quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

As vidas sucessivas | os elementos ~

Experiências magnéticas
(Regressão da memória e previsão)
Caso nº 1  Laurent (I)

Quando iniciei este trabalho, ignorava o facto de que outros magnetizadores haviam feito constatações análogas, as quais exponho no capítulo 4 da terceira parte. Procurei sempre, nas minhas sessões experimentais, ter presente, para tomar notas à medida que esses fenómenos se produziam, uma terceira pessoa que não corria o risco de ser influenciada, como eu teria podido ser, pela expectativa do que eu supunha dever produzir-se.

Os resumos reproduziam variações e erros já esperados, os quais têm a sua importância porque mostram bem a influência, no momento da experiência, do estado de espírito do sujet sobre os fenómenos ainda inexplicados de regressão da memória e de previsões. (*)

(*) O autor chama de previsões o que, actualmente, se tem preferido denominar de progressão da memória, em contraposição à regressão de memória. Entre as obras que tratam mais profundamente do assunto, indicamos "A memória e o tempo", Publicações Lachâtre, de Hermínio C. Miranda. (N.E.)

Os numerosos e precisos detalhes relativos aos graus de sono e aos fenómenos físicos que os caracterizam não me parecem inúteis, porque vêm em apoio de classificações que os médicos hipnotizadores não admitem, sem dúvida porque não tiveram oportunidade de os observar.

Caso nº 1 – Laurent, 1893

As minhas primeiras experiências relativas à regressão da memória datam de 1893. Foi totalmente ao acaso que fui levado a constatar esse fenómeno num jovem de vinte anos que fazia a sua licenciatura em letras, sujet dos mais preciosos, porque não somente era sensível ao agente magnético, como também e sobretudo porque, dotado de uma viva curiosidade científica e de um grande espírito de análise, empenhava-se bastante em aperceber-se por si próprio dos fenómenos físicos e psíquicos produzidos por este agente.

Empreendi, então, com ele experiências seguidas, mas graduadas, com precaução, de maneira a não fatigar o seu sistema nervoso nem prejudicar os seus outros estudos, tendo o cuidado, em cada sessão, primeiramente de chamar a sua atenção para o que ele sentia antes e durante o sono magnético e depois dar-lhe a sugestão de, ao despertar, recordar-se das suas impressões.

Aconselhei, além do mais, o meu jovem amigo Laurent a redigir ele próprio, depois de cada sessão, as impressões que poderiam ser mais tarde, tanto para ele quanto para mim, uma fonte de informações muito ricas, visto ser a primeira vez que foram estudados desta maneira os fenómenos da hipnose.

Eis o diário (I) no qual eu não quis mudar uma palavra sequer, limitando-me a dar em notas, algumas explicações ou modificações. Este começou alguns dias depois da primeira tentativa que fiz com Laurent, no salão de sua mãe, e terminou quando, pelo aprofundamento progressivo da hipnose, me deparei com espécies de fenómenos particulares relativos à formação dos fantasmas dos vivos.

As impressões de um magnetizado relatadas por ele próprio

21 de Julho de 1893.

O Sr. de R. renovou em mim, esta manhã, porém mais minuciosamente, as experiências que havia feito outro dia no salão.

– Que aroma você deseja sentir? O aroma da violeta? Tente lembrar-se dele.

Fiz esforço, mas sem resultado preciso. Então o Sr. de R. apresentou bruscamente dois dedos de uma mesma mão, separados, sob cada uma de minhas narinas, e o aroma da violeta fez-se sentir a tal ponto que eu acreditaria, se não tivesse os olhos abertos, que um buquê me era passado sob o nariz.

– Como você se chama?

– Laurent.

O Sr. de R., pressionando fortemente com o seu polegar o meio de minha fronte, onde se inicia o nariz, faz-me de novo a mesma pergunta. Hesito, penso. Tenho a representação visual do meu nome escrito, mas é-me absolutamente impossível pronunciá-lo; balbucio.

– Vou adormecê-lo – diz-me o Sr. de R.

Um vago temor me invade. A ideia de um sono onde a minha vontade será aniquilada me faz quase recusar a prestar-me a esta experiência se o medo de ser considerado medroso não se opusesse. Sentimento bastante complexo: o pavor do desconhecido, um respeito humano no fundo bastante banal e – o que de repente predomina – uma confiança encorajadora no experimentador. No entanto, é com emoção bastante viva que me entrego às mãos do Sr. de R. e, também com a esperança de que eu não seja susceptível de ser adormecido.

O Sr. de R. senta-se diante de mim, segura os meus polegares e fixa os seus olhos nos meus. O seu olhar incomoda-me; primeiro, eu me enrijeço; depois, experimentando uma sensação dolorosa, como uma crispação dos músculos da pálpebra, tento desviar os olhos; mas não consigo! Então deixo-me levar; sinto que o Sr. de R. fecha os meus olhos com os dedos; e não percebo mais nada.

De repente, ouço o Sr. de R. me ordenar que abra os olhos. Faço-o facilmente e parece-me que me encontro em estado normal. Fico bastante admirado quando o Sr. de R. me diz: “Você está adormecido.”

E, efectivamente, não consigo, se ele me proíbe, levantar nem um braço, nem uma perna, nem fazer qualquer movimento. No entanto, à minha volta distingo todas as coisas como neste momento. Lembro-me até mesmo de ter ouvido baterem à porta e o Sr. de R. responder: “Daqui a pouco!”

Nada me escapa e tudo é preciso.

– Vou despertá-lo para que não se fatigue demais esta primeira vez – diz-me o Sr. de R.

– Você se apercebeu de tudo o que experimentou? Você se lembrará quando estiver acordado... Ah! dê-me o seu lenço. (Eu lhe dou.) Bem! Observe que você me deu o seu lenço. Você não se lembrará mais deste acto quando estiver acordado, mas se lembrará de todos os outros.

O Sr. de R. sopra sobre os meus olhos. Sinto que me enrijeço. Perco a consciência do que se passa. Em seguida reabro os olhos, um pouco aturdido, como ao despertar de manhã. Já posso levantar-me e andar à vontade.

– Você lembra-se do que fizemos e dissemos enquanto estava adormecido? –  pergunta-me o Sr. de R.

Alguns segundos de esforço, seguidos de uma resposta afirmativa.

– Eu lhe disse para me dar seu lenço?

– Sim.

– Você mo deu?

– Não.

– Então, dê-mo.

Revisto os meus bolsos; não o encontro. Como vou objectar que provavelmente não o encontro porque não o coloquei no bolso, o Sr. de R. me diz:

– Você me deu o seu lenço; mas eu lhe tinha ordenado que esquecesse o facto. Ei-lo, e vá passear ao ar puro.

Sinto realmente necessidade de respirar; os meus nervos têm sobressaltos violentos. Revejo, caminhando, como que alucinado, todos os detalhes dos móveis do gabinete do Sr. de R. Eu já havia lá entrado outrora, mas é certo que jamais tinha guardado lembranças tão nítidas do gabinete. Será que a ordem, recebida durante a hipnose, de lembrar-se do que se faz, do que se diz, do que se vê, tem influência sobre a intensidade da lembrança? Por outras palavras, a imagem dos objectos que impressionaram a minha retina durante o sono magnético não reaparece mais vivamente sob a influência de uma sugestão do que depois da contemplação desses objectos durante a vigília? Na verdade, a ordem dada pelo Sr. de R. não indicava que eu devia rever tudo alucinadamente, mas que, simplesmente, eu devia lembrar-me de uma maneira geral do que havia visto. Ora, sob esse aspecto, nenhuma dúvida: o escritório, a portinhola, os quadros se objectivavam e me apareciam como reais.

Mas por que a alucinação não se estendia a todas as outras lembranças? Eu revia o cómodo; por que não ouvia a voz do Sr. de R.? Por que as sensações auditivas que tive, adormecido, não se objectivavam como as sensações visuais?

A sugestão apurou o poder da lembrança, exagerou as minhas faculdades habituais, mas provavelmente sem nada alterar a sua relação entre si.

Sou bom vidente, medíocre audiente. A sugestão desenvolveu igualmente as minhas faculdades auditivas e visuais, se assim posso exprimir-me, de forma que, sob a sua influência, permaneci bom vidente, medíocre audiente. O mesmo desenvolvimento era suficiente para levar-me à alucinação da faculdade visual, já grande, o que não acontecia com a faculdade auditiva, mais fraca. Entre as duas a relação continua constante. É uma hipótese que será preciso verificar nas experiências seguintes.

Depois de duas horas a lembrança enfraqueceu.

23 de Julho de 1893

Estou acordado.

O Sr. de R. aplica-me passes ao longo do meu braço e da minha mão esquerda; sinto pouco a pouco o meu braço enrijecer-se. Vejo o Sr. de R. me beliscar a pele da mão tão fortemente que a marca das suas unhas aí fica; no entanto, não sinto nenhuma dor. Então o Sr. de R. afasta a sua mão da minha, progressivamente, pressionando várias vezes a unha do seu polegar contra a do seu indicador como que para beliscar. A uma certa distância, sinto de repente do outro lado da mão um beliscão bastante forte. A mão do Sr. de R. continua a afastar-se. É-lhe necessário percorrer uma nova distância, maior do que a primeira, para que eu sinta um segundo beliscão, aliás consideravelmente mais fraco do que o primeiro. O Sr. de R. afasta-se ainda mais. A uma distância maior do que a primeira, maior do que esta o foi de minha mão, o beliscão no vazio repercute novamente sobre a minha mão, mas com a sensação atenuada. Em seguida, muito mais longe, eu não sinto mais do que um vago toque; e, a partir daí, absolutamente nada.

Várias vezes repetida, esta experiência permite-me concluir que camadas sensíveis se formam à volta das partes magnetizadas do meu corpo e que a distância da primeira camada para a pele é de cerca da metade da distância que separa as outras camadas.

Que experimento a sensação acima mencionada quando a mão do Sr. de R. age sobre as camadas abc, etc., isto é inegável; mas que papel assume aqui a sugestão? Um papel muito grande, creio.

Com efeito, se fecho os olhos, enquanto o Sr. de R. percorre, beliscando o vazio, a distância entre a minha pele e a camada sensível c, que é a mais distante, confesso francamente que antes imagino a sensação do que realmente a experimento; ela é suposta, e não experimentada. Apenas, desde que reabro os olhos, ela se torna perfeitamente consciente, mais fraca em c do que em b, e em b do que em a, como já mencionei anteriormente.

Um espectador poderia supor que engano. “O sujet – diria ele – deve sentir da mesma forma, quer veja ou não a mão do magnetizador beliscar o vazio, quando esta passa em ab e c. Ora, isto não acontece. É preciso que ele se aperceba do ponto do espaço onde se encontra a mão do magnetizador para reagir a uma dada excitação a um pretendido fluido que eu gostaria de ver para crer. Na realidade ele não sente nada, de olhos fechados ou abertos; ele simula a sensação.”

O espectador, a meu ver, tem razão quando afirma que eu deveria sentir da mesma forma, de olhos fechados como abertos; é à sugestão seguramente que é preciso perguntar a causa dessa irregularidade.

Mas no que se refere a sentir realmente, o espectador comete um erro quando o nega. Sou plenamente sincero, e mesmo que seja necessário procurar a causa desses fenómenos na pura sugestão, ou ainda efectivamente no fluido exteriorizado, ou provavelmente nos dois ao mesmo tempo, a sensação é realmente experimentada; eu reajo sem simulação. (II)

O Sr. de R. me adormece. Abandono-me ao sono com confiança, sem o medo do primeiro dia. As mesmas experiências renovadas dão o mesmo resultado. As minhas observações de hoje confirmam o que eu supunha, outro dia, relativamente à relação constante entre as minhas faculdades auditivas e as visuais sob a influência da sugestão, como também no estado normal.

Tem lugar uma nova experiência.

Pense em alguém – diz o Sr. de R. – Você vai ver a pessoa em quem pensa sentada numa poltrona à sua direita.

Penso na minha irmã, sem nada dizer. Volto-me e emito um “oh!” de surpresa, vendo, com efeito, a minha irmã no local indicado. Continuo com os olhos fixos algum tempo sobre ela, que não se mexe. Mas desvio-os, em seguida, por um segundo, e torno a dirigi-los, agora em vão, para a poltrona onde ela me apareceu; a visão desvaneceu-se e seria preciso uma nova ordem do Sr. de R. para que ela me reaparecesse.

Durante a passagem do sono para o estado de vigília, não experimento nenhuma sensação particular; ou então ela é tão vaga que não posso defini-la.

25 de Julho de 1893

O Sr. de R. adormece-me e diz-me:

– Há um buquê de rosas num vaso com água sobre a mesa atrás de você. Vá tocá-lo.

Sem hesitação caminho na direcção da mesa. Há aí, efectivamente, um buquê que retiro do vaso com água. Tento sentir o aroma das rosas, mas elas não exalam nenhum perfume.

– Friccione a sua fronte vigorosamente – diz-me o Sr. de R.

Faço-o e, imediatamente em seguida, o buquê desaparece.

Desta forma a alucinação limitou-se à exacta sugestão dadaveja e toque, mas não me foi dito para sentir o aroma.

Continuo adormecido.

O Sr. de R. começa por renovar as experiências de anteontem sobre a exteriorização do fluido sensível. Toco um objecto; não o sinto. A sensação do contacto existe somente se o objecto é colocado à distância e de acordo com as leis de distanciamento observadas anteontem sobre a minha mão, enquanto que apenas o meu braço estava magnetizado. Mas não é somente a sensação do contacto que posso agora experimentar, de acordo com as mesmas leis.

O Sr. de R. pega um frasco tapado e passa-o sob o meu nariz, bem contra as narinas. Não sinto absolutamente nada. Ele então distancia o frasco. Tão logo este se encontra a uma certa distância, na primeira camada sensível, a, reconheço o aroma da erva-ursa. Quando o frasco se distancia entre a primeira camada sensível a e uma segunda camada sensível b, não sinto mais nada. Volto a sentir em b; depois mais nada entre b e c; depois de novo, porém mais fracamente, em c; mais distante não posso distinguir mais nada; as distâncias entre a e b e entre b e c são mais ou menos iguais entre si e o dobro da distância entre a minha pele e a primeira camada sensível a.

Vejo o Sr. de R. pegar uma bonequinha de cera vermelha; ele a mantém imóvel por um momento na camada a; sinto muito bem o objecto. Retira-a em seguida para além da camada c e a espeta com um alfinete. Não sinto nada.

– Ah! Ah! Não se pode enfeitiçá-lo (III) – diz o Sr. de R. –, provavelmente porque o seu fluido não se dissolve na cera; mas talvez consigamos com água.

Demoradamente o Sr. de R. mantém um copo de água na camada a. Tenho ainda a sensação do contacto de um objecto; porém, se eu não olhasse, ser-me-ia impossível especificar a natureza e a forma desse objecto. Em seguida o Sr. de R. afasta o copo, mergulha o dedo na água e a agita. Ainda nada.

Vejamos com o ferro.

Na camada a o Sr. de R. mantém um molho de chaves sobre sua mão aberta. Nova sensação de contacto, e desta vez um inexplicável sentimento de incómodo: absorção de fluido por um corpinho estranho? Feitiço? O certo é que me lamento de contactos dolorosos quando o Sr. de R., afastando-se, esfrega as chaves dentro de sua mão fechada; precipito-me com uma raiva ciumenta e obstino-me em tê-las vários minutos em minha posse como se eu tivesse medo de ver arrancado um membro, retirada uma parcela de minha vida.

Para fazer cessar esse estado de exaltação, o Sr. de R. me desperta.

– Você poderá tornar-se, depois de muitas sessões, um sujet precioso – diz-me ele rindo –, mas devolva-me minhas chaves. Tenho que levá-las comigo!

/…
(I) Esse diário foi publicado em Junho de 1895 nos "Analles des Sciences Psychiques". (A.R.)
(II) Para mim a verdadeira explicação é que, da mesma forma que sobre a pele normal, o grau de sensibilidade varia com o grau de atenção. Olhando o local onde se é beliscado, o "sujet" acumula sobre esse ponto uma quantidade maior de fluido, que, assim, aumenta consideravelmente a sensação. Todo a gente sabe que, quando um médico quer dar uma injecção num doente e diminuir-lhe a dor, ele aconselha-o a não olhar para o local da aplicação. (A.R.)
(III) O verbo enfeitiçar neste texto (no original em francês, "envoûter" assume o sentido de fazer um feitiço, um boneco de cera à semelhança da pessoa a quem se queira mal, infligindo a este boneco certos martírios que, segundo se acredita, vem a padecer a pessoa que ele representa. (N.T.)


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte – Experiências magnéticas, Capítulo II Regressão da memória e previsão, Caso nº 1 – Laurent, 1893 1 de 4, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites)

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