sábado, 17 de setembro de 2022

literatura do além-túmulo ~


Capítulo V 
(II de II) 

Fica então demonstrado que William Sharp escrevia, por um impulso estranho à sua vontade, as obras de Fiona Macleod, o que deixa supor que ele era médium inspirado. 

Isso, aliás, ressalta, em toda a parte, de modo certo, de várias passagens das memórias publicadas pela sua viúva. Assim, por exemplo, na página 424, ela escreve: 

“Encontrei-me, muitas vezes, ao lado dela, quando caía em transe; então todo o ambiente palpitava, tudo entrava em intensa vibração. Deploro não ter logo tomado nota dessas experiências, que eram frequentes e constituíam um traço característico de nossa vida íntima.” 

William Sharp, escrevendo à sua esposa, na data de 20 de fevereiro de 1895, assim se exprimia: 

“Que coisa bizarra e electrizante é o facto de existirem em mim duas pessoas, ainda que íntimas! E, entretanto, elas são tão diferentes! Sinto às vezes como se Fiona estivesse adormecida no quarto ao lado e eu me surpreendesse na atitude de escutar para lhe perceber os passos ou ver abrir a porta e Fiona aparecer. Quando, porém, ela se comunica comigo, é a falar, interiormente, em voz baixa. Espero agora, com ansiedade, saber como desenvolverá ela o assunto do novo romance The Mountain Lovers. Como é estranha esta impressão de me sentir aqui sozinho com ela.” (pág. 244). 

A certeza de ter uma companheira invisível, na vida, estava de tal modo arraigada nele que ela o levava a coisas curiosas. Assim, por ocasião da data do seu aniversário, ele escreveu a si próprio uma carta de felicitações provinda de Fiona; em seguida escreveu outra de agradecimentos a ela mesma e colocou ambas no correio. Encontraram-se na sua biblioteca vários volumes com a dedicatória: “A William Sharp, a sua colaboradora e amiga Fiona Macleod.” 

Ao que parece, essas dedicatórias eram autênticas, sob certo ponto de vista, pois que provinham de uma personalidade mediúnica que as firmava e eram transcritas automaticamente pelo médium. 

Um amigo de juventude de William Sharp narra na Light (1910, pág. 598) um episódio que confirma ulteriormente a sua mediunidade. Escreve ele: 

“Há vários anos (por volta de 1878), conheci William Sharp e tornei-me seu amigo. Ele não era ainda casado e morava num pequeno apartamento, perto do nosso. Certo dia, aconteceu-me fazer-lhe referências, em conversa, ao neo-espiritualismo e ele declarou que nunca assistira a experiências dessa natureza e que as veria com prazer, se uma oportunidade se lhe apresentasse. Convidei-o então para tomar parte no nosso círculo familiar. Alguém perguntou: “Quem são os guias espirituais do sr. Sharp?” A mesa respondeu, lentamente, um nome da família escocesa “Macleod” (não me lembro bem do nome próprio que deu). Isto me levou a perguntar ao sr. Sharp: “Os seus antepassados eram escoceses?” 

Alguns anos mais tarde, convidei-o para ir a minha casa, por ter necessidade de um conselho seu, a respeito do título de um livro de versos que desejava publicar e, confiei-lhe que havia escrito vários poemas do volume por “inspiração”. Ele exortou-me, vivamente, a ocultar isso se não quisesse comprometer-me perante os críticos... Noutra ocasião e a propósito dos poemas de Fiona, ele me exprimiu a mesma preocupação: “Fiona morre se descobrem o segredo da sua existência.” 

Parece-me que tudo isto basta para esclarecer o mistério. Sharp era médium inspirado, mas temia que o descobrissem. As admiráveis colecções de versos que publicou constituíam impressões de uma inteligência espiritual que era verdadeiramente o seu espírito guia: “o seu nome devia ser realmente aquele que tinha sido transmitido, pela primeira vez, no nosso círculo familiar: Macleod – o que se verificou vários anos antes que Fiona Macleod se manifestasse a Sharp.” 

Sem dúvida, se nos propuséssemos examinar os factos sob um ponto de vista estritamente psicológico, poderíamos pensar num caso de personalidades alternantes. Há, porém, muitas diferenças entre os casos patológicos das personalidades múltiplas provenientes do fenómeno de desintegração psíquica e o caso que estudamos aqui. No Journal of the Society for Psychical Research (vol. XIX, pág. 57), assinalaram-se algumas dessas diferenças radicais: 

“As duas personalidades de William Sharp – escreve o crítico – eram coordenadas entre si, sob certo ponto de vista: não se notava nenhuma superioridade nítida e precisa de uma sobre a outra, tanto moral como intelectualmente; as alternativas, com as quais se manifestavam, não pareciam associadas a elementos patológicos. Eram ambas acentuadas por um temperamento muito sensitivo e em alta tensão, mas nenhuma das duas mostrou nunca lacunas no seu equilíbrio mental e no controle de si mesmas. Ambas produziram obras literárias de uma beleza especial, embora Fiona ultrapassasse muito a outra em originalidade, em poder descritivo e em imaginação. Além disso, o traço característico das personalidades alternantes: o das notáveis variações de humor entre elas – variações que determinam mudanças mais ou menos grandes no carácter e conduzem a uma alternativa real das personalidades – é considerado pelos psicólogos como sendo dependente do facto de que há ou não lacunas mnemónicas entre os diferentes estados mentais... Ora, não havia lacuna mental entre William Sharp e Fiona Macleod e a conclusão de que deve tratar-se de duas personalidades diferentes parece fundar-se na impressão precisa e insofismável de que assim era, experimentada pelas próprias personalidades, impressão que não parecia, todavia, excluir a outra, segundo a qual havia entre elas uma unidade misteriosa, oculta sob as diferenças.” 

Assim como fiz notar anteriormente, esta última impressão de Sharp sobre a existência de uma unidade fundamental, apesar da diferença existente entre a personalidade de Fiona e a sua própria, era causada por especiais reminiscências segundo as quais lhe parecia ter vivido uma outra existência sob a forma de uma mulher. 

A esse respeito, declaro francamente que essas espécies de impressões experimentadas por William Sharp não se prestam, de modo algum, a esclarecer o mistério, longe disso! Com efeito, se a hipótese psicológica das personalidades alternantes parece facilmente eliminável, estando em contradição evidente com o conjunto dos factos, as outras duas hipóteses, que devem ser tomadas em consideração, reconhecendo-se-lhes igualdade de direitos (pois que as impressões experimentadas pelo protagonista não contam para a pesquisa das coisas), não parecem facilmente conciliáveis entre si. Se apenas se trata de uma entidade espiritual, que tivesse transmitido telepaticamente as suas criações literárias ao médium, o caso em questão poderia ser explicado muito facilmente; a hipótese reencarnacionista, porém, contribui para obscurecê-la. Com efeito, nestas condições, seria necessário admitir que uma fracção da personalidade integral do médium – fracção representando uma de suas próprias individualizações encarnadas, que existiu em época recuada – tenha podido emergir e se manifestar à sua individualização actualmente encarnada, nas condições de intelectualidade que a caracterizaram. 

Compreende-se que esta suposição é muito fantástica, literalmente gratuita e teoricamente inconcebível. A melhor solução do mistério consistiria então em retornar à hipótese de uma Fiona Macleod, espírito-guia de William Sharp e, aí parar. Nesse caso, se poderia resolver legítima e racionalmente o problema das reminiscências, fazendo notar que as impressões do médium, que se sentia às vezes invadido por sentimentos femininos com reminiscências de uma vida passada sob a forma de uma mulher, deveriam ser atribuídas à circunstância da realização de interferências fugitivas entre a consciência normal do médium e a memória pessoal do espírito-guia que lhe controlava então o órgão cerebral e lhe influenciava telepaticamente o pensamento. 

Faço notar que, nas experiências de psicometria, encontra-se muitas vezes a circunstância de terem os sensitivos a impressão de ser identificados na personalidade de um vivo ou de um morto, com o qual entram em relação, ao ponto de experimentarem as idiossincrasias de temperamento deles, com o despertar de reminiscências a respeito das suas modalidades de existência, impressões do meio no qual viveram, como se estivessem momentaneamente unificados com eles, embora conservando a própria consciência. 

Na minha monografia Os Enigmas da Psicometria, citei exemplos nos quais essa identificação do sensitivo nos acontecimentos da existência de outras pessoas se realiza, mesmo quando se trata de colocação em relação com animais. 

/... 


Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo V (II de II), 6º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

Sem comentários:

Enviar um comentário