos de fastígio, e permitirá o restabelecimento da liberdade individual na mais corrosiva de suas formas, a da libertinagem. Dois factores contraditórios a levarão à queda: a mensagem cristã provinda da civilização agrária e pastoril da Palestina e a voracidade das hordas bárbaras do Norte. A fusão desses factores gerou o milénio medieval, ressurreição dos Estados Teocráticos na Europa devastada. A liberdade individual foi novamente esmagada pelo Império da Igreja, mas o fermento do Evangelho levedou lentamente, ao rogo das guerras e das fogueiras inquisitórias, a massa dos povos bárbaros e acendeu na Renascença, com novo ímpeto e maior ardor, os anseios de liberdade. Graças a isso, as fases de grandeza espiritual de Atenas filosófica e estética, da palestina profética, puderam ressurgir das cinzas para um novo e poderoso surto da evolução humana. O homem renascentista não nasceu engajado a uma estrutura estatal. Descendia, embora por vias tortuosas, dos israelitas discutidores, dos atenienses filosofantes e dos romanos da República, tendo por modelos e guias o racionalismo suicida de Abelardo e os sonhos de liberdade de Descartes Rousseau.

Nem mesmo o contragolpe de Bonaparte conseguiu sufocar as aspirações libertárias da França, que repercutiram no mundo e floresceram na América. A hecatombe nazi-fascista ameaçaria novamente os povos e o desenvolvimento do chamado complexo industrial militar frustraria as esperanças da liberdade do pós-guerra. Mas os triunfos da força revertem na negação de si mesmos, ante o desenvolvimento cultural, firmado nos princípios humanistas dos novos tempos. Porque o dilema que hoje nos desafia na Estrada de Tebas é irreversível: ou deciframos o enigma da esfinge nuclear ou ela nos devorará. Temos de compreender que o avanço científico é uma conquista da civilização e não da barbárie, um repto do homem a si mesmo, para que ele confirme a sua natureza espiritual ou a negue, entregando-se à inconsciência das feras. A violência desencadeada no mundo, dos nossos dias, e impunemente aplicada em nome de princípios superiores, tem o seu limite fatalmente marcado pelo genocídio dos cogumelos atómicos. Nenhum poder é concedido ao homem sem o preço marcado na sua própria consciência. O preço da violência é a morte e, neste caso, a destruição total da Humanidade. A chamada guerra dos botões é uma reticência trágica para todos os que desenvolveram o poder do espírito e com ele penetraram nos segredos da matéria. Há um ensino de Jesus que devemos lembrar nesta hora, porque agora ele se torna claro e objectivo: “Todos os pecados serão perdoados ao homem, menos o pecado contra o espírito.” Temos pecado ignominiosamente contra o espírito através de guerras e matanças, atentados brutais, perseguições e torturas, assassinatos covardes de prisioneiros inermes, toda uma série hedionda de manifestações de bestialidade, enlouquecidos pela arrogância da força bruta. Negamos a liberdade de pensamento, que é o selo da dignidade humana, e com as armas defensivas das nações partimos para a agressão interna, transformando cada nação num sistema fechado de aniquilamento dos seus próprios filhos, na violência desmedida contra os direitos do espírito. Aviltamos o mundo e aviltamo-nos, desde os campos de concentração nazi-fascista até aos campos de trabalho forçado e morte lenta do sistema comunista, até às mortes programadas pelos computadores das chamadas nações democráticas e as agressões genocidas das grandes potências contra pequenas e heróicas nações indefesas. Tocamos agora a barreira do nosso próprio poder liberticida. O desafio é simples: carregamos os botões da destruição total ou retomamos a condição humana. Pagamos o preço fatal do pecado contra o espírito ou o resgataremos de joelhos sobre a infinidade de covas em que sepultamos as vítimas da nossa arrogância, com o desprezo da prepotência e os rituais bárbaros da intimidação colectiva.

Nunca os bárbaros foram tão bárbaros como na pele do homem do Século XX. Nunca o poder das armas esmagou e silenciou populações inermes em todo o mundo, na mais trágica demonstração de covardia de todos os tempos. Mas os dragões minúsculos e invisíveis dos átomos agora esperam os mandatários da violência para triturá-los com os seus dentes nucleares, na mais refinada forma de igualitarismo democrático, de nivelação total de carrascos e vítimas, sob o signo da morte global. Onde os covardes acharão coragem para morrer como homens?

Mas mesmo que cheguemos a essa escatologia trágica, os sonhos de liberdade não serão liquidados. A Terra devastada e envenenada pelas emanações atómicas continuará a girar nos espaços siderais. Os resíduos da infâmia desaparecerão de sua face calcinada. O seu poder de recuperação e renovação não será extinto, porque se alimenta nas fontes cósmicas. Germinarão de novo as plantas, os animais reconstruirão a sua fertilidade e uma nova raça humana a povoará, para que os desígnios de Deus se cumpram após a falência dos homens. Então ela não será mais um planeta andrajoso, coberto de ruínas, um túmulo de indignidade humana, mas um monumento vivo e radiante à dignidade dos que, numa raça de víboras, souberam resistir até ao último instante. Talvez nesse tempo os monstros que devoraram o planeta no delírio da arrogância possam despertar, em algum lugar do Infinito, para a consciência de sua brutalidade. Da situação miserável em que caíram, com as suas mandíbulas de fera, apropriadas à condição que preferiram, mastigando ossos e destroços, talvez consigam vislumbrar – num céu escuro e opaco – as tímidas cintilações das estrelas longínquas, apavoradas com a visão das suas monstruosidades. Só assim poderão renascer para novas existências, como os "luzbéis" arrependidos de um mito bíblico jamais escrito.

Cada aspecto de um tema requer linguagem apropriada para o seu desenvolvimento. Essa linguagem não é estudada, não é preparada de antemão, pois a sua natureza é genésica; ela brota das entranhas do próprio tema pela necessidade vital de expressão adequada. Não traçamos esse panorama assombroso com os recursos da imaginação. Ele não é uma criação fantasiosa, é um dado real que surge da situação desesperante do mundo. O impacto de sua percepção aturde primeiro o observador que teve a temeridade de encará-lo. Depois esse impacto se transmite ao público para despertá-lo de uma apatia forçada, reerguendo-lhe as energias anestesiadas pelo medo e restabelecendo-lhe a capacidade de pensar e analisar. A morte da liberdade é a morte do homem. Porque o homem nasce da liberdade e é liberdade. A sua carne e o seu espírito são a vitória da liberdade imolada. Nas metamorfoses genésicas ele passa de um reino da natureza para outro. Desenvolve o seu poder estruturador na pedra e nela permanece em estado cataléptico até ao momento de projectar-se nas estruturações vegetais, em que desenvolve a sua sensibilidade e se transforma na doação de que falava Hegel, abrindo-se em ramagens, flores e frutos. Pouco a pouco aglutina as primeiras formações animais, como nos mostram as pesquisas sobre a evolução dos reinos naturais. Desenvolve então a motilidade – nada, voa, anda, desligado da matriz terrena – e as potencialidades da inteligência. Como animal ele está ainda envolto numa pele densa e forte, coberta de pelos ou escamas, de invólucros protectores para a conquista das suas experiências vitais. Mas no homem a carne se refina e se apura, a pele se torna fina e flexível, a sensibilidade se aguça, a mente se abre na delicada estrutura cerebral como uma flor que desabrocha, o espírito imolado recobra a sua natureza, que é a liberdade.

Todo esse imenso e complexo processo criador atinge a sua frutificação nas conquistas da inteligência humana, semelhante a Deus, dotada de poder criador. E é essa obra-prima que ele mesmo avilta e esmaga quando se entrega aos resíduos das fases anteriores da evolução criadora, segundo BergsonQuando as mãos animalescas da insensatez reduzem tudo isso a um cadáver sangrento e sem vida, pela fria decisão de um tribunal dogmático, arbitrariamente em nome de Deus, da Pátria ou da Sociedade, o homem peca contra o espírito, o que vale dizer: contra a sua própria natureza de Ser espiritual. É verdade que não destruiu o homem nem a vida, mas aniquilou um trabalho milenar dos poderes criadores do espírito. Por outro lado, atentou contra a dignidade humana e o direito à vida, ao reajuste dos seus possíveis desajustamentos sociais e culturais, ao progresso que ainda poderia realizar no desenvolvimento das suas potencialidades espirituais. Além disso, cada acto dessa natureza é um incentivo à violência, à brutalidade, ao crime, aos desrespeitos aviltantes ao supremo direito do homem, o direito à liberdade.

Não há sofismas, por mais aparentemente brilhantes, por mais aprovados e institucionalizados nas falíveis convenções humanas, que possam justificar esse acto contrário aos desígnios de Deus inscritos na consciência humana.

A tudo isso devemos acrescentar as dolorosas consequências do crime na vida dos familiares do condenado. Quantas dores e lágrimas, que de suplícios e humilhações, desesperos e angústias esmagarão criaturas inocentes que jamais aceitarão essa pretensa justiça produzida nas retortas escusas das convenções humanas, manchadas por interesses inferiores, por ambições vorazes e pretensões orgulhosas de infalibilidade do falível julgamento humano. As sociedades e civilizações que se defendem sacrificando as suas próprias vítimas, os injustiçados pelos desníveis sócio-económicos de estruturas forjadas pelas leis da selva, são duplamente criminosas. A queda do homem na sociedade, que Rousseau definiu apoiado nas suas próprias experiências de vítima dando forma social ao mito bíblico da queda, é uma realidade flagrante em todo o mundo. Só há um meio de redenção das sociedades criminosas: o abandono dos métodos de coação violenta e a adopção de meios humanos de recuperação e resgate dos indivíduos transviados.

O princípio ético de preservação da liberdade exige a reformulação social e cultural do mundo. Por isso, René Hubert recomenda uma pedagogia estética que corresponda ao sentido profundo do acto de amor do processo educacional. Só pelo desenvolvimento da consciência estética, síntese consciencial que liberta o homem da arrogância e da brutalidade, aprimorando-lhe a sensibilidade estética – como Kant já reconhecera – poderemos estabelecer na Terra uma civilização de justiça e harmonia, condizente com as aspirações mais profundas e generalizadas da espécie humana. A liberdade é também um princípio estético fundamental, como Schiller demonstrou nos seus estudos de estética. Sem liberdade não há criação artística válida nem ética verdadeira.
/...

José Herculano Pires, Os Sonhos de Liberdade, – Uma Possibilidade Humana, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites

domingo, 12 de novembro de 2023

belo maio | bela como os lírios ~


XVI

Jeanne d'Arc e o ideal céltico ~

(I de IV)

Ó terra de granito esmaltada de carvalhos!

Uma noite, o Espírito de J. Michelet, precedendo e anunciando o de Jeanne d'Arc, dirigiu-nos estas palavras, no decorrer de uma das nossas reuniões de estudo:

“Jeanne adquiriu nas suas existências anteriores o sentimento dos grandes deveres que teria de cumprir. Encontrámo-nos muitas vezes nesses longínquos tempos. O laço que desde então se estabeleceu entre nós a atrai. Ela vos inspirará, do mesmo modo pelo qual me inspirou a mim. O meu livro não foi mais do que um eco da sua paixão pela França e pela verdade. Vai agora descer, para vos transmitir uma parcela da verdade divina.”

Jeanne, como todas as almas que connosco percorrem o ciclo imenso da evolução, contou numerosas existências na Terra. Algumas foram brilhantes, vividas sobre os degraus de um trono; outras obscuras; todas, porém, de resultados fecundos para o seu próprio adiantamento e benéficas para os seus semelhantes.

As primeiras transcorreram durante o período céltico, no país de Armor. Lá é que a sua personalidade se impregnou dessa natureza particular, feita de ideal, de intrepidez e de mística poesia, que a caracteriza no décimo quinto século.

Desde a infância em Domremy, aprazia-lhe frequentar os lugares onde se celebraram os ritos druídicos: os bosques de carvalho, testemunhas das antigas evocações das almas, as fontes sagradas, os monumentos de pedras brutas, esparsas aqui e ali, nos arredores da aldeia. Gostava de adentrar-se na espessa floresta, para lhe escutar as harmonias, quando, sacudindo-a, o vento a fazia vibrar qual harpa gigantesca. Com o olhar de vidente, distinguia, por sob as abóbadas verdejantes, as misteriosas sombras dos que presidiam àquelas evocações e aos sacrifícios. Entre os seus guias invisíveis, poder-se-ia deparar com os Espíritos protectores das Gálias, os mesmos que em todas as eras prestaram assistência aos filhos de Artur e de Merlin e dão aos que lutam por uma causa nobre a vontade e o amor que conduzem à vitória.

Feneceu nas ramagens o visco, nos lares apagou-se a chama sagrada; mas, no coração de Jeanne, vívida estará sempre a fé nas vidas inextinguíveis e nos mundos superiores. Os historiadores, que lhe souberam analisar e compreender o carácter, reconheceram nele os influxos de uma dupla corrente – céltica e cristã, cuja origem ela própria nos indicará em breve. Henri Martin, notadamente, a acentuou nas páginas de sua História. Em primeiro lugar, ele assinala, nos seguintes termos, as lembranças deixadas pelos Celtas, ainda vivas no tempo da heroína:

“Próximo da casa de Jeanne d'Arc passava uma vereda que, atravessando tufos de groselheiras, subia o outeiro a cujo cimo, coberto de mata, era dado o nome de Bois Chesnu. A meia encosta, debaixo de grande faia isolada, borbotava uma fonte, objecto de culto tradicional. Nas suas águas claras, desde tempos imemoráveis, buscavam a cura os enfermos que a febre atormentava... Seres misteriosos, anteriores entre nós ao cristianismo e que os camponeses nunca assentiram em confundir com os espíritos infernais da legenda cristã, os génios das águas, das pedras e dos bosques, as senhoras fadasfrequentavam a cristalina fonte e a faia secular, que se chamava o Belo Maio. Ao entrar a primavera, vinham as donzelas dançar em baixo da árvore de Maio, “bela como os lírios” e pendurar-lhe nos galhos, em honra das fadas Celtas, grinaldas que desapareciam durante a noite, segundo era voz geral”. (i)

Descreve em seguida as impressões da virgem Lorena:

“As duas grandes correntes que se haviam juntado para dar nascimento à poesia cavalheiresca, a do sentimento céltico e a do sentimento cristão, misturaram-se de novo para formar essa alma predestinada. A jovem pastora umas vezes sonha ao pé da árvore de Maio, ou sob os robles, doutas, passa horas esquecidas no fundo da pequenina igreja, em êxtase diante das santas imagens que resplandecem nas vidraças... Quanto às fadas, ela nunca as viu ao luar, descrevendo os círculos de suas danças, em volta do Belo Maio. A sua madrinha, porém, outrora as encontrara e Jeanne julga perceber de quando em quando formas imprecisas, nos vapores do crepúsculo: gemem vozes à tarde nos ramos dos carvalhos; as fadas já não dançam – choram: é o lamento da velha Gália que expira!”. (ii)

Finalmente, falando do processo de Ruão, diz ainda o mesmo autor: (iii)

“Jeanne soube opor o livre génio gaulês ao clero romano, que intentava pronunciar-se em definitivo sobre a existência da França. Por seu intermédio, o génio místico reivindica os direitos da personalidade humana, com a mesma força que o génio filosófico; a mesma alma, a grande alma da Gália, desabrochada no Santuário do Carvalho, brota igualmente no livre-arbítrio de Lérins e do Paracleto, na soberana independência da inspiração de Jeanne d'Arc e no Eu de Descartes.”

A própria Jeanne, confirmando esses modos de ver, assim se exprimia numa mensagem que ditou em Paris, no ano de 1898: (iv)

“Remontemos, por instantes, ao curso das idades, a fim de aprenderdes o caminho que percorri, preparando-me para transpor a etapa dolorosa que conheceis.

“Múltiplas foram as existências que contribuíram para o meu progresso espiritual. Decorreram na velha Armorica, debaixo do zimbório dos grandes robles seculares, cobertos do visco sagrado. Foi lá que, lentamente, me encaminhei para o estudo das leis do Espírito e para o culto da pátria.

“Oh! entre todas, benditas as horas em que o bardo, com os seus cantares alegres, nos fazia palpitar os corações e nos abria os olhos para a luz, permitindo-nos entrever as maravilhas do infinito! Ensinava-nos então que o passar da morte à ressurreição gloriosa do Espírito, no espaço, representa uma simples transformação, sombria, ou luminosa, conforme o homem se conduziu nesse mundo: ou seguindo a estrada da justiça e do amor, ou deixando-se dominar pelas forças avassaladoras da matéria. Fazia-nos compreender as leis da solidariedade e da abnegação; instruía-nos sobre o que era a prece, dizendo: “Orar é triunfar; a prece é o motor de que o pensamento se serve, para estimular as faculdades do Espírito, as quais, no espaço, constituem a sua ferramenta. A prece é o ímã poderoso do qual se desprende o fluido magnético espiritual, que, não só pode aliviar e curar, como também descerra ao Espírito horizontes sem fim e lhe dá azo de satisfazer ao desejo de conhecer e aproximar-se continuamente da fonte divina, donde emanam todas as coisas. A prece é o fio condutor que põe a criatura em relação com o Criador e com os seus missionários.”

“Um dia, compenetrada dessas verdades, adormeci e tive a seguinte visão: Assisti, primeiramente, a muitos combates, oh! impossível de serem evitados por efeito do livre-arbítrio de cada um; mas, sobretudo, por motivo do amor ao ouro e à dominação, os dois flagelos da Humanidade. Depois, descortinei claramente a grandeza futura da França e o seu papel de civilizadora no porvir. Deliberei consagrar-me muito particularmente a essa obra.

“Logo me vi rodeada de uma multidão simpática, que na maior parte chorava e deplorava a minha perda. Em seguida, o veneno, o cadafalso, a fogueira passam vagarosamente por diante de mim. Senti as labaredas devorando-me as carnes e desmaiei!... Vozes amigas chamaram-me à vida e me disseram: “Espera! A falange celeste que tem por missão velar sobre esse globo te escolheu para secundá-la nos seus trabalhos e assim acelerar o teu progresso espiritual. Mortifica a tua carne, a fim de que as suas leis não possam ser obstáculo ao teu Espírito. A provação será curta, porém rude. Ora e a força te será dada: colherás da tua obra todas as bênçãos nos tempos vindouros. Assegurarás a vitória da fé arrazoada contra o erro e a superstição. Prepara-te para fazer em tudo a vontade do Senhor, a fim de que, chegada a ocasião, tenhas adquirido bastante energia moral para resistir aos homens e obedecer a Deus! Seguindo estes conselhos, os mensageiros do céu virão a ti, ouvirás as suas vozes, eles te guiarão e aconselharão; podes ficar tranquila, não te hão de abandonar!”

“Como descrever o supremo anelo que se apoderou de mim! Senti o aguilhão do amor penetrar todo o meu ser. Já não tive outro objectivo que não fosse trabalhar pela libertação espiritual deste país abençoado, em que acabava de saborear o pão da vida e de beber pela taça dos fortes. Essa visão foi para a minha alma um celestial viático.”

/... 
(i) Henri Martin – Histoire de France, t. VI, páginas 138 e 193.
(ii) Ibidem, pág. 140.
(iii) Ibidem, t. VI, pág. 302.
(iv) Ver: Revue Seientifique et Morale du Spiritisme, Janeiro de 1898.


Léon Denis, Jeanne d’Arc Médium, Segunda Parte – As missões de Jeanne d'Arc, XVI Jeanne d’Arc e o ideal céltico (I de IV) 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L'Annonciation, óleo sobre painel (1901), de Edgard Maxence

domingo, 16 de abril de 2023

o grande desconhecido ~


O PROCESSO CULTURAL

No desenvolvimento da Cultura, no nosso mundo, podemos assinalar três fases bem definidas no processo histórico:

A – Culturas Empíricas.
B – Culturas Religiosas.
C – Culturas Científicas.

As Culturas Empíricas desenvolvem-se nas relações primárias do homem com a Natureza, através das experiências naturais. Nessas experiências o homem elabora os três elementos básicos de toda a cultura:

– a linguagem.
– o rito.
– o instrumento.

Não se trata de uma elaboração sucessiva, mas sincrónica, de uma reelaboração das experiências animais.

Tudo se encadeia no Universo, diz O Livro dos Espíritos.

Nesse encadeamento as vozes animais transformam-se na linguagem humana, os ritos em rituais da sociabilidade humana e dos cerimoniais religiosos, as garras dos animais projectam-se nos instrumentos de madeira e pedra de que o homem se serve para agir sabre a Natureza e adaptá-la às suas necessidades de sobrevivência.

As experiências que desenvolvem a Cultura Empírica excitam as potencialidades do espírito, desenvolvendo-as nas tribos e nas hordas. A lei de adoração, proveniente da ideia inata de Deus no homem, gera a reverência pelos poderes misteriosos da Natureza e institui os primeiros rituais de reverência aos pagés ou xamãs e feiticeiros, bem como ao cacique e aos chefes guerreiros. O culto às divindades da selva nasce desses rituais.

A Cultura Empírica gera a Cultura Religiosa das primeiras tribos sedentárias. A ideia de Deus define-se mais nítida com o desenvolvimento da Razão, sob a influência dos ritos da Natureza, nas primeiras civilizações agrárias e pastoris. O milagre das germinações, no ritmo regular das estações e, a proliferação dos rebanhos provam a existência de inteligências controladoras dos fenómenos naturais e protectoras do homem. O animismo, projecção da alma humana nas coisas, impregna a Natureza com uma vida factícia em que a pedra, a árvore, o rio, o bosque, a montanha, o mar, tudo fala e pensa em condições humanas. As manifestações espíritas provam a realidade anímica da Natureza. A figura de Deus, Ser Superior, criador e dominador do mundo, impõe-se ao homem na forma necessariamente humana. E como Deus não pode estar sozinho, multiplica-se em mitos que simbolizam as suas várias actividades, ligadas às actividades humanas. Ao mesmo tempo, as forças destruidoras e as manifestações de espíritos malignos geram os mitos da oposição a Deus. Nasce o Diabo desse contraste, estabelecendo a luta entre o Bem e o Mal, sujeitando o homem à esperança da protecção divina e ao temor dos poderes maléficos.

A Cultura Religiosa configura-se na síntese dessa dialéctica do invisível e do visível, do sentimento e da sensação, fazendo evoluírem as civilizações agrárias e pastoris para a fase das civilizações teocráticas que se desenvolvem no Oriente, nas regiões em que brilha a luz em cada alvorecer.

Os ritmos da Terra e do Céu: Do dia e da noite, as estações do ano, o Sol e a Lua, as constelações anunciadoras de cada mudança no tempo, a chuva e as Inundações, os terramotos, as erupções vulcânicas, as pestes, as pragas, o relâmpago, o raio, as tempestades exigem a disciplinação do caos e ao mesmo tempo a complexidade dos cultos.

Os soberanos das nações são filhos de Deus e possuem poderes divinos.

A Cultura desenvolve-se na argamassa dos sentimentos e das sensações.

A Fé define-se como sentimento e sensação em misturas condicionadas pela Razão, expressa nas formulações filosóficas.

A Teologia brota desse complexo de mistérios como a Ciência Suprema dos videntes e dos profetas, dos homens mais do que homens de que falaria Descartes, homens privilegiados pela sabedoria infusa que desce do Céu para iluminar a Terra.

A Cultura Religiosa é uma oferenda celeste que os homens simplesmente homens não podem tocar com as suas mãos indignas, não podem avaliar com as suas mentes entorpecidas pelos interesses materiais e as ambições inferiores da vida perecível.

O mundo divide-se em duas partes inconciliáveis: surgem os conceitos do Sagrado e do Profano.

As Culturas Religiosas desligam-se da tradição empírica, rejeitam a experiência natural, relegando-a ao campo do profano, do pecaminoso. Entregam-se à alienação do suposto, do imaginário.

O Cristianismo envolve-se nas contradições humanas:

cai na simonia, no comércio ambicioso de sacramentos e indulgências, pregando a renúncia ao mundo e a santidade da pobreza;

proclama a humildade como virtude e investe-se do poder político;

denuncia o paganismo e o judaísmo como heréticos e assimila os seus elementos rituais e a sua política gananciosa;

prega o Reino de Deus e apossa-se dos reinos terrenos;

impugna a sabedoria grega e constrói o seu saber com decalques de Platão e Aristóteles;

ensina a fraternidade e promove as guerras fratricidas em nome de Deus;

erige-se em religião do Deus Único e divide Deus em três pessoas distintas;

institui o celibato como virtude e faz comércio ambicioso do sacramento do matrimónio;

combate a magia e reveste o seu culto de poderes mágicos;

luta contra as heresias e comete a suprema heresia de submeter Deus ao poder do sacerdócio no acto eucarístico;

profliga a idolatria e enche os seus templos com ídolos copiados da idolatria mitológica, chega ao máximo da alienação estabelecendo o sistema fechado das clausuras e dos mosteiros segregados;

prega o Evangelho e nega ao povo o acesso aos textos que considera privativos do clero;

proclama a supremacia espiritual do amor e semeia o ódio aos que não aceitam os seus

princípios.

A alienação cristã faz da cultura um sincretismo de absurdos assimilados de dogmas e rituais bastardos de igrejas e ordens ocultas da mais alta Antiguidade, transformando o conhecimento em gigantesca manta de retalhos em que as próprias vestes sacerdotais e paramentos do culto são copiados de antigas e condenadas igrejas.

A cultura cristã desenvolve-se com pressupostos falaciosos e um fabulário ridículo enxameado de superstições erigidas em verdades absolutas, provindas de revelações divinas.

A verdade artificial da sabedoria eclesiástica encobre a realidade com o espesso véu das elucubrações dos teólogos, modelos de esquizofrenia catatónica e megalomania delirante.

A cultura em evolução nas fases anteriores cai na estagnação de um charco de mentiras sagradas, pílulas doiradas de um anestésico.

Interrompe-se o processo cultural.

Não se pode conhecer mais nada. Cada Igreja tem a sua verdade própria e inverificável, sendo a Igreja Cristã a mais poderosa barreira a qualquer tentativa de investigação da realidade. A morte cruel é o prémio dos que se atreverem a rasgar o Véu de Isis para mostrar o corpo da Verdade Nua.

O desenvolvimento da imaginação criadora levara a cultura a um solipsismo devorador.

Tudo estava esclarecido, a imaginação dos poetas (considerados profetas) resolvia todos os mistérios em termos de mitologia grega ou tradição romana, os teólogos solucionavam os problemas da vida e da morte com belas frases em latim, as Igrejas detinham a Verdade Absoluta, amaldiçoando-se entre si e, velavam pela ordem cultural perseguindo e matando em nome de Deus os atrevidos que tentassem profanar a Palavra de Deus, escrita na Bíblia por velhíssimos judeus que haviam, num complô com César e o seu legado Pilatos, condenado à flagelação e à cruz um jovem carpinteiro que tivera a audácia de se apresentar como o Messias de Israel.

A Cultura Científica teve de romper a golpes de atrevimento a selva selvaggia dessa cultura religiosa inconsequente, contraditória e arrogante, empalhada como um pássaro morto em velhos pergaminhos de uma sabedoria feita de suposições e elucubrações pretensiosas.

O mundo dos homens desligara-se totalmente da realidade, fechando-se num casulo de formulações abstractas.

Mais bizantina que Bizâncio, Roma sofismava sobre problemas que se recusava a conhecer. Só a ignorância total e a ingenuidade das populações bárbaras poderiam aceitar. Após a queda do Império do Ocidente, comprovava-se historicamente a afirmação evangélica de que o ensino de Jesus seria deturpado e necessitaria de tempo para que os homens pudessem compreendê-lo.

O milénio medieval teria a função de desenvolver a razão como guia do pensamento e freio da imaginação, ao fogo das tragédias e loucuras de um misticismo criminoso, para que, no Renascimento, os frutos de experiências dolorosas abrissem perspectivas para o desenvolvimento de uma cultura realista, apoiada em pesquisas metódicas da realidade.

Foi então que a esquizofrenia mundial se revelou em definitivo: o espírito humano estava dividido numa cultura fantasiosa, formada pela dogmática absurda das religiões e, numa cultura rebelde, atrevida e exigente, que arrancava os homens da ilusão de um saber confuso, para oferecer-lhes o saber legítimo que iniciara a fase das experiências empíricas e se negara a si mesma no desenvolvimento alucinado do fanatismo religioso.

O movimento da Reforma, desencadeado por Lutero, em consequência das lutas de Abelardo e das proposições de Erasmo de Roterdão, em conjugação aparentemente ocasional com as tentativas de pesquisas objectivas de GalileuCopérnicoGiordano Bruno e outros mártires da Ciência nascente, marcavam os rumos de uma nova concepção do mundo e do homem.

Abelardo foi o precursor medieval de Descartes, que por sua vez foi o precursor de Kardec.

Aos fundamentos emocionais da Fé absurda e cega, os pioneiros do retomo ao real ofereciam os fundamentos da Razão esclarecida e da pesquisa científica.

A Verdade ressurgia das cinzas das fogueiras criminosas e a Fé de olhos abertos substituía a ceguinha esclerótica das sacristias.

Mas a luta pela Verdade da concepção cristã restabelecida só atingiria o seu apogeu nos meados do Século XIX, com a Codificação do Espiritismo, através das pesquisas pioneiras de Kardec sobre os fenómenos mediúnicos, hoje admitidos pela Ciência com a denominação de paranormais.

Kardec provara que os médiuns não eram anormais, como pretendiam os investigadores da Medicina e da Psicologia, nem sobrenaturais, como pretendiam os defensores de dogmas obsoletos, mas naturais e normais.

A Mediunidade impunha-se à pesquisa dos cientistas exponenciais da época, que rasgavam ao mesmo tempo o Véu do Templo, revelando os seus mistérios, os Véus de Isis, para desvendar o sentido dos símbolos mitológicos.

Os homens começaram então a aprender que não sabiam nada e tinham de lutar para descobrir a Verdade escondida atrás da aparência enganosa das coisas dos seres.

A Ciência Espírita instalou-se no mundo, com as consequências necessárias da Filosofia Espírita e da Religião em Espírito e Verdade.

Espiritismo, nos seus três aspectos, está hoje confirmado pela Cultura Científica e o seu alcance cósmico confirma-se ao ritmo acelerado das conquistas culturais do século, restabelecendo o ensino deturpado pelas ambições humanas, que Jesus de Nazaré semeou em palavras de vida e imortalidade nas almas de todos os tempos.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, I – O PROCESSO CULTURAL, 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O monge estuda as Escrituras | 1877, lápis e giz-estudo ao painel “A Educação de São Luís” Panteão, Paris (a mesma imagem, do monge, aos pés de Branca de Castela e de São Luís, nesse painel, óleo sobre tela) ambos de Alexandre Cabanel