Florença nada perdera do esplendor antigo, quando República
próspera e invejada. Os seus palácios misturavam-se aos museus, as bibliotecas
e os conventos disputavam a glória da maior posse de objectos de arte:
pinturas, afrescos, porcelanas, instrumentos de música, esculturas. As ruas
pareciam patentear os dias gloriosos do passado, quando os génios do Renascimento se
refugiavam nas suas tascas para o prazer fugidio do vinho capitoso, em noites
festivas, ou nos palácios, onde o luxo ostentava o poder, afogando nas paixões
da lubricidade e das aventuras de todos os matizes a ardência dos desejos
infrenes.
A cidade verdejante exibia as suas igrejas
sobranceiras, de torres e pórticos que a celebrizaram, onde se guardam as obras
geniais de Donatello,
com o seu realismo medieval, Botticelli e
suas madonas, Miguel Ângelo, Masaccio, Fra Angélico, Ghirlandaio, Rosselli, Cellini, da Vinci…
O fastígio passado ainda hoje ressurge,
demora-se e teima por continuar, conquanto a desgraça de que fora vítima no
século XV, pela cobardia moral de Pedro
de Médici e os sofrimentos experimentados com Savonarola…
Logo depois deles, porém, voltou ao esplendor, até à morte de João Gastão, o último dos Médici…
Permanece continuadora fiel dos seus
antepassados, na pintura, na escultura, na arquitectura, na literatura, como se
o Renascimento não houvesse passado de todo. Não surgiam agora, é certo, novos
vates nem artistas, mas o orgulho nacional, inigualável, cultivava,
como no passado, os gozos que a faziam invejada, pelas noites orgíacas em que o
mundanismo invadia palácios e templos, tabernas e solares, onde o crime do
suborno e do homicídio recebiam altos salários, e em que se eliminavam as
pessoas caídas em desagrado, sob o olhar complacente da justiça, regida pelos
poderosos, com a maior facilidade. As sombras da Idade Média, de certo modo,
perduravam na Capital da Toscana, na exuberância verde das colinas de San
Miniato de Fiesole, e o Arno, no seu passar contínuo, lambendo os alicerces da
cidade que se exaltava, impotente, junto às suas águas, prossegue, sendo
testemunha silenciosa e túmulo discreto para cadáveres em quantidade, que lhe
são arrojados na calada das noites e dormem no seu seio líquido, prateado.
Girólamo, amigo das dissipações e já conhecedor
da vida desregrada das noites de Florença, necessitava fugir do olhar sempre
desconfiado e perquiridor dos conhecidos, que não deixavam de pensar,
examinando a possibilidade de Lúcia assassinar as crianças para se transformar
na possuidora dos haveres do duque, que Girólamo, pelas mesmas
razões, se enquadrava na acusação que imputava à vítima do seu punhal certeiro
e criminoso. A evasão, pois, tinha vários objectivos de alta importância: fugir
à constante suspeição e embriagar-se de prazer antecipado, encontrando, também,
meios de se libertar de Assunta. É certo que lhe não fizessem propícios os
fados, para livra-se em definitivo de qualquer perigo. Era jovem e ambicionava o
poder, no qual mergulharia com indescritível avidez. Para tanto, não tergiversara
nem temera embrenhar-se no matagal dos nefandos delitos, e não cessaria de
praticá-los senão quando estivesse asserenada a fúria interior que o conduzia.
Visitado por pensamentos descontrolados e
atormentado pela tensão de poder dar largas ao ânimo íntimo, longe dos olhares
percucientes e indagadores; obrigado ali, por motivos óbvios, a manter luto e
tristeza, em homenagem aos familiares e protectores falecidos, impondo-se um
sacrifício crescente; objecto permanente, em Siena, da admiração de uns e da
inveja de outros, não suportaria continuar, pelo que resolveu evadir-se,
através da viagem que saberia justificar.
Tendo entregue ao Senhor Bispo, seu novo
protector, e ao testamenteiro, seu áulico ambicioso, a regularização dos
documentos e a temporária guarda dos bens do Palácio di Bicci, o aventureiro
tomou a diligência que fazia o percurso normal entre as duas cidades e,
justificando a necessidade do afastamento, rumou na direcção da metrópole,
Florença.
Amainava a quadra hibernal e as chuvas eram,
agora, escassas. A cidade se recuperava do rigor das tempestades e da humidade.
As velhas e tortuosas ruas recobravam o movimento diminuído pela imposição da
estação chuvosa e a alegria voltava a explodir estuante nas praças e lugares
públicos. Só o frio permanecia rigoroso.
De imediato, o jovem senense formou alegre roda
em torno de sua pessoa, hóspede que se fizera de Donato Angélico, que na villa reunia
a juventude irresponsável e gozadora da cidade. Homem abastado, aquele Donato
Angélico era comerciante de tecidos e importador de destaque, tendo-se
transformado em figura obrigatória de todas as rodas da frivolidade dourada,
contribuindo com a bolsa larga para noitadas alegres, em que se misturavam o vício
e o luxo em duelo de corrupção violenta.
A villa, ajardinada e discretamente
resguardada por árvores de nobre porte e ciprestes altaneiros, parecia repousar
dolentemente à margem direita do rio, que a contornava em parte, aumentando a
sumptuosidade da sua arquitectura, que procedia do século XVI, adornada de
peças de alto valor, disputadas pelos museus em prosperidade crescente.
A sociedade burguesa, que fora responsável pela glória
da cidade, e de cujo seio saíram os melhores administradores e protectores do
seu progresso, continuava o ciclo de domínio. As rédeas do poder haviam
passado, depois dos Médici, a uma outra casta dominadora, conquanto sob a
suserania da Casa de Áustria, mas a cidade nas mãos dos banqueiros e
industriais do lanifício e das sedas, já que os remanescentes da nobreza e o
povo em geral se encontravam dominados pela força do comércio, sempre lucrativo
e generoso.
Desse modo, Dom Donato e os seus pares se
permitiam exorbitâncias somente concedidas a pequenos monarcas, alimentando o
tédio e a ociosidade dos seus convidados em longos dias de repouso e demoradas
noites de desperdício. Era exactamente o local próprio, em cujo clima de
viciação Girólamo anestesiava o torpe espírito. A ambição desmedida fazia-o
sonhar com a forma eficaz de utilizar os haveres, que desde já lhe soavam aos
ouvidos. A tragédia em que terminara os dias a família di Bicci di M. não
repercutia em Florença e, embora a cidade fervilhasse de comentários infelizes,
a corte da irresponsabilidade na Capital não se inteirara dos detalhes
horripilantes do infortúnio que se consumara nos arredores de Siena, uma das
suas cidades rivais e, por isso, detestada pelos florentinos.
Apesar de acontecimentos funestos dessa natureza
não sensibilizaram demasiado a sociedade contemporânea a que nos referimos, não
passariam sem a mordacidade dos maus e dos folgazões, através de comentários
ácidos; e as intrigas forjadas junto aos ouvidos das autoridades, não obstante
inexpressivas, sem valor diante das classes poderosas, que as impunham e
retiravam como peças de um jogo de xadrez desinteressante, poderiam criar
dificuldades para Girólamo.
Os conceitos de ordem, justiça, verdade e amor
eram cavilosamente considerados no mundo profano e, mesmo entre os seguidores
do Crucificado, na vida religiosa, a consciência se deixava intoxicar pelo
miasma do dinheiro, fechando os olhos aos deslizes morais, dos quais se podia
ser absolvido com alguns “sacrifícios”, convertidos em moeda sonante, tais
como: o arrependimento, orações, jaculatórias, punições aos transgressores da
Lei Divina, como se a prece, o arrependimento dos erros e a renovação
interior devessem ser tidos na condição punitiva e não piedosa, de
cuja atitude a alma se retira lenida pela paz e refeita nas energias gastas,
quando das jornadas pelos corredores sombrios do pecado!
Os remanescentes da família di Bicci di M., logo
retornaram a Florença, tentaram um cometimento junto às autoridades relapsas,
cujo poder, todavia, não atingia Siena, especialmente após informadas da
conivência do Bispo daquela cidade, em atitude protectoral ao miserando
herdeiro. Incomodar um “príncipe” da Igreja naqueles dias ainda era
considerado uma temeridade… Desaconselhados de abrirem uma contenda
inútil, desde que o testamento era válido e Girólamo fora adoptado legalmente
pelo duque, tornado o seu herdeiro natural, portanto, perante a lei
e pela vontade do extinto, o assunto morreu, asfixiado em licores e esquecido
quase de imediato.
Os primeiros dias transcorriam, pois, na villa Angélico,
em alacridade festiva e ociosidade remunerada.
/…
VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
4. FÚRIA ASSASSINA 1 de 3, 11º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard
Maxence)
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