sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Tratamento de vícios e perversões ~ 

A embriagues, a toxicodependência e o vício do jogo são os flagelos actuais do nosso mundo em fase aguda de transição. Cansados de recorrer sem proveito a internamentos hospitalares, as vítimas e as suas famílias acabam recorrendo ao Espiritismo e às diversas formas mágicas do sincretismo religioso afro-brasileiro. É comum fazer-se confusão entre essas formas de religião primitivas da África e o Espiritismo, em virtude de haver manifestações mediúnicas nos dois campos. Os sociólogos, que deviam ser minuciosos ao tratar desses problemas, carregam a maior parte da culpa desse equívoco. Estão naturalmente obrigados, pela própria metodologia científica, a distinguir com rigor um fenómeno social do outro, mas preferem a simplificação dos processos de pesquisa, que gera confusões lamentavelmente anticientíficas. 

A palavra Espiritismo, cunhada por Allan Kardec como um neologismo da língua francesa, na época, é uma denominação genésica da Doutrina Espírita. Nasceu das suas entranhas e só a ela se pode aplicar. Kardec rejeitou a denominação de Kardecismo, que os seus próprios colaboradores lhe sugeriram, explicando que a doutrina não era uma elaboração pessoal dele, mas o resultado das pesquisas e dos estudos das manifestações espíritas. Entrando em contacto com o mundo espiritual, em todas as suas camadas, Kardec recebeu dos Espíritos elevados os delineamentos da doutrina, mas não os aceitou de mão beijada. Submeteu essas comunicações do outro mundo a rigoroso processo de verificação experimental. Só aceitou como válido o que era provado pelas numerosas pesquisas incessantemente repetidas e confrontadas entre si. Para tanto, criou uma metodologia específica, pois entendia que os métodos devem ajustar-se à natureza específica do objecto submetido à pesquisa. Sem essa adequação seria impossível obterem-se resultados significativos. Escapava assim, aos fracassos iniciais da Psicologia Científica, que lutara em vão para enquadrar os fenómenos psicológicos na metodologia da Física e de outras disciplinas. 

As experiências de Wundt, Weber e Fechner, por exemplo, restritas a mensurações de intensidade, não iam além de explorações epidérmicas, pouco sugerindo sobre a natureza e o mecanismo dos fenómenos. Os fenómenos espíritas, que revelavam inteligência, não eram simples efeitos de processos biológicos e fisiológicos. Eram fenómenos muito mais complexos, que podiam provir da mente ou das entranhas humanas, mas também podiam ser produzidos por forças ainda não suficientemente conhecidas, como o magnetismo natural, a electricidade, energias e elementos procedentes de regiões ainda não devassadas da própria consciência humana. O inconsciente era ainda uma incógnita. Kardec o abordou quando Freud estava ainda na primeira infância. Kardec deu à Revista Espírita, órgão que fundou para divulgar os seus trabalhos e pesquisas de opinião, o subtítulo de Jornal de Estudos Psicológicos, provando já estar convencido de que enfrentava os problemas do psiquismo humano. Estava fundada a Ciência Espírita, que os cientistas da época rejeitaram, considerando que Kardec fugia da metodologia científica originada das proposições filosóficas de Bacon e DescartesA psicologia introspectiva, ainda apegada à matriz filosófica, atacou-a com a antecedência de meio-século com ataques dirigidos aos pioneiros da Psicologia Experimental. Essa é uma das glórias de Kardec, geralmente desconhecida. Mais tarde, Alfred Russel Wallace iria declarar que toda a psicologia não passa de um espiritismo rudimentar, glorificando Kardec. 

Charles Richetprémio Nobel de Fisiologia e fundador da Metapsíquica, discordante de Kardec, declarou no seu próprio Tratado de Metapsíquica que Kardec era quem mais havia contribuído para o aparecimento das novas ciências e lembrou que Kardec jamais fizera uma afirmação que não estivesse provada nas suas pesquisas. Depois desses sucessos no meio científico, numerosos e famosos cientistas se entregaram às pesquisas espíritas, alguns, como William Crookes, com o fim exclusivo de provar que os fenómenos espíritas não passavam de fraude. Após três anos de pesquisas, Crookes publicou os seus trabalhos, pondo-os ao lado do antigo adversário. Após a morte de Kardec, em 1869, Léon Denis o substituiu na direcção do movimento espírita mundial e, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que Kardec chamava de sociedade científica, ficou praticamente viúva. Mas as pesquisas prosseguiram no Instituto Metapsíquico, sob a direcção de Gustave Geley e Eugéne Osty, com grande proveito. Ao mesmo tempo, pesquisas continuavam a ser feitas em várias Universidades europeias, como a de Zöllner em Leipzig, as de Crookes em Londres, as de Ochorowicz na Polónia e assim por diante. A Ciência Espírita continuava a desenvolver-se. O Barão Von Schrenk-Notzing fundou em Berlim o primeiro laboratório de pesquisas espíritas do mundo, procedeu a valiosa série de pesquisas sobre o ectoplasma, com o auxílio de Madame Bisson. Após a primeira Guerra Mundial a Ciência Espírita continuava combatida, mas activa. Mas a guerra desencadeara no mundo as ambições e interesses materiais, deixando exígua margem para o interesse espiritual. Só agora ressurge na França, com André Dumas, uma instituição de estudos e pesquisas espíritas. A Revista Renaitre 2.000, dirigida por Dumas, substitui a Revue Spirite de Kardec. 

Este breve escorço do aparecimento e desenvolvimento da Ciência Espírita prova a sua vitalidade, apesar das campanhas incessantes e sistemáticas movidas contra ela. Em todos os grandes centros universitários do mundo as pesquisas espíritas prosseguem com resultados positivos. Nenhum princípio da doutrina foi sequer abalado pelas novas descobertas verificadas em quaisquer dos ramos da investigação. Pelo contrário, os postulados básicos do Espiritismo se comprovaram, confirmando a posição avançada da Ciência Espírita e da Filosofia Espírita perante a cultura actual. Isso representa, para a Terapia Espírita, uma base de segurança inegável para o desenvolvimento dos seus processos de cura. O que hoje se chama, na Europa, de cura paranormal, não é mais do que a cura espírita revestida ou fantasiada de novidades superficiais. 

No difícil e geralmente falho tratamento das viciações, o principal é a integridade moral dos terapeutas. Os viciados não são apenas portadores de vícios, mas também de cargas de influências psíquicas negativas provenientes de entidades espirituais inferiores que a eles se apegam para vampirizar-lhes as energias e as excitações do vício. As pesquisas parapsicológicas provam a existência desses processos de vampirismo espiritual, que na verdade são apenas a contrafacção no após morte dos processos de vampirismo entre os vivos. Nas relações humanas, quer sejam entre encarnados ou desencarnados, sempre existem os que se tornam parasitárias de outras pessoas. Não há nisso nenhum mistério, nem se trata de acções diabólicas. Em toda a Natureza a vampirização é uma constante que vai do reino mineral ao humano. A cura depende, em primeiro lugar, da vontade da vítima em se livrar do perseguidor. As intenções deste nem sempre são maldosas. Ele procura o amigo ou conhecido encarnado que era o seu companheiro de vício e o estimula na prática para obter assim os elementos de que necessita na sua condição de desencarnado. Obtém a satisfação por indução. Ligando-se mental e psiquicamente ao ex-companheiro, pode haurir as suas emanações alcoólicas ou as drogas psicotrópicas de que se servia antes da morte. De outras vezes o espírito vampiresco se serve de alguém que, não sendo viciado, revela tendências para o vício e o leva facilmente para a viciação. 

A terapia espírita consiste, nesses casos, num processo oral de persuasão, conhecido como doutrinação. Conseguindo-se levar o espírito vampiro e a sua vítima a se convencerem da necessidade e da conveniência de abandonarem o vício, ambos se curam. A doutrinação distingue-se profundamente do exorcismo por ser um processo racional e persuasivo e não pautado pela violência. A terapia espírita parte da compreensão de que ambos, o vampiro e a vítima, são criaturas humanas necessitadas de socorro e orientação. Essa posição favorece o tratamento, que ao invés de provocar reacções de indignação do espírito tratado como diabólico, lhe provoca a razão e o sentimento de sua dignidade humana e lhe mostra as possibilidades de uma situação feliz na vida espiritual. Submetido às reuniões de preces, passes e doutrinação, os dois espíritos, o desencarnado e o encarnado, são tratados com a assistência das entidades espirituais encarregadas desse trabalho amoroso. Kardec acentuou a necessidade de boas condições morais das pessoas que se dedicam a esse trabalho, pois só a moralidade do doutrinador exerce influência sobre os espíritos. Toda a pretensão de afastar o espírito vampiresco pela violência só servirá para irritá-lo e complicar o caso. A boa intenção do doutrinador para com o vampiro e a vítima, a sua atitude amorosa para com ambos, é factor importante para o êxito do trabalho. A formação de correntes de mãos dadas em torno do paciente. O uso de defumadores e outros artifícios semelhantes e, qualquer outra forma de encenação material são simplesmente inúteis e prejudiciais. O imprudente que gritar com o espírito, dando-lhe ordens negativas, arrisca-se a prejudicar o trabalho e chamar sobre si a indignação do espírito ofendido. O clima dos trabalhos deve ser de paz, compreensão, amor e confiança nas possibilidades de recuperação das criaturas humanas. Nenhum espírito tem a destinação do mal. Todos se destinam ao bem e acabarão modificando-se pelos seus próprios impulsos de transcendência. 

/… 


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Tratamento de Vícios e Perversões (1 de 2), 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

pensamento e vontade ~


Ideoplastia ~
 
(II

Por sua vez, a srta. Felicia Scatcherd assim se refere à atitude do ectoplasma, no decurso de uma das suas numerosas sessões: 

“Almoçamos com Marta (Eva C...) e, quando terminamos o almoço, ela manifestou o desejo de me proporcionar uma sessão. Resistia-lhe ao propósito, com receio de a fatigar, mas, foi por sua insistência, que a Sra. Bisson acabou intervindo e opinando que seria melhor não lhe contrariar os desejos. Iniciado o trabalho, a médium caiu logo em profundo transe, cabeça pendida para trás, de modo que nada lhe seria possível perceber na sua frente, ainda que acordada estivesse. Abertas ficaram as cortinas do gabinete mediúnico, cuja luz baixamos um pouco. Ainda estávamos a conversar, quando, de repente, vimos aparecer no chão abundante massa de substância, a cerca de 18 polegadas de distante e à esquerda da cadeira da médium. 

Essa substância era de alvura extraordinária e ligeiramente luminosa. 

Para comigo, pensei: “Como se pode produzir semelhante coisa? Quem sabe se essa substância está ligada à médium?” 

E o controle da médium logo respondeu à minha pergunta mental, dizendo: “Não há ligações quaisquer; pode passar a mão entre a substância e o corpo da médium.” 

Assim fiz, sem inconvenientes. 

Depois, coloquei um lenço branco, perfeitamente limpo, ao lado da substância, a fim de lhe avaliar a alvura e verifiquei que o lenço me parecia antes cinzento, comparado com a substância misteriosa. 

Coloquei-me, depois, de modo a poder tocar a substância sem ser vista, mas, quando estava a ponto de o fazer, todo o corpo da médium se contorceu em convulsivo espasmo e, o controle exclamou: 

– “Não me toque, não me toque, porque me mataria!” 

Arrependida da tentativa inconsiderada, humildemente procurei desculpar-me. 

Todavia, mais tarde, espontaneamente me autorizaram esse toque e, assim constatei que essa substância oferece certa resistência ao tacto, comparável à clara de ovo

E quanto à sua temperatura, pareceu-me um pouco inferior à do ambiente em que nos encontrávamos. 

Seria interessante pesar essa substância, disse eu à Sra. Bisson, mas compreendo, ao mesmo tempo, que se nos torna impossível fazê-lo, uma vez que o seu manuseio pode prejudicar a médium. 

Sorriu-se a Sra. Bisson e, dirigindo-se à filha, pediu-lhe que fosse à cozinha buscar uma balança. 

Entretanto, a mágica substância alongou-se, tomou a forma de um réptil, donde, concluo houvesse compreendido o que dela pretendíamos. 

Chegada a balança, foi-me dado experimentar uma das mais fortes emoções da minha vida

É que a substância, qual serpente que se levantasse sobre a cauda, viera colocar-se num dos pratos da balança, que estava sobre um pedestal, à altura de 28 centímetros do chão. 

E ali permaneceu todo o tempo necessário à verificação do seu peso, por mim julgado levíssimo, em relação ao volume. 

Serpeando depois para trás, deixou o prato e baixou ao soalho, para retomar o primitivo aspecto informe. 

Depois, enquanto a observava, sumiu-se. Não se retraiu, não se dissolveu; simplesmente – desapareceu.” (Light, 1921, págs. 809-810). 

Seria inútil perdermo-nos em conjecturas sobre a natureza dessa substância viva, sensível, inteligente, capaz de aparecer e desaparecer num relâmpago, pois isso equivaleria a pretendermos explicar o mistério da vida, que é segredo de Deus. 

Contentemo-nos em registar o que ressalta da nossa mentalidade finita, à qual não é lícito ultrapassar as leis reguladoras dos fenómenos. 

Limitar-me-ei, portanto, a anotar que, neste caso, tudo contribui para demonstrar que a substância viva, exteriorizada, obedece à vontade do subconsciente do médium

Daí, importa inferir que, da mesma forma pela qual, graças à vontade do médium, essa substância consegue moldar-se à forma de réptil para alçar-se a balanças e deixar-se pesar, assim também, noutras circunstâncias, ela consegue moldar semblantes humanos, conhecidos do médium, como a demonstrar que o pensamento e a vontade subconscientes são, precisamente, forças plásticas e organizadoras. 

Mas isto não é tudo, porquanto, ensinando-nos outras experiências que, muitas vezes, os semblantes materializados são desconhecidos do médium, embora o sejam dos assistentes, conclui-se que a substância viva é capaz de obedecer à vontade subconsciente de terceiras pessoas presentes, ou de lhes sofrer a influência, através do médium. 

Finalmente, como noutras circunstâncias ocorrem, nas quais as formas materializadas, vivas e falantes, são pessoas já falecidas e desconhecidas do médium e dos assistentes, devemos deduzir que a substância viva exteriorizada é susceptível de obedecer a entidades espirituais de desencarnados, ou – o que vem a dar no mesmo – de sofrer-lhes as influências através do médium. 

Posto isto, convém nunca perder de vista as conclusões expostas, mediante as quais constatamos que, se é verdade que a substância viva, exteriorizada, obedece a uma força organizadora inerente ao pensamento e vontade humana, também é verdade que tais – pensamento e vontade – não pertencem exclusivamente à personalidade integral subconsciente do médiummas provêm, algumas vezes, dos experimentadores e, muitas outras vezes, de entidades espirituais, de criaturas falecidas. 

Desta terceira categoria de manifestações não me ocuparei, visto que o tema aqui versado se prende aos casos em que a vontade organizadora é a do médium e dos assistentes, ou seja, dos vivos. 

Resta-me, apenas, passar em revista alguns casos mais importantes desse género. 

Começo por assinalar um fenómeno curioso, contra a realização do qual importa saibam prevenir-se os experimentadores. 

Esse fenómeno decorre da ductilidade com a qual a mentalidade subconsciente do médium de materializações absorve as ideias nitidamente definidas, formuladas verbal e mesmo mentalmente pelos experimentadores e pelos circunstantes. 

Assim se constata que, se o experimentador imagina uma teoria a priori, mais ou menos mecânica e mediante a qual se opera um dado fenómeno físico, vê-la-á confirmada a posteriori

Terá ele, então, a ilusão de haver sido instruído da verdade, quando realmente mais não fez que sugestionar o médium, predispondo-o a reproduzir, com a substância ectoplásmica, o modelo concreto da sua própria teoria. 

Assim, por exemplo, o Dr. Crawford, professor de mecânica psíquica, tendo imaginado a priori que as levitações da mesa se davam graças a uma “alavanca fluídica” que, saindo do organismo do médium, descia até ao chão para distender-se depois em braço vertical que tocasse o fundo da mesa e a levantasse, teve a surpresa de verificar que as provas fotográficas dessas levitações lhe davam absoluta razão, isto é: a tal “alavanca fluídica” existia, de facto, constituída pela forma imaginada. 

Mas, essa verificação de um facto não significava de modo nenhum que as levitações de mesa, em geral, se operassem dessa maneira, pois na verdade era a vontade subconsciente do médium que, tendo agasalhado a sugestão verbal de Crawford, lhe proporcionara docilmente a “alavanca” por ele pressuposta. 

Esta explicação do fenómeno em apreço já ninguém mais recusa, nem dela duvida. 

Dá-se, em suma, com as materializações, a mesma coisa que já se dera com o hipnotismo, a respeito do qual os primeiros investigadores científicos, inclusive o eminente Charcot, tinham nitidamente formulado, baseando-se em factos, as leis da sugestão e as fases específicas do sono letárgico e cataléptico dos pacientes; leis e fases que, na realidade, mais não eram que a consequência sugestiva das ideias teóricas preconcebidas pelos diferentes hipnotizadores. 

É o que observamos actualmente a propósito do polimorfismo da substância ectoplásmica exteriorizada, que pode por sugestão ou auto-sugestão revestir todas as formas imagináveis. 

Daí resulta que os experimentadores devem manter-se em condições mentais absolutamente neutras, no que toca às modalidades das representações materializadas, deixando aos processos científicos da análise comparada e da convergência das provas a tarefa difícil de esclarecer o grande mistério. 

/… 


Ernesto BozzanoPensamento e Vontade – Ideoplastia (2 de 3), 10º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Female Saint_1941, pintura de Edgard Maxence)