terça-feira, 29 de junho de 2021

as vidas sucessivas | os elementos ~


~~ Experiências magnéticas Regressão da memória e previsão, Caso nº 2 Joséphine

Joséphine é uma jovem de dezoito anos, doméstica na casa de um alfaiate de Voiron, Sr. C., interessado, assim como sua esposa, pelo espiritismo, do qual são os únicos adeptos nesta cidade. Possui inteligência bastante comum e é tratada familiarmente pelos seus patrões, que a acusam apenas de ser um pouco astuciosa. (i)

Adormeci-a por meio de passes longitudinais para conhecer os fenómenos que ela apresentaria e fiquei admirado ao constatar que, sem nenhuma sugestão, eu a fazia remontar ao curso de sua vida, assim como a Laurent, que deixei de observar desde 1893. 

Ei-la com a idade de sete anos. Pergunto-lhe o que faz. 

– Frequento a escola. 

– Você sabe escrever? 

– Sim, estou a começar a aprender. 

Ponho-lhe uma pena na mão, ela escreve muito bem papá e mamã. Continuo os passes magnéticos e levo-a à idade dos cinco anos

Ela escreve por sílabas, pa. Ponho-lhe na mão um lenço dizendo-lhe que é uma boneca; ela parece bastante contente e põe-se a acariciá-la. Apresenta todas as características de uma menina dessa idade. Novos passes. Está agora provavelmente no berço e já não pode falar. Coloco-lhe a extremidade do dedo dentro da boca; ela o chupa. 

Após algumas sessões destinadas a torná-las mais flexíveis e a diminuir o tempo necessário para levá-la ao estado da primeira infância, tive a ideia de continuar os passes longitudinais. Interrogada, Joséphine respondeu por sinais às minhas perguntas, e foi assim que me mostrou pouco a pouco, em diferentes sessões, que não havia ainda nascido, que o corpo no qual devia encarnar estava no ventre de sua mãe à volta de quem ela se enroscava, mas cujas sensações tinham pouca influência sobre si. 

Um novo aprofundamento do sono determinou a manifestação de uma personagem cuja natureza tive a princípio dificuldades em determinar. 

Ela não queria dizer nem quem era, nem onde estava. Respondia-me, em tom brusco e com voz de homem, que estava lá, uma vez que me falava; porém, ela não via nada, encontrava-se na completa escuridão. (ii) 

Tendo-se o sono tornado ainda mais profundo, foi um velho deitado na sua cama e doente há muito tempo quem respondeu às minhas perguntas, após inúmeros rodeios, como um camponês astuto que teme comprometer-se e quer saber por que é interrogado.  
Figura 1 – Caligrafia de Joséphine adormecida e levada à personalidade de Jean-Claude Bourdon, com a idade de quinze anos. 
Figura 2 – Caligrafia de Joséphine, no estado de vigília, a quem dito o nome de Jean-Claude Bourdon. 

Enfim vim a saber que ele se chamava Jean-Claude Bourdon e que o lugarejo onde se encontrava era Champvent, na comuna de Polliat, porém ele não sabia em que departamento. (iii) 

Pouco a pouco consegui captar a sua confiança e eis aqui o que soube de sua vida, cujos diversos períodos fi-los reviver várias vezes. (iv) 

Ele nasceu em Champvent em 1812. (v) 

Frequentou a escola somente até aos dezoito anos, porque não aprendia grande coisa, podendo estar presente apenas durante o inverno e repetidamente faltando às aulas. Fez o serviço militar no 7º Regimento de Artilharia, em Besançon. (vi) 

Devia permanecer no Regimento durante sete anos, porém a morte de seu pai, permitiu a sua liberação, mais cedo, decorridos apenas quatro anos. Não recorda o nome de nenhum de seus oficiais; por outro lado, sabe que se distraía bastante, com os camaradas e as moças, narrando-me as suas escapadelas, enquanto anelava o bigode. 

De retorno à terra natal, reencontra a sua boa amiga Jeannette a quem devia desposar antes de partir e da qual só me falou depois de corar. Agora sabe que não é preciso desposar as mulheres para servir-se delas; já não quer casar e mantém Jeannette como amante. Observei-lhe que podia engravidar a pobre moça: “Bem, depois! ela não será a primeira nem a última.” Envelheceu isolado fazendo ele próprio a sua comida, limitada a sopa e charcutarias. Tinha na sua terra um irmão casado com filhos, queixa-se dos seus procedimentos para com ele e não os vê. Morre com a idade de setenta anos, após uma longa doença. Durante o período correspondente à doença, pergunto-lhe se não pensa em chamar o padre: “Ah! você está a zombar de mim. Você acredita em todas as besteiras que ele me diz? Ora, vá! quando se morre, é para sempre.” 

Morre. Sente-se sair do seu corpo, mas a ele continua preso durante um tempo bastante longo. Pôde seguir o seu enterro flutuando acima do caixão. Compreendeu vagamente o que as pessoas diziam: “Que grande alívio!” Na igreja, o padre andou em torno do féretro e produziu assim uma espécie de muro um pouco luminoso que o protegia dos maus espíritos que queriam precipitar-se sobre ele. As preces do padre também o acalmaram, porém tudo isso pouco durou. A água benta afastava igualmente os maus espíritos, porque os dissolve em toda a parte onde os alcança. No cemitério, ficou perto do seu corpo e sentiu-lhe a decomposição, o que o fazia sofrer muito. (vii) 

O seu corpo fluídico, que se tornou difuso depois da morte, retomou forma mais compacta. Ele vive na obscuridade, que lhe é penosa, mas não sofre, porque não matou nem roubou. Apenas sente sede algumas vezes, porque era bastante beberrão. Reconhece que a morte não é o que pensava. Não compreende bem o que lhe aconteceu, mas se soubesse antes o que agora sabe não teria zombado tanto do padre. Proponho-lhe fazê-lo reviver: “Ah! se assim o fizer, vou até gostar de você!” 

As trevas nas quais estava mergulhado acabaram por ser abertas por algumas luzes frouxas. Ele teve a inspiração de reencarnar num corpo de mulher, porque as mulheres sofrem mais do que os homens e ele tinha de expiar as faltas que havia cometido abusando das moças. Então aproximou-se daquela que seria a sua mãe, ficou perto dela até que a criança viesse ao mundo e, a seguir, entrou pouco a pouco no corpo dessa criança. Até cerca dos sete anos, havia em torno desse corpo uma espécie de névoa flutuante com a qual ele via muitas coisas que nunca mais voltou a ver. (viii)  

Quando acabei de extrair de Bourdon as informações que julgava úteis. (ix) 

Tentei recuar ainda mais longe no passado. Uma magnetização prolongada durante cerca de 45 minutos, sem demorar-me em nenhuma etapa, levou-me a Jean-Claude muito pequeno. 

Em seguida, nova personalidade. É agora uma senhora idosa que foi muito má, uma má língua que se comprazia em prejudicar as pessoas. Ela também sofre muito, o seu rosto é contraído por convulsões e às vezes ela se torce sobre a cadeira com uma expressão assustadora de dor. Encontra-se nas trevas espessas, cercada de maus espíritos que tomam formas horrendas para atormentá-la e atormentar os vivos quando o podem; é este o maior prazer deles. Algumas vezes ela foi levada também a mudar de forma e a segui-los para fazer mal aos homens. Fala com voz fraca, mas responde sempre de modo preciso às perguntas que lhe faço, ao contrário de argumentar a todo instante, como o fazia Jean-Claude. Ela se chama Philomène Carteron. 

Aprofundando ainda mais o sono, provoco as manifestações de Philomène viva. Ela já não sofre, parece bastante calma, responde sempre muito nitidamente em tom seco. Sabe que não é amada na região e que ninguém perderá nada com a sua ausência e ela saberá muito bem vingar-se na ocasião propícia. Nasceu em 1702, chamava-se Philomène Charpigny quando solteira. O seu avô materno chamava-se Pierre Machon e morava em Ozan. Casou-se em 1732, em Chevroux, com um homem chamado Carteron, com o qual teve dois filhos que perdeu. (x) 

Antes da sua encarnação, Philomène havia sido uma menina, morta na tenra idade. Anteriormente havia sido um homem que tinha matado e roubado, um verdadeiro bandido. É por isso que muito sofreu na completa escuridão a fim de expiar os seus crimes, mesmo depois da sua vida de menina, quando não teve tempo para fazer o mal. 

Não pude levar mais longe a experiência das vidas sucessivas porque, no fim da muito longa magnetização (cerca de duas horas) que era necessária para levá-la ao estado de bandido, o sujet (Joséphine) parecia esgotado. Causava pena vê-la nas suas crises; porém, um dia em que a havia conduzido até esse estado, pressionei-lhe um ponto situado no meio da fronte e que possui a propriedade de despertar a memória sonambúlica, ordenando-lhe que se transportasse a um tempo mais anterior. Ela me diz então, com hesitação e virando a cabeça, parecendo confusa, que tinha sido um macaco, um grande macaco quase semelhante ao homem. Confesso que não esperava esta resposta e o meu pensamento se reportou imediatamente a uma anedota atribuída a Alexandre Dumas pai (tendo alguém perguntado se era verdade que o seu pai era negro, Dumas, que não gostava quando lhe lembravam a sua origem, respondeu: “Certamente, e meu avô era um macaco; a minha família começou por onde a sua termina”). Entretanto, mantendo a seriedade, limitei-me a manifestar a minha admiração por ouvir que uma alma de animal se tornou uma alma de homem. Ela me respondeu que nos animais havia, como nos homens, naturezas boas ou más e que, quando o animal se tornava homem, este permanecia com os instintos do que havia sido como animal. Uma outra vez, nas mesmas circunstâncias, ela me diz que entre o seu estado de bandido e o de macaco havia passado por várias encarnações sucessivas; recordava-se de ter vivido nas florestas matando lobos, e nesse momento o seu rosto tornou-se feroz. 

/... 
(i) Ela é bastante sensível ao magnetismo. Um dia caiu de uma altura de 2,50 m., dando uma forte pancada com uma coxa sobre o ângulo de uma máquina de costura e feriu-se bastante, o que a fazia mancar. Adormeci-a e exteriorizei-lhe o seu duplo, como ela via bem por ele o local da ferida, colocou ali a minha mão, que mantive durante dois minutos; ao despertar estava completamente curada. (Albert de Rochas)
(ii) Encontrava-me assim lançado numa espécie de pesquisa da qual eu estava longe de suspeitar, e para que eu pudesse aí encontrar-me, foram-me necessárias várias sessões durante as quais, trazendo de volta ao presente, envelhecendo ou rejuvenescendo alternadamente o sujet nas suas existências anteriores, através de passes apropriados, coordenei e completei informações que eram frequentemente obscuras para mim, porque eu absolutamente não previa, no inicio, aonde ela queria conduzir-me e porque eu compreendia dificilmente os nomes próprios que se referiam a regiões ou a personagens desconhecidas. Apenas após pesquisas nos mapas e nos dicionários, consegui determinar exactamente os nomes e pude tomar nos próprios locais informações das quais falarei mais adiante. É bom lembrar aqui que, na maioria dos sujet, o sono magnético faz surgir uma série alternada de fases de letargia durante as quais não conseguem dar a conhecer as suas impressões em consequência de uma paralisia momentânea dos seus nervos motores e de fases de sonambulismo durante as quais podem falar, mas apresentam a insensibilidade cutânea. Gozam então de novas faculdades tanto mais desenvolvidas quanto mais profundo seja o sono. Durante as fases de letargia, o sujet continua em relação com uma parte do mundo exterior; se, após o despertar, se pressiona sobre a sua fronte o ponto da memória sonambúlica, desperta-se a memória do que se passou enquanto ele estava adormecido, tanto durante estas fases como durante as outras. (Abert de Rochas) 
(iii) Ele observou que havia dois lugarejos vizinhos que se chamavam Champvent, mas que o seu era o mais próximo de Mézériat e que ele ia com frequência a Saint-Julien, em Reyssouse, a negócios. Esses detalhes permitiram-me encontrar Champvent no departamento de Ain e no mapa do Estado-maior (Folha de Macon, a sudeste). Quanto a Joséphine, nasceu e passou a sua juventude em Manziat, cantão de Bugey-le-Châtel. No estado de vigília ela não se recorda de já ter ouvido falar de Champvent perto de Polliat. (A. de Rochas) 
(iv) Para vencer as suas resistências eu o envelhecia por punição e rejuvenescia-o, ao contrário, como recompensa; e ele me tomava nos últimos tempos por um grande feiticeiro a quem era preciso obedecer. (A. de Rochas) 
(v) As datas variam de dez anos quando comparadas entre si em diferentes momentos de sua personificação e em diferentes sessões. (A. de Rochas
(vi) O 7º Regimento de Artilharia manteve realmente guarnição em Besançon de 1832 a 1837 e é difícil compreender como Joséphine teria sido informada disto. (A. de Rochas) 
(vii) Perguntei-lhe se via os vermes: “Claro, não me atiraram sal”. (A. de Rochas) 
(viii) O povo diz que as crianças riem, com alegria, sem motivo. (A. de Rochas) 
(ix) O padre de Polliat, a quem escrevi para saber se existia na sua paróquia algum vestígio de Jean-Claude Bourdon, respondeu-me que nenhum Bourdon foi nunca conhecido em Polliat, mas que esse nome é bastante difundido num lugar vizinho, em Griège por Pont-de-Veyle (Ain). (A. de Rochas 
(x) Ela não tem nenhum sentimento religioso nem nunca frequentou a igreja e acredita que tudo termina com esta vida. Não sabe escrever. As famílias Charpigny e Carteron realmente existiram em Ozam e em Chevroux, porém não encontrei nenhum vestígio positivo de Philomène. (A. de Rochas) 


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte – Experiências magnéticas, Capítulo II – Regressão da memória e previsão / Caso nº 2 – Joséphine, 1904 (1 de 3), 9º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites

quinta-feira, 17 de junho de 2021

~~~ Párias em Redenção ~~~


FÚRIA ASSASSINA ~ 

Florença nada perdera do esplendor antigo, quando República próspera e invejada. Os seus palácios misturavam-se aos museus, as bibliotecas e os conventos disputavam a glória da maior posse de objectos de arte: pinturas, afrescos, porcelanas, instrumentos de música, esculturas. As ruas pareciam patentear os dias gloriosos do passado, quando os génios do Renascimento se refugiavam nas suas tascas para o prazer fugidio do vinho capitoso, em noites festivas, ou nos palácios, onde o luxo ostentava o poder, afogando nas paixões da lubricidade e das aventuras de todos os matizes a ardência dos desejos infrenes. 

A cidade verdejante exibia as suas igrejas sobranceiras, de torres e pórticos que a celebrizaram, onde se guardam as obras geniais de Donatello, com o seu realismo medieval, Botticelli e suas madonas, Miguel ÂngeloMasaccioFra AngélicoGhirlandaioRosselliCellinida Vinci… 

O fastígio passado ainda hoje ressurge, demora-se e teima por continuar, conquanto a desgraça de que fora vítima no século XV, pela cobardia moral de Pedro de Médici e os sofrimentos experimentados com Savonarola… Logo depois deles, porém, voltou ao esplendor, até à morte de João Gastão, o último dos Médici… 

Permanece continuadora fiel dos seus antepassados, na pintura, na escultura, na arquitectura, na literatura, como se o Renascimento não houvesse passado de todo. Não surgiam agora, é certo, novos vates nem artistas, mas o orgulho nacional, inigualável, cultivava, como no passado, os gozos que a faziam invejada, pelas noites orgíacas em que o mundanismo invadia palácios e templos, tabernas e solares, onde o crime do suborno e do homicídio recebiam altos salários, e em que se eliminavam as pessoas caídas em desagrado, sob o olhar complacente da justiça, regida pelos poderosos, com a maior facilidade. As sombras da Idade Média, de certo modo, perduravam na Capital da Toscana, na exuberância verde das colinas de San Miniato de Fiesole, e o Arno, no seu passar contínuo, lambendo os alicerces da cidade que se exaltava, impotente, junto às suas águas, prossegue, sendo testemunha silenciosa e túmulo discreto para cadáveres em quantidade, que lhe são arrojados na calada das noites e dormem no seu seio líquido, prateado. 

Girólamo, amigo das dissipações e já conhecedor da vida desregrada das noites de Florença, necessitava fugir do olhar sempre desconfiado e perquiridor dos conhecidos, que não deixavam de pensar, examinando a possibilidade de Lúcia assassinar as crianças para se transformar na possuidora dos haveres do duque, que Girólamo, pelas mesmas razões, se enquadrava na acusação que imputava à vítima do seu punhal certeiro e criminoso. A evasão, pois, tinha vários objectivos de alta importância: fugir à constante suspeição e embriagar-se de prazer antecipado, encontrando, também, meios de se libertar de Assunta. É certo que lhe não fizessem propícios os fados, para livra-se em definitivo de qualquer perigo. Era jovem e ambicionava o poder, no qual mergulharia com indescritível avidez. Para tanto, não tergiversara nem temera embrenhar-se no matagal dos nefandos delitos, e não cessaria de praticá-los senão quando estivesse asserenada a fúria interior que o conduzia. 

Visitado por pensamentos descontrolados e atormentado pela tensão de poder dar largas ao ânimo íntimo, longe dos olhares percucientes e indagadores; obrigado ali, por motivos óbvios, a manter luto e tristeza, em homenagem aos familiares e protectores falecidos, impondo-se um sacrifício crescente; objecto permanente, em Siena, da admiração de uns e da inveja de outros, não suportaria continuar, pelo que resolveu evadir-se, através da viagem que saberia justificar. 

Tendo entregue ao Senhor Bispo, seu novo protector, e ao testamenteiro, seu áulico ambicioso, a regularização dos documentos e a temporária guarda dos bens do Palácio di Bicci, o aventureiro tomou a diligência que fazia o percurso normal entre as duas cidades e, justificando a necessidade do afastamento, rumou na direcção da metrópole, Florença. 

Amainava a quadra hibernal e as chuvas eram, agora, escassas. A cidade se recuperava do rigor das tempestades e da humidade. As velhas e tortuosas ruas recobravam o movimento diminuído pela imposição da estação chuvosa e a alegria voltava a explodir estuante nas praças e lugares públicos. Só o frio permanecia rigoroso. 

De imediato, o jovem senense formou alegre roda em torno de sua pessoa, hóspede que se fizera de Donato Angélico, que na villa reunia a juventude irresponsável e gozadora da cidade. Homem abastado, aquele Donato Angélico era comerciante de tecidos e importador de destaque, tendo-se transformado em figura obrigatória de todas as rodas da frivolidade dourada, contribuindo com a bolsa larga para noitadas alegres, em que se misturavam o vício e o luxo em duelo de corrupção violenta. 

villa, ajardinada e discretamente resguardada por árvores de nobre porte e ciprestes altaneiros, parecia repousar dolentemente à margem direita do rio, que a contornava em parte, aumentando a sumptuosidade da sua arquitectura, que procedia do século XVI, adornada de peças de alto valor, disputadas pelos museus em prosperidade crescente. 

A sociedade burguesa, que fora responsável pela glória da cidade, e de cujo seio saíram os melhores administradores e protectores do seu progresso, continuava o ciclo de domínio. As rédeas do poder haviam passado, depois dos Médici, a uma outra casta dominadora, conquanto sob a suserania da Casa de Áustria, mas a cidade nas mãos dos banqueiros e industriais do lanifício e das sedas, já que os remanescentes da nobreza e o povo em geral se encontravam dominados pela força do comércio, sempre lucrativo e generoso. 

Desse modo, Dom Donato e os seus pares se permitiam exorbitâncias somente concedidas a pequenos monarcas, alimentando o tédio e a ociosidade dos seus convidados em longos dias de repouso e demoradas noites de desperdício. Era exactamente o local próprio, em cujo clima de viciação Girólamo anestesiava o torpe espírito. A ambição desmedida fazia-o sonhar com a forma eficaz de utilizar os haveres, que desde já lhe soavam aos ouvidos. A tragédia em que terminara os dias a família di Bicci di M. não repercutia em Florença e, embora a cidade fervilhasse de comentários infelizes, a corte da irresponsabilidade na Capital não se inteirara dos detalhes horripilantes do infortúnio que se consumara nos arredores de Siena, uma das suas cidades rivais e, por isso, detestada pelos florentinos. 

Apesar de acontecimentos funestos dessa natureza não sensibilizaram demasiado a sociedade contemporânea a que nos referimos, não passariam sem a mordacidade dos maus e dos folgazões, através de comentários ácidos; e as intrigas forjadas junto aos ouvidos das autoridades, não obstante inexpressivas, sem valor diante das classes poderosas, que as impunham e retiravam como peças de um jogo de xadrez desinteressante, poderiam criar dificuldades para Girólamo. 

Os conceitos de ordem, justiça, verdade e amor eram cavilosamente considerados no mundo profano e, mesmo entre os seguidores do Crucificado, na vida religiosa, a consciência se deixava intoxicar pelo miasma do dinheiro, fechando os olhos aos deslizes morais, dos quais se podia ser absolvido com alguns “sacrifícios”, convertidos em moeda sonante, tais como: o arrependimento, orações, jaculatórias, punições aos transgressores da Lei Divina, como se a prece, o arrependimento dos erros e a renovação interior devessem ser tidos na condição punitiva e não piedosa, de cuja atitude a alma se retira lenida pela paz e refeita nas energias gastas, quando das jornadas pelos corredores sombrios do pecado! 

Os remanescentes da família di Bicci di M., logo retornaram a Florença, tentaram um cometimento junto às autoridades relapsas, cujo poder, todavia, não atingia Siena, especialmente após informadas da conivência do Bispo daquela cidade, em atitude protectoral ao miserando herdeiro. Incomodar um “príncipe” da Igreja naqueles dias ainda era considerado uma temeridade… Desaconselhados de abrirem uma contenda inútil, desde que o testamento era válido e Girólamo fora adoptado legalmente pelo duque, tornado o seu herdeiro natural, portanto, perante a lei e pela vontade do extinto, o assunto morreu, asfixiado em licores e esquecido quase de imediato. 

Os primeiros dias transcorriam, pois, na villa Angélico, em alacridade festiva e ociosidade remunerada. 

/… 


VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 4. FÚRIA ASSASSINA 1 de 3, 11º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

domingo, 6 de junho de 2021

o Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~


Capítulo V 

O SIGNIFICADO ESPÍRITA do Materialismo Dialéctico 
(II de III) 

Mas, para explicar claramente essa lei dialéctica, será preciso interpretar o Ser como uma tese essencial que, segundo a filosofia espírita, contém o Universo inteiro, e que começa o seu desenvolvimento no inconsciente das coisas, até chegar, mais tarde, ao grau de consciência. Este estado alcançado pela tese do Ser se transformará mais adiante; no contrário do seu primeiro período evolutivo, isto é, negará a sua condição anterior ao penetrar na de antítese, que representa uma etapa mais desenvolvida que a primeira, até se situar na de síntese, resumo superior dos seus dois tempos primitivos e tudo isso nos dará o seguinte: O presente é o que não existia ontem, mas esse ontem é a negação da qual surgiu o hoje; logo, deste hoje resultará a negação da qual surgirá o amanhã. 

Nisto consiste, pois, a lei chamada negação da negação ou evolução da involuçãoa interpretação espírita que nos mostra agora o desenvolvimento palingenésico como um processo dialéctico do Ser. Assim, vemos como o homem, ao nascer, é uma entidade espiritual de natureza dialéctica, chamada a desenvolver-se continuamente através do processo histórico. 

Pelo exemplo seguinte, vejamos como se desenvolve a lei denominada negação da negação: 

Tomemos um grão de trigo, o qual representa a tese. Que faremos, para que esse grão de trigo se torne o ponto de partida de um processo de desenvolvimento”? Enterramo-lo e, isso determina a etapa de antítese (ou de encarnação do Ser). Que sucederá então? Assistiremos à negação do grão de trigo, para que nasça a espiga. Primeira negação: o grão de trigo desapareceu, mas se transformou numa planta. Esta planta cresceu e produz grãos de trigo, como é natural e depois morre. Segunda negação: A planta desapareceu, depois de reproduzir o grão de trigo que a originou. Não nos esqueçamos, porém, de que não produziu um só grão de trigo, mas uma grande quantidade, que inclusive poderá suscitar novas qualidades. (*) 

Transportada a ideia do processo dialéctico para o desenvolvimento do Ser, vemos que esta negação da negação só poderá efectuar-se pela parte psíquica de sua natureza, que permitirá essa transformação. Estes processos dialécticos, que têm a virtude de revelar novas qualidades nas coisas de acordo com a filosofia espírita, explicam o desenvolvimento do dinamopsiquismo essencialmediante a evolução da involução, isto é, a essência evoluída, fazendo desenvolver a essência ainda não-evoluída. 

O estado de antítese, ou de encarnação do Ser, Gustave Geley nolo apresentou do seguinte modo: “Tudo ocorre como se cada existência terrestre, cada objectivação orgânica, ou, podemos dizer, cada encarnação, seria para a actividade do Ser uma limitação no espaço e nos meios; seria como uma sujeição a um trabalho limitado e especializado, a um esforço quase exclusivo, em uma única direcção.” 

Por último, a antítese, ou estado de encarnação do Ser é, como bem disse Geley, um processo de análise. É, acrescentava ele, a subdivisão da consciência em faculdades diversas e, do sentido único em sentidos múltiplos, para facilitar o seu exercício e promover o seu desenvolvimento. 

Como se verá, nesta limitação espiritual aparece o que se chama a etapa de antítese do Ser. Esta antítese consiste em não poder ele recordar o passado nem estender a visão além do físico e, ainda mais, em não dispor das faculdades metapsíquicas que o espírito possui em forma latente. Tudo isto corresponde ao que se chama antítese do Serdado que o mundo físico é como uma negação do mundo espiritual, receptáculo maravilhoso onde o indivíduo guarda todos os valores de sua evolução. 

Impulsionado o Ser pelo processo dialéctico, entrará no seu terceiro tempo: a sua existência de síntese. Esta síntese está baseada na dialéctica da desencarnação ou da morte; representa a reunião de todas as faculdades espirituais numa só; é o que se chama, na linguagem espírita, estado do Ser desencarnado. Este estado, disse Geley, constitui uma espécie de produto sintético dos elementos diversos das personalidades anteriores. Em resumo, a desencarnação é um processo de síntese, de síntese orgânica e de síntese psíquica do Ser. 

É nesta unidade, em que a tese e a antítese do indivíduo se transformam numa síntese, – que se opera na consciência por causa da desencarnação, – que o espírito se sente em toda a sua plenitude. Porque é nesta síntese que os valores humanos se convertem em valores divinos e onde se reconhece que a raiz de todos os fenómenos sociais e morais está no mundo espiritual. 

Nesta análise sobre os três tempos dialécticos do espírito, podemos notar a profundidade da dialéctica hegeliana, destacando-se, em compensação, à limitação ideológica do materialismo dialéctico, no que respeita ao homem, ao considerá-lo, como o faz o existencialismo ateu, um ser para a morte e para o nada eterno. Entretanto, o marxismo pretende refutar ideologicamente o pensamento existencialista, sem levar em conta que os seus princípios estão baseados, também, sobre nada do ser

Para a filosofia espírita, o processo histórico é produto da acção do espírito e não o resultado dos modos de produção; por conseguinte, ela não admite uma evolução exclusivamente material. Esta concepção é também sustentada pela lógica formal, na qual os seres e as coisas aparecem em estado imóvel e de repouso. Esta tese, porém, é inadmissível num tipo de materialismo considerado dialéctico, cuja doutrina sustenta que as coisas são e não são ao mesmo tempopela razão de que tudo está em perpétua transformação e que o movimento é que dá impulso aos fenómenos materiais. Sobre este ponto, convém fazer algumas reflexões. 

Se o movimento da matéria, de acordo com Georgi Plekanov, destacado expositor do materialismo dialéctico, é a base de todos os fenómenos da natureza e, se as moléculas da matéria em movimento, ao se unirem umas às outras, formam determinadas combinações, que são os seres e as coisas; se estas combinações se distinguem por uma solidez menor ou maior e, existem durante um tempo mais ou menos longo, desaparecendo finalmente, para serem substituídas por outras e, se o que é eterno é somente o movimento da matéria e a matéria em si como substância indestrutível, podemos formular as seguintes perguntas: Que maravilhoso demiurgo é a matéria, para possuir tantas propriedades e, o que é o movimento em si mesmo? 

Do ponto de vista espírita e metapsíquico, a matéria é uma objectivação que se traduz em movimento, mediante uma perimatériaa qual é a força que dá conformação e existência à matéria, mas nunca a matéria em si. O materialismo dialéctico, ao conceber o movimento como qualidade da matéria, admite a possibilidade de um princípio psíquico, já que o psíquico não é mais do que movimento, como o por ele atribuído à matéria. Daí que a filosofia espírita sustente que não podemos admitir nem o materialismo nem o espiritualismo puros. 

Foi Geley quem disse que tudo nos induz a crer que não há matéria sem inteligência, nem inteligência sem matéria. Esta é a razão pela qual o espiritismo pode oferecer um campo de reconhecimento entre o materialismo e o espiritualismo clássico. O mesmo Geley, para confirmar esta asserção, escreveu o seguinte: “Desde o momento em que, na teoria espírita, espírito, força e matéria estão sempre juntos e são inseparáveis; e que não podemos e não devemos supô-los com vida própria e isolados uns dos outros, a doutrina espírita pode ser desde logo admitida, tanto pelos que fazem da inteligência um produto da evolução avançada da matéria, como por aqueles que sustentam não ser a matéria nem mais nem menos do que uma manifestação do espírito.” A força, para Geley, nas duas hipóteses, constitui o princípio intermediário a que chamamos perimatéria. 

Pelo exposto, se deduz que a filosofia espírita pode ser aceite, no seu aspecto palingenésico, tanto pelo pensamento materialista como pelo espiritualista, desde que o espírito fosse a causa de um movimento ascendente do Universo. Em consequência, poder-se-ia dizer que o materialismo só é admissível na sua concepção mecanicista, mas nunca do ponto de vista materialista dialéctico, o qual se baseia na lei do movimento e na dinâmica do Universo, gérmen de uma possível entidade inteligente. 

/… 
(*) A. Thalheimer, Introdução ao Materialismo Dialéctico. 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo V – O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico (II de III), 9º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)